Uma defesa do desfusionismo, ou uma aula para Filipe Altamir

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Filipe Rangel Celeti*

desfusionismoVolto a escrever para este instituto com uma réplica ao Filipe Altamir e sua defesa do fusionismo. Mais do que refutação, gostaria de ensinar algumas coisas a quem quiser aprender. Meu papel talvez seja ingrato. Tentarei ser didático, como meu ofício me requer.

Altamir inicia seu texto com a afirmação de que “uma das atitudes mais comuns para qualquer indivíduo que se auto-proclame de direita é a percepção da realidade concreta e análise pragmática da realidade, se distanciado completamente de qualquer análise dogmática e ideológica”. Em primeiro lugar, há na direita muitos dogmáticos e ideólogos. Qualquer maluco pode se auto-proclamar de direita sem a mínima percepção da realidade e muitas vezes defendendo absurdos sem uma análise rigorosa do real. Dito isto, chegamos a nosso segundo ponto. A segunda frase de Altamir começa dizendo: “Uma das características mais comuns de um conservador é […]”. Ele abre o texto falando sobre os autoproclamados de direita e milagrosamente passar a falar dos conservadores, como se estes fossem um sinônimo de direitistas.

Voltando à primeira frase, lemos sobre perceber e analisar a realidade. Uma das coisas que minha formação me legou é a ideia de que as coisas têm nome e, muito mais do que apenas rotular, o nome correto serve para compreender o mundo que nos cerca. Uma compreensão correta do mundo perpassa uma análise correta da linguagem e dos termos empregados para compreendê-lo. Conservadorismo não é o mesmo que direita. A direita comporta outros grupos, além dos conservadores.

A partir desta mudança abrupta do termo “direita” para o termo “conservadorismo”, o autor passa a tecer elogios ao conservadorismo e de como a prudência é o ideal máximo, abstrato e confuso deste grupo ideológico. (Não é minha intenção debater o conservadorismo neste texto. Joel Pinheiro da Fonseca já o criticou neste mesmo instituto, aqui.) Ao final da exposição acerca do conservadorismo o autor apresenta o Fusionismo, união do conservadorismo com a defesa do livre mercado dos libertários.

Dito isto, o autor visa explicar o que seja o libertarianismo. Neste momento, gostaria de explicar alguns conceitos e corrigir alguns equívocos.

A primeira vez que o termo libertarianismo foi utilizado foi em 1789, por William Belsham, numa perspectiva metafísica em oposição ao determinismo (necessitarianismo), advogando o livre-arbítrio. O moderno libertarianismo como filosofia política foi empregado por Dean Russel em 1955 no periódico The Freeman de Leonard Read (responsável pela popularização do termo). O termo é obviamente uma usurpação do “libertário” (libertaire) utilizado pelo anarquista francês Joseph Déjacque em 1857.

Escrevi anteriormente acerca da história do termo “libertário” para mostrar onde se situam os chamados left-libertarians (libertários de esquerda) dentro do que é chamado de libertarianismo. É preciso lembrar que libertarianismo corresponde a diversas posições político-filosóficas. São libertários: o liberalismo neoclássico de Friedrich Hayek e Milton Friedman, o anarcocapitalismo de Murray Rothbard e David Friedman, o objetivismo de Ayn Rand, o geolibertarianismo (georgismo) de Fred Foldvary, o libertarianismo de esquerda de Hillel Steiner e Peter Vallentyne, o agorismo de Samuel Konkin III, o minarquismo de Robert Nozick, o neo-mutualismo de Kevin Carson, além de diversas outras posições à esquerda de anarquistas e libertários clássicos e contemporâneos e à direita como a ética argumentativa de Hans-Hermann Hoppe.

Com isto, reduzir o libertarianismo às proposições rothbardianas da ética da liberdade é ignorar um arcabouço teórico imenso para pensar a política, a ética, a sociedade, a economia, a estética e a metafísica.

É óbvio que há muitas coisas em comum entre os libertários e libertarianismo. Entretanto, não são todos que defendem o PNA (Princípio de Não-Agressão) como absoluto; há libertários deontologistas, consequencialistas, contratualistas e virtualistas; e há quem discuta a passagem do direito à autopropriedade para o direito à propriedade de bens externos.

Dentro de toda a discussão, um pequeno grupo libertário se denomina fusionista. São os que fundiram os preceitos libertários de não-agressão e respeito aos direitos fundamentais (vida, liberdade e propriedade) aos preceitos conservadores de tradição, prudência e ao estilo de vida conservador fundamentado por uma moral judaico-cristã.

O problema do fusionismo é que, na fusão, uma parte sai prejudicada. Funciona como na fusão entre duas grandes empresas. Algumas fusões podem ser benéficas para ambos (sempre o são para os donos e diretores que escolheram voluntariamente se unir, realizando uma troca econômica), outras fusões podem não ser benéficas. Na mudança de gestão, muita coisa é reorganizada e muitas pessoas trocam suas funções e perdem seus empregos. O que esta analogia tem a ver com o fusionismo? Ora, no fusionismo os conservadores mantêm todo o seu arcabouço teórico e seus pressupostos filosóficos. O libertário que participar desta fusão terá de abandonar a defesa total da liberdade para que possa apenas defender a liberdade econômica (vou ignorar aqui as diferentes ideias de liberdade econômica presentes do libertarianismo, pois para muitos autores liberdade econômica não é capitalismo). Os libertários possuem convicções morais pessoais como pró-escolha, pró-vida ou eviccionismo, o que os libertários advogam é a não intromissão das convicções morais pessoais nos determinantes político-legais. Tornar-se um fusionista é ter de abandonar tal posição de não-intromissão, visto que a régua torna-se o conservadorismo.

Um conservador pode ser libertário, e muitos o são. Por isto é preciso perguntar: quem perde com o fusionismo? O fusionismo proposto sempre possui os ares de: “Vamos nos aliar na defesa da liberdade de empreender e na diminuição do tamanho do estado. Esqueçam as liberdades civis e o direito das pessoas serem burras para consigo, tomando péssimas decisões, abusando de substâncias ou propondo que doadores de órgãos, sangue ou medula recebam por ajudar os outros.” Este libertarianismo é um libertarianismo incompleto. Uma liberdade pela metade não é liberdade.

Não é uma questão dogmática, sectária ou utópica. No mundo há diferentes formas de ver a realidade. A forma de ver do libertário se distingue da conservadora. Os conservadores se consideram os corretos assim como os libertários se consideram corretos. Mas são sempre os outros que precisam de uma ajuda para ter o cisco do olho retirado. Quando começarão a retirar a trave de seus próprios olhos?

*Bacharel e licenciado em Filosofia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Mestre em Educação, Arte e História da Cultura pela mesma instituição. Leciona disciplinas para os cursos de Pedagogia e Administração da Faculdade Sumaré e é editor-executivo da Bunker Editorial. Colabora com diversos institutos e publicações como Instituto Ludwig von Mises Brasil (IMB), Liberzone, Portal Libertarianismo (L+) e Estudantes Pela Liberdade (EPL), sobre temas referentes à educação, política e cotidiano. Foi tutor de formação do Instituto de Formação de Líderes de São Paulo (IFL-SP) em 2013. Atuou como professor de Filosofia na Rede Estadual de Ensino de São Paulo durante 6 anos e colaborou com artigos sobre Filosofia para o portal Mundo Educação. Tem poesias publicadas em três antologias do Bar do Escritor

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Um comentário em “Uma defesa do desfusionismo, ou uma aula para Filipe Altamir

  • Avatar
    11/07/2014 em 5:46 pm
    Permalink

    Celeti, Gostaria de perguntar duas coisas: Você salientou que o libertário que se prejudicaria no fusionismo, e só quem ganharia é o conservador, ou a direita em si. por que isso?
    E também, Até dentro dos libertários se existe divergências até mesmo na defesa da liberdade, como os anarcocapitalistas, neomutualistas(carson) e assim em diante? quais seriam as maiores discrepâncias entre essas correntes para com a corrente libertária que prega o fusionismo? grato.

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