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“Intelectuais” e a Guerra Cultural: na preservação do Estado

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A melhor maneira de evitar que um prisioneiro escape é garantir que ele nunca saiba que está na prisão. – Fiódor Dostoievski

Fiódor Dostoiévski foi um filósofo e escritor que viveu no longínquo século XIX. Talvez tenha sido o melhor romancista de sua época a expressar as questões inerentes à natureza humana. Nos seus livros, agora considerados clássicos, expôs de maneira inapelável a degradação moral das sociedades modernas, que paulatinamente se afastaram dos valores e ideais cristãos. Passados dois séculos, aqui estamos. A vida do homem ocidental pós-moderno é facilitada pela tecnologia que o inunda de informações ao alcance de sua mão. Por essa e outras razões, não tem estado muito afeito à religião e ao Cristianismo (muito menos ao cultivo das virtudes). Pelo contrário, nos últimos 200 anos, ele engendrou esforços apaixonados para que a ciência, o materialismo e as ideologias ocupassem o lugar da religião. Como resultado, vimos dois séculos recheados de conflitos bélicos entre as nações do planeta (os maiores deles as duas Grandes Guerras), nos quais ficou evidenciado que até mesmo a razão e a dignidade da pessoa humana, valores alçados à sacralidade pelos pensadores liberais do século XVII, estiveram alheios aos corações e mentes humanas do século XX. A modernidade e a pós-modernidade fizeram com que o homem vivesse exatamente como o prisioneiro da frase de Fiódor, acorrentado pela tirania do Estado, pela desfaçatez da política e pela imoralidade do mercado financeiro.

Assim, o contato com a obra de Murray N. Rothbard é realmente, como disse o professor Antony Mueller, na introdução de Anatomia do Estado, “pura dinamite intelectual” – dezenas de milhares de megatons para destruir essa prisão que nos escraviza na era pós-moderna, arrebentando de uma só vez os grilhões que nos acorrentam. Ler Rothbard é com toda certeza um caminho sem volta: foi capaz de converter até mesmo um conservador, como eu, da validade e do valor moral de suas ideias libertárias, mesmo que, quando comparada à lei natural, ainda sejam infinitamente inferiores (na minha opinião). Se em O que o Governo Fez com o Nosso Dinheiro o foco da “dinamite” estava cada vez mais na evidente falha moral dos bancos e do sistema financeiro, em Anatomia do Estado, o poder de fogo se volta definitivamente para o maior vilão de todas as liberdades: o Estado. Fica evidente porque Rothbard fez por merecer a alcunha que lhe foi dada de “O Inimigo do Estado”.

Este pequeno livro, de pouco mais de setenta páginas, lançado em 1974 (portanto, mais de 10 anos após O que o Governo Fez com o Nosso Dinheiro), é, na verdade, o terceiro capítulo do livro Egalitarianism as a Revolt Against Nature and Other Essays [Igualitarismo como uma Revolta Contra a Natureza e Outros Ensaios]. Nele, Rothbard realiza uma verdadeira aula de dissecação da verdadeira natureza do Estado. Logo nas primeiras páginas, ele desfaz toda a fantasia de benevolência e bem-estar criada em torno do aparato estatal. Talvez os últimos trinta anos de nova democracia no Brasil ou a distância histórica que temos da criação dos Estados modernos contribuam para que esse “miasma mítico” paire com ainda mais força sobre o imaginário social vigente. Logo na sequência do texto, e depois de desfazer os sonhos infantis dos defensores do Estado, o autor se detém em explicar de forma muito clara e direta qual a verdadeira natureza do Estado, que, em poucas palavras, foi resumido como: “[trata-se de] um canal legal, ordeiro e sistemático de predação da propriedade privada; ele transforma a tábua de salvação da casta parasitária da sociedade em algo certo, seguro e “pacífico”. Curioso notar como Milei, o candidato libertário à presidência da Argentina, pela coligação La Libertad Avanza – reza com disciplina ortodoxa a cartilha rothbardiana. Um dos seus slogans mais repetidos é “la casta (parasitária) tiene miedo”. Isso talvez explique a razão de um dos seus cachorros ser apelidado de Murray.

Os argumentos apresentados no texto deixam muito claro e evidente o contraste entre dois caminhos mutuamente excludentes de enriquecimento em uma sociedade: o primeiro deles, virtuoso – no qual o homem, ao fazer uso de sua inteligência e esforços, transforma o seu meio e os recursos à sua disposição para produzir e trocar esse fruto de sua produção pelos bens e serviços de outras pessoas – resumidamente, o que chamamos de “meios econômicos”, a saber, a origem da propriedade privada. O segundo deles, vicioso – no qual um indivíduo ou grupo toma os bens e serviços criados por aqueles que produzem, utilizando a força e a violência para coagir e constranger outros, o que chamamos de “meios políticos”. Curioso notar que mesmo as eleições nos Estados modernos, com toda sua pompa democrática, constituem-se em meios políticos legais e constitucionais de “tomadas de poder”. Aqui emerge o eterno embate histórico entre essas duas forças antagônicas e motoras da sociedade. Caos e ordem, yin e yang, luz e trevas.

Essa peleja talvez nunca tenha estado tão evidente quanto nos dias atuais. Desde a época da pandemia de COVID-19, diversos indivíduos tiveram seu direito fundamental de sustento e de trabalho completamente desarticulados por um Estado que jurava estar defendendo a vida. Os números de cadáveres e de inflação gerados posteriormente demonstram a inabilidade estatal em tanto proteger àqueles que jurou defender, como preservar as condições econômicas que não gerassem miséria. Basta pegar como exemplo didático a própria Argentina.

Prosseguindo, e dando ainda mais cores à origem do Estado, Rothbard utiliza-se de uma anedota literária, também muito utilizada por Mises em seus diversos escritos: a “Ruritânia”. Imaginemos o seguinte, ele diz: “nas colinas do sul da “Ruritânia”, um grupo de bandidos consegue controlar o território, até que o chefe do bando se autoproclama “Rei do território soberano e independente da Ruritânia do Sul”; e, se ele e seus homens têm força para manter este governo por um tempo, eis que um novo Estado se junta à “família das nações”. É um argumento mordaz contra a teoria do contrato social elaborada por Thomas Hobbes (1588-1679).

Entretanto, ainda mais interessante do que suas críticas historiográficas ao surgimento do Estado e de sua verdadeira natureza, Rothbard traz um elemento muito novo neste livro, pelo menos, para a minha experiência de contato com autores libertários e liberais – que é o que talvez mais importa para os observadores políticos nos dias atuais: como o Estado se preserva e o papel dos intelectuais e da cultura na justificativa desse domínio. Desde a antiguidade, os reis e governantes sempre guardam uma relação muito íntima com os intelectuais que são instrumentalizados com o intuito de formar opiniões e favorecer a que um certo conjunto de ideias circule na sociedade, de modo a favorecer a aceitação dos governantes no poder, naquele momento específico, pela grande maioria da população. Essa simpatia e convencimento da opinião pública são essenciais para que qualquer governo possa, minimamente, se sustentar. O livro traz como exemplo dessa aliança simbiótica o caso dos professores da Universidade de Berlim, que, no século XIX (aquele mesmo século de Dostoiévski), queriam formar o corpo de guarda-costas intelectuais da Casa de Hohenzoller”. É neste exato trecho que Rothbard dá uma contribuição primordial para os dias atuais de guerra cultural, que ecoa em autores contemporâneos como Olavo de Carvalho ou Ben Shapiro.

Vimos nos últimos anos uma “entrega” quase completa dos ambientes intelectuais e das universidades para os movimentos de ideologias do espectro político da esquerda e do neo-marxismo. Isto acarretou o domínio de toda uma agenda de questionamento e destruição do Ocidente através do pós-modernismo e da epistemologia irracional. Mesmo com seus vícios e com suas virtudes, a civilização ocidental foi capaz de acabar com a escravidão legal e é composta por um conjunto de valores e ideias que produziram o momento histórico de menor pobreza na história humana. Tudo isso sem citar aqui os diversos avanços científicos inimagináveis até para a mente brilhante de Dostoiévski. Cabe pontuar que, mesmo que, no passado, a Igreja e a religião tenham sido grandes contribuintes do Estado no campo ideológico, principalmente com sua teoria do direito divino dos reis europeus, hoje o processo de secularização da cultura, denunciado por Dostoiévski em suas obras, parece ter encontrado seu ápice. Se antes os valores cristãos eram a norma, hoje são vistos como antiquados e ultrapassados – e, para alguns como eu, são a última resistência à agenda progressista presente nos meios intelectuais e acadêmicos. A consequência disso acaba sendo a forte influência política e moral que esse conjunto de ideias acaba representando para as massas.

Tal cenário não nos deixa nenhuma dúvida de que liberais, libertários e conservadores precisam encarar sua própria “Guerra Santa moderna” na defesa daquilo que tanto amam e apreciam: a vida, a liberdade individual e a propriedade privada. Precisamos criar nossos próprios círculos intelectuais, formar líderes e influenciar as massas para o caminho virtuoso – antes que seja tarde demais, e o processo, irreversível. É urgente que escrevamos, falemos e nos posicionemos na Guerra cultural seja pelo meio que for, para que façamos jus às palavras de Rothbard de nos tornarmos a maior ameaça ao Estado com uma crítica intelectual independente.

*Leonardo Rodrigues frequentou o CEFET-MG no curso de Engenharia de Computação. Atualmente exerce o cargo de consultor sênior de tecnologia na Thoughtworks. É membro do IFL BH desde o segundo semestre de 2023 e criou o projeto Biblioteca da Liberdade, com o intuito de levar ideias liberais, libertárias e conservadoras para os espaços públicos de Belo Horizonte e região metropolitana.

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