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Uma resposta a Adib Jatene

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FELIPE BASTOS GURGEL SILVA *

Imaginem aquela relação (namoro) na qual uma das partes está demasiadamente desgastada do não compromisso e falta de consonância da outra. A típica sensação de latência que, embora incomode, não chega a ser crítica o suficiente para levar ao fim. O chamado comodismo com o estado permanente de insatisfação. Pois bem, normalmente nesses casos, basta um fato isolado para atingir a “energia de ativação” e desencadear num processo rápido e culminante que leve ao rompimento.

Na minha modesta percepção, essa anedota descreve perfeitamente a relação entre o Governo Federal e a classe médica brasileira nos últimos meses, desde quando se deu o início das discussões acerca da importação de “escravos” médicos cubanos para atuar no SUS. Se o período de debates envolvendo o “Revalida”, os problemas reais do SUS, a distribuição geográfica dos médicos no país, etc., ilustravam o chamado “namoro empurrado com a barriga”, os eventos pontuais da última semana (Programa “Mais Médicos” e veto ao Ato Médico) não podem sequer serem considerados “a gota d’água”. Se o balde estava “cheio a menos de uma gota”, o que o Governo fez foi colocar o balde debaixo das Cataratas do Iguaçu. Realmente, o totalitarismo chega a ser tão absurdo que Mussolini e Stalin ficariam orgulhosos.

Faço uma pequena pausa para uma breve apresentação. Primeiramente, não, não sou médico. Minha relação com a medicina é, nada mais nada menos, a de mero consumidor final do produto do conhecimento de seus profissionais (médicos). De forma mais direta, sou o que se denomina “paciente” – assim como todos de nossa sociedade, inclusive os médicos, se nunca foram um dia certamente serão. Bom, talvez eu tenha uma conexão levemente mais próxima com a ciência médica do que um puro leigo, por ter nascido e crescido em uma família de médicos – e por ter vários amigos que optaram em seguir essa profissão.

Enfim, desde quando o programa “Mais Médicos” foi lançado, o “resumo dos melhores capítulos” da semana nessa novela poderia ser descrito em poucas palavras. A maioria absoluta dos médicos (e demais profissionais da área de saúde) mostrou-se veementemente contrária ao programa, em especial à extensão do curso de medicina em dois anos de serviços obrigatórios no SUS. Talvez o percentual de rejeição seja levemente mais baixo dentre os não médicos, mas certamente existe uma relação não desprezível do ponto de vista estatístico entre a rejeição da medida e o conhecimento (de fato) de valores democráticos e libertários por parte do indivíduo. Obviamente, opiniões favoráveis também foram expostas – muitas delas por parte de pessoas ligadas ao governo. De fato, opiniões favoráveis ao programa, desde que tecnicamente embasadas e logicamente fundamentadas, devem sim ser ouvidas. Contudo, uma frase me chamou bastante atenção – e é justamente sobre essa frase que gostaria de refletir nesse texto.

O conceituado médico e ex-ministro da Saúde, Sr. Adib Jatene, ao defender a extensão do curso em dois anos de serviços obrigatórios no SUS, afirmou que “médico tem que ser especialista em gente”. Foi justamente depois de ouvir (e ler) tal afirmativa que me motivei a escrever esse simples ensaio, afinal, a frase destoa por duas características indissociáveis: 1) a absurda desconexão do termo em si, “especialista em gente” e 2) o fato de tal frase, com vastas possibilidades semânticas, ter sido declarada por uma pessoa com o currículo do Sr. Jatene. Afinal, sem cairmos em verbosidades desnecessárias, perguntemo-nos: o que vem a ser esse tal “especialista em gente”? Ou melhor, o que o Sr. Jatene quis dizer com essa nova “especialidade médica”? Com toda sinceridade, se a frase me fosse exposta sem apresentar o nome do autor e me fosse perguntado quem a proferiu, acho que meu “best guess” seria, talvez, Dadá Maravilha (“Se der, deu. Se não der, não deu!”).

Trazendo um pouco de razão ao questionamento, eu consigo imaginar duas possibilidades (ou intenções semânticas) para o “especialista em gente” que o Sr. Jatene tanto defende. Abaixo analiso cada uma delas, em separado:
Possibilidade 1: Realmente quando o Sr. Jatene falou “especialista em gente” ele quis se referir ao fato de o médico ser um especialista no ser humano como ente biológico. Ou seja, ser especialista significa dominar, em profundo conhecimento, o organismo humano como um sistema dinâmico complexo e seus subsistemas, tanto anatômica como fisiologicamente. Através desse conhecimento básico, imagino que se construam os alicerces para o domínio dos tratamentos e procedimentos que constituem a medicina propriamente dita. Parafraseando Dráusio Varella, “a função da medicina é aliviar o sofrimento humano”. Simply like that! Tudo isso associado a uma boa carga horária de matérias de ética profissional – afinal, a carreira do médico em si envolve elevado grau de responsabilidade civil.

Como falei anteriormente, não sou médico, mas acho que o bom senso de um mero usuário da medicina me faz crer que essa é a descrição do que espero da formação ACADÊMICA de um médico. Ou seja, se de fato o “especialista em gente” significa um médico com elevado conhecimento teórico, experimental e com responsabilidade social, então concordo em gênero, número e grau com o que o Sr. Jatene falou! Mas, me pergunto: como que, em plena segunda década do século XXI, alguém descobriu, como num passe de mágica, que a formação típica de graduação em seis anos não era suficiente para fornecer isso aos médicos? Ao longo desses meus 30 anos de vida, já precisei de serviços médicos inúmeras vezes – seja para tratar de simples viroses a um acidente de carro em 2008. E, sendo bem sincero, tirando pouquíssimas exceções, via de regra, tive meus problemas resolvidos pelos profissionais que me atenderam.

Agora querem me dizer que seis anos não são suficientes como graduação? Ou melhor, que todos os médicos que me atenderam tinham formações deficitárias? É isso mesmo? Tirando um pouco o meu egocentrismo, o Governo Federal quer dizer então que temos 400 mil médicos no Brasil que fizeram graduação em seis anos (dos quais boa parte continuou seus estudos em residências médicas) mas não são “especialistas em gente”, como disse o Sr. Jatene. São, portanto, incapazes de exercer a profissão! Entendi corretamente, Sra. Presidente (com “E” no final)?
Apesar de suas bizarrices, ainda acho difícil que a Possibilidade 1 seja a real. Apresento, portanto, a segunda possibilidade – cuja raiz chega a ser bem mais negativa que a primeira. Possibilidade 2: Quando o Sr. Jatene falou em “especialista em gente”, a carga semântica da expressão atravessou o lado técnico e abraçou uma causa ideológica “esquerdopata”. Ele quis dizer que “o médico não completa sua formação na faculdade, mas sim na prática”. Ou melhor, que “mais importante que dominar a anatomia é entender de fato os problemas de nossa gente”.

Quando argumentos beiram o ridículo, a resposta deve ser estruturada, justamente para expor suas falácias. Sendo assim, vamos por partes. Quanto à ideia de que “o médico não completa sua formação na faculdade”, Sr. Jatene, lamento informar-lhe, mas isso não é uma característica exclusiva da medicina (ou mesmo da área de saúde). Pegue, por exemplo, o caso da formação acadêmica de um engenheiro (minha graduação). Os primeiros anos são focados em matérias de ciências básicas (matemática, física etc.) e os períodos disponíveis para estágios são normalmente restritos às férias escolares. À medida que o curso se aproxima do final, as matérias começam a focar mais na aplicação dos fundamentos teóricos em problemas experimentais, assim como a disponibilidade para estágios (muitas vezes curriculares) passa a ser maior. Assim, ao se formar, a transição entre a vida acadêmica e a carreira profissional não precisa ser mais abrupta do que já é. Mesmo assim, no seu primeiro dia de trabalho, você acha que um engenheiro recém-formado é colocado numa situação de total domínio de sua profissão? Claro que não! O aprendizado, mesmo que na vida pós-acadêmica, é um processo contínuo e constante. Mais ainda, esse modelo não é exclusivo da engenharia, mas cursos como economia, administração de empresas, etc., também seguem essa lógica.
Esse framework é de certa forma padrão para qualquer carreira que envolva elevado nível de capital intelectual.

Existe uma formação acadêmica, com forte base teórica e experimental, que pouco a pouco dá espaço a estágios a medida do momento que se transaciona do ambiente universitário para a vida profissional. E quando se começa a carreira propriamente dita, nem mesmo os mais brilhantes está, obviamente, 100% preparado para lidar com todos desafios do mundo real. A vivência, a experiência de problemas passados e as relações interpessoais continuamente calibram a escala do bom profissional. E isso vale, inclusive, para os grandes outliers. Ou você acha que Armínio Fraga quando era recém-concludente do Ph.D. em economia de Princeton sabia macroeconomia no mesmo nível que hoje, após uma carreira brilhante como hedge fund manager, passando pela presidência do Banco Central do Brasil?
O segundo sub-argumento chega a ser ainda mais nefasto, pois nele está escondido o total desprezo por parte da filosofia esquerdista ao conhecimento científico e acadêmico. Quem argumenta que “é mais importante pra um médico entender os problemas pessoais do paciente do que dominar anatomia e fisiologia humanas”, também pode transladar o mesmo absurdo para demais áreas do conhecimento humano. Ora “bom engenheiro aeronáutico é aquele que tem fotos de avião no quarto, não o que estudou aerodinâmica”. Ou “bom economista é o partidário do Bolsa Família, não o que domina o modelo IS-LM ou consegue distinguir Milton Friedman de Keynes”.

Não me levem a mal. Não tenho desprezo por entender problemas práticos ou mesmo agir com ética e responsabilidade social. O que repudio, sim, é essa cultura de menosprezar o conhecimento técnico, como se o conhecimento do mesmo (e de suas limitações) não fosse essencial para a aplicação às situações reais. E por que a esquerda sempre levantou esse argumento de “diminuir o conhecimento técnico”? Simplesmente porque a técnica, aliada ao bom funcionamento do livre mercado, é a forma mais democrática de permitir a sociedade (pacientes, nesse caso!) que se escolha os melhores profissionais. Que se separe o joio do trigo. Da onde veio o sucesso (inclusive financeiro) de Ivo Pitanguy, senão de seu reconhecido domínio fora de série, teórico e experimental, dentro de sua área de atuação?

A esquerda teme, acima de tudo, o conceito de meritocracia. Afinal, para eles é sempre melhor rotular os 400 mil médicos com ataduras em suas faces e transformá-los num produto de linha de produção, independente de suas diferentes individualidades, capacidades e interesses. Bom, o cometa da meritocracia passou distante das terras tupiniquins – afinal, quem é mesmo o Ministro da Educação? Aloísio Mercadante? Por curiosidade, me respondam, qual critério técnico (além de “prêmio de consolação por ter perdido as eleições do governo de São Paulo em 2010”) foi utilizado para sua nomeação para a pasta? Já sei! Deve ter sido o mesmo que o nomeou para sua pasta anterior (Ciência e Tecnologia).

Concluindo, Sr. Jatene, por favor, não faça pouco caso da massa crítica intelectual brasileira. Apesar de cada vez menos representativa, ela ainda existe – e incluo muitos de meus amigos médicos nesse grupo. Respondendo, por fim, ao seu pedido para formarmos “especialistas em gente”, como paciente, garanto-lhe uma coisa: se o que eu procuro é apenas um bom par de orelhas para ouvir-me reclamar do meu cisto sinovial que tenho no pulso (e não retirá-lo), sinceramente, não preciso de um médico para tal. Um grupo de amigos numa mesa de bar é mais que suficiente – e certamente mais agradável que um consultório médico. Agora, no dia que eu tiver uma doença grave (espero que isso não ocorra), não quero seu “especialista em gente”. Quero um com o padrão do “Dr. House”, da série televisiva, quero o melhor. Ele pode até ser rude comigo, se prometer ser duplamente rude com a doença. E, diferente do que prega Mercadante, que a medicina deve ser exercida sem intenção de ganhos financeiros, acredito que qualquer atividade profissional, desde que exercida com ética, deva sim visar o lucro e a remuneração por seu capital intelectual – e estou disposto a pagar caro por um serviço de qualidade.

P.S.: Existe, ainda, uma curiosidade final. Se o conceito de “especialista em gente”, de fato, se refere à prática médica (não acadêmica) em si, segue então a dúvida: por que para se tornar “especialista” o médico necessariamente teria que trabalhar para o SUS? Que fator técnico desmereceria o médico do setor privado no objetivo de alcançar tal especialidade? Até onde eu saiba, o coração de Joseph Safra e o do paciente do SUS têm, igualmente, dois átrios e dois ventrículos. Pelo menos foi o que aprendi nas aulas de biologia 15 anos atrás. Se o único caminho para o título de especialista em gente for o trabalho forçado no SUS, então tanto Lula como Dilma não se trataram por tais especialistas no Sírio-Libanês.

* ENGENHEIRO AERONÁUTICO PELO ITA E DOUTORANDO EM FINANÇAS PELA CORNELL UNIVERSITY

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