Por que o indivíduo – não a família – é o personagem central do liberalismo
É possível e até provável que muitos espinafrem este texto tendo lido apenas o título, como de praxe em nosso tempo de redes sociais. Na tentativa, talvez vã, de amenizar esse efeito, começo por pontuar como enxergo a importância da família.
O indivíduo, no mundo real, não existe sozinho, salvo se estiver na condição de eremita. De qualquer modo, ele terá nascido em determinado povo, em determinada época, da junção de determinado homem com determinada mulher, em determinada comunidade, com trajetórias pregressas definidas que, em maior ou menor medida, exercerão impacto decisivo sobre a sua formação. O indivíduo “enfrenta” o mundo em associações geralmente inevitáveis, sendo a mais basilar de todas a própria família, que é uma derivação dos imperativos da própria natureza, de vez que nossa espécie se multiplica mediante uma reprodução sexuada e estabelecendo laços de consanguinidade – ao que se pode acrescentar o próprio casamento, que é a união de duas famílias na constituição de um novo núcleo familiar, e a adoção, que é o ingresso, em uma família, como filho, de uma pessoa que não tem com ela laços consanguíneos. A família detém, por exemplo, sobre as crianças, um determinado poder, como sua tutora legal; logo, é uma associação de indivíduos que dispõe de um status especial, sendo reconhecidas a ela certas prerrogativas sobre outro indivíduo em função das necessidades naturais que esse indivíduo tem na infância de ser sustentado e guiado.
Qualquer liberal que negar esses fatos se entregará a um discurso puramente abstratista e negligenciará a realidade. Não o afirmo sozinho, nem de longe; muitos liberais sensatos, como Milton Friedman, Tocqueville ou Montesquieu, reconheceriam a importância dos corpos intermediários da sociedade, esses agrupamentos menores mediante os quais os indivíduos alcançam seus fins na vida em vez de lidarem apenas diretamente com o poder do Estado, perante o qual, isolados, tenderão a ser impotentes. A família é o mais básico e provavelmente o mais essencial e natural entre eles.
A família é, portanto, uma instituição fundamental, e não estou, absolutamente, discordando disso. No entanto, o que afirmo é que o personagem principal do discurso liberal é o indivíduo, não a família; o liberalismo é, no terreno das tradições filosófico-políticas e sociais, um desenvolvimento do individualismo essencial da civilização do Ocidente, como diria Hayek, e não do “familismo”. Minha intenção é refletir aqui sobre o porquê – e adianto: há um motivo claro e imperioso para isso.
Por essencial que seja a família, como toda instituição, ela é composta de indivíduos, de seres humanos, e, em consequência de seus vícios e comportamentos infelizes, ela, se pode ser acolhedora e maravilhosa, também pode ser terrível e tirânica. Há pais que oprimem filhos; há cônjuges que se agridem barbaramente; há netos que maltratam seus avós. A lista poderia continuar, com casos tenebrosos que, de tão assustadores para a maioria, nos soam até antinaturais, mas fazem parte do gênero humano. Um discurso em nome tão-somente da “família” não basta, do ponto de vista lógico, para proteger as pessoas que são vítimas de suas famílias – ou, por outra, daqueles que as compõem, porque, vale sempre frisar, toda associação é constituída de indivíduos, os verdadeiros feitores de toda ação.
O “discurso da família”, isoladamente, por nobre que seja, é insuficiente. Em teoria, a máfia dá grande valor à família. Nos regimes oligárquicos de natureza clânica e nos sistemas de castas, a família é a principal unidade de medida para todo juízo de valor. Se a pessoa está numa determinada família, ela tem direito a todo o poder, todo o luxo, toda a autoridade e todos os privilégios; se não está, ela não tem direito a nada. Em determinados regimes de castas, mesmo aqueles que estão nas castas consideradas superiores podem enfrentar restrições à sua liberdade que lhes podem causar sofrimento, ainda que, em tese, sejam privilegiados; por exemplo, ao nascer em determinada família, que pertence a determinada casta, seu sobrenome e seus laços consanguíneos determinam que, forçosamente, eles executem determinadas tarefas ou atividades profissionais e não outras, para as quais, talvez, tenham maior aptidão ou inclinação; que sejam obrigados a se relacionarem amorosamente com determinadas pessoas e não com outras, porque umas seriam de “boas famílias” e outras não, pertencendo a um patamar considerado socialmente inferior; entre outras exigências descabidas.
A única forma de contestar o autoritarismo das castas, dos clãs, das famílias que se associam ao poder mediante o patrimonialismo, dos parentes cruéis ou violentos, é reconhecendo que o indivíduo, a pessoa humana, é uma realidade, não uma ficção ideológica; que a realidade desse indivíduo se reconhece, entre outros motivos, pela sua capacidade de raciocinar, tomar decisões, discordar e manifestar preferências e opiniões, o que o torna uma unidade moral efetiva.
Essa foi a grande mensagem que o liberalismo proclamou mais altissonante na modernidade. É por isso que, sem que o individualismo liberal seja inimigo da família, o seu personagem principal é o indivíduo. A liberdade e a dignidade da família, como de qualquer outra associação ou instância coletiva, não pode ser alcançada senão mediante o reconhecimento da liberdade e da dignidade do indivíduo, da vida humana em si mesma, independente de qualquer outra para ser considerada como tal; caso contrário, se julgássemos o indivíduo “incompleto” e “dependente” para ter valor, ele sequer poderia ser responsabilizado por suas próprias escolhas.
O liberalismo, muito ao contrário de negá-las, enaltece a cooperação e a solidariedade; estas, porém, sempre serão feitas, em última instância, por indivíduos. Perder esse fato de vista é, mais do que equivocado, extremamente perigoso, e a História é farta em exemplos para demonstrá-lo.