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“O que a Filosofia não é – e o que fizeram dela no Brasil”: crítica das religiões políticas

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O professor de Filosofia André Assi Barreto, mestre e doutorando em Filosofia pela USP e licenciado em História e Geografia, me enviou seu pequeno livro O que a Filosofia não é – e o que fizeram dela no Brasil, lançado pela editora Armada. O trabalho, com pouco mais de cem páginas, prefácio de Márcio Scansani e prólogo de Joel Gracioso, procura objetivamente restabelecer um elo com os entendimentos clássicos acerca da Filosofia e seus fundamentos operativos, criticando a exploração de seu instrumental e sua reputação pelos intelectuais contemporâneos, particularmente os brasileiros.

Para ele, o livro é “um arroubo de revolta e confissão contra o que fizeram não exatamente contra minha ‘profissão’, pois a Filosofia não é uma atividade profissional, mas contra a área do conhecimento humano que escolhi estudar e acompanhar”. Desde a introdução, ele se prontifica a criticar a consideração da Filosofia como sendo tão-somente uma “‘comentariologia’ de clássicos, com viés ideológico bastante explícito” ou o ofício de “filósofos de palco”, “figuras de voz empostada, sucessos televisivos, autores de grandes editoras que, segundo eles próprios, fazem ‘divulgação’ da filosofia e que não deixam para trás nenhum sofista – com sua oratória e técnica apuradas e a todo vapor na tarefa de dizer tudo sem dizer nada, trivialidades, truísmos e frivolidades travestidas do que seria a ‘Filosofia’”. Contra tais exibições performáticas da Filosofia, seu propósito é dar a ela o que lhe é devido, “nem mais nem menos”.

A Parte I do opúsculo, “O que a Filosofia não é”, é mais especificamente voltada a elencar as caracterizações da Filosofia realizadas na atualidade e que, na concepção de Assi Barreto, seriam inadequadas. Limito-me a relacionar algumas das situações que se apresentam como manifestações da Filosofia e que o autor considera afastadas de sua proposta essencial, ou ao menos como reduções de sua conceituação adequada: o ofício do profissional que atualmente se chama de coach, calcado no uso de “frases de efeito com profundidade aparente dedicadas a impressionar o público leigo”; a concepção da Filosofia como um mero “adereço discursivo para outras áreas do conhecimento” – os famosos “aprenda Filosofia para ser um bom empresário” ou “aprenda Filosofia para ser uma boa dona de casa”;  a ideia de que ser um filósofo é ser um professor de Filosofia ou dar aulas sobre o tema, ou de que ser filósofo é “pensar”, quando o ato de pensar não é, de modo algum, monopólio dos filósofos – ainda que o autor consinta em que a maioria das pessoas dispõe de “inquietações filosóficas naturais”; o uso de construções retóricas herméticas apenas por afetação; “ser crítico” – o autor pontua que, ainda que não se possa dizer que algumas concepções teóricas, como o criticismo kantiano e a teoria crítica da Escola de Frankfurt, são não-filosóficas, a Filosofia não pode ser definida pura e simplesmente por um espírito demolidor “do contra”, pela rebeldia inconsequente no campo das ideias; por fim, que a Filosofia seria um campo do pensamento exclusivo das esquerdas políticas.

Sobre este último ponto, o autor argumenta que “ninguém que compreenda uma atividade intelectual, especialmente aquela que escolheu para si, aprecia que ela seja reduzida a mera caixa de ressonância ideológica, seja lá de qual ideologia for. O norte de qualquer pesquisa deve ser a busca pela verdade, por explicações cada vez mais completas sobre a realidade, e não o sacrifício desta no altar da ideologia da moda, incluso qualquer eventual corpo ideológico de ‘direita’. No Brasil – embora este fenômeno não seja exclusivamente brasileiro -, a Filosofia, junto com as ciências humanas num geral, não escapou da identificação com pensamento revolucionário, às vezes travestido de ‘crítico’, como dito anteriormente, de esquerda”.

A própria filosofia marxista é reputada pelo autor como uma das inspirações desse fenômeno, considerando-se que Karl Marx (1818-1883) somente enxergava valor em uma atividade filosófica que estivesse engajada na atuação política de transformação do mundo. Com isso, a maioria dos estudantes pressupõe sempre, nas escolas brasileiras, que seu professor de Filosofia será “de esquerda, engajado, grevista, ativo em manifestações, filiado ao sindicato e… marxista”. O autor arremata que a prática da Filosofia não deve existir apenas a reboque de uma corrente ideológica específica, tal como não há que se falar em “metafísica conservadora, biologia molecular liberal, gastronomia anarquista ou medicina trotskysta”.

A Parte II do livro, “O que a Filosofia é, afinal?”, pretende, enfim, tomar parte ativa na discussão do conceito. Barreto começa dialogando com os críticos que alegam que a Filosofia não tem valor porque suscita vertentes extremamente distintas, pontuando que o mesmo pode ser dito acerca de diversos campos do pensamento e do conhecimento; afirma que a Filosofia “discute questões perenes ao espírito humano (ciências humanas são ciências do espírito) e que, portanto, nunca encontrarão respostas exatamente definitivas, estanques e convergentes entre todos que se debruçam sobre elas e tentam respondê-las”. Ainda adotando um tom negativo, mas agora, mais do que sobre a Filosofia, sobre o filósofo, Barreto diz que o filósofo “não é um coach de relacionamento, não é um palpiteiro televisivo, não é (necessariamente) um bom orador, não é um memorizador de opiniões filosóficas alheias, não é um crítico de arte, analista de novidades científicas ou políticas”. O filósofo deve, para merecer o título, abordar os problemas filosóficos à luz, sim, da tradição filosófica já existente sobre aquele determinado assunto, após o que talvez seja capaz de, aplicando as consequências lógicas do confronto entre as ideias disponíveis, trazer alguma solução diferente para o tema em comento.

A partir daí, Barreto, tomando o cuidado de dizer que não trataria da questão exclusivamente expondo a opinião de um pensador, qualquer que fosse, utiliza o instrumental teórico de Eric Voegelin (1901-1985), filósofo germano-americano ao qual tem dedicado seus estudos. O principal motivo para lançar mão de Voegelin é a defesa que este autor fazia da importância da realidade, o que Barreto vê como fundamental em tempos de “pós-modernismo ultra-relativista, estruturalismo, pós-estruturalismo, pragmatismo e até niilismo”. Apresenta a teoria voegeliniana de que o gnosticismo, antiga corrente cristã combatida pela Igreja Católica, propondo um “tipo especial e diferente de conhecimento, associado a revelação especial e a intuição individual, portanto e, ainda, por consequência, restrito a alguns poucos”, pode servir de arquétipo para compreender fenômenos teóricos mais recentes. Em sua dimensão histórico-política, o gnosticismo proporia a possibilidade de corrigir as imperfeições do mundo dentro da própria História, “a partir, justamente, do conhecimento revelado a alguns pares de pessoas”.

Nesse momento de sua abordagem, Barreto faz referência a Meira Penna, um dos ícones do Instituto Liberal no passado, que também citava Voegelin, aplicando o arquétipo do pensamento gnóstico aos defensores de doutrinas políticas, concebidas por teóricos iluminados que seriam capazes de revolver a humanidade e purgá-la de seus conflitos, tal como se autocompreenderiam os intelectuais marxistas. Nasceriam assim as “religiões políticas” modernas, como o nazismo e o Stalinismo, englobando “culto à personalidade (…), infalibilidade do líder (…), hinos, salvação, perdição, expurgo de pecados, condenação de pecadores, perseguição ao ‘mal’ (seja o judeu, seja o burguês), redenção, paraíso e, destaca-se, escatologia, todas características associadas a religiões formais, mas de que se investem movimentos políticos revolucionários. Embora o próprio Voegelin tenha formulado críticas mais tarde à expressão, Barreto considera não haver óbice sério ao seu emprego.

Ao contrário dessa mentalidade, a Filosofia, que “se debruça sobre a realidade e sua estrutura como seu objeto de estudo”, deveria, antes que tentar uma transformação miraculosa dessa realidade, tratar de compreendê-la. Uma profunda crise nas ciências humanas, entretanto, está, segundo Barreto, obscurecendo o conceito de realidade, o que, ao menos em parte, adviria de uma rejeição sistemática do transcendente e do metafísico, oriunda do cientificismo que aparece em correntes aparentemente muito distintas como o Positivismo comteano e o Marxismo. É assim que Barreto afirma que “livrar-se da ideologia”, livrar-se do arquétipo gnóstico, livrar-se da sanha salvacionista e messiânica dos “religiosos políticos”, “é uma etapa essencial para a restauração da realidade, que é objeto da Filosofia”. Essa restauração implica uma restauração da própria linguagem, isto é, dos códigos usados para representar as ideias na pseudodiscussão contemporânea, que estão deturpados e domesticados por ideologias, principalmente as ditas “progressistas”, transformando tudo em um “tribalismo” imbecilizante.

Conclusivamente, Barreto nos diz que a Filosofia é “o estudo pormenorizado, estrutural, eventualmente sistemático (mas não necessariamente), com ambições totalizantes (isto é, não sobre recortes específicos) da realidade”. De Voegelin, novamente, ele retira o resgate da Filosofia como Platão a entendia, em oposição à filodoxia, isto é, o amor à opinião, à versão subjetiva e passageira, a um “nível inferiorizado de conhecimento”. Em uma seção de anexos, Assi Barreto critica as reflexões de autores de inspiração marxista no Brasil, Marilena Chauí e Caio Prado Jr., que naturalmente desenvolveram abordagens opostas à sua, e mostra como essas abordagens escravizam a Filosofia à função de arsenal dos propósitos marxistas. Arremata: “a tentativa de torcer a realidade até que esta se enquadre em certo ponto de vista, mesmo quando esse enquadramento implica jogar mais da metade da história da Filosofia fora, por exemplo, é jogo ideológico bem baixo. Que isso seja perpetrado por acadêmicos respeitados, que gozam de gordos salários (que os colocam na classe média alta da população brasileira) pagos pelas classes mais baixas, deveria ser sinal de escândalo, mas, enquanto não o é, deveria ser sinal ‘do que fizeram da Filosofia no Brasil’, ex-candidato a subtítulo desta obra, e porque nossa humilde contribuição voegeliniana e ‘restauracionista’ da realidade se faz necessária”.

Não sou acadêmico de Filosofia, muito menos um filósofo; sou, no máximo, um divulgador de ideias, ou, como Assi Barreto gentilmente registrou em sua dedicatória, um escritor, único título que realmente ambicionei desde a infância. Boa parte de meu trabalho até aqui consistiu precisamente em comentar e divulgar autores nacionais e internacionais e suas contribuições para refletir, em especial, sobre o problema da liberdade, atuando no campo do liberalismo. Também preciso dizer que não estou devidamente familiarizado, enquanto escrevo estas linhas, com as obras de Voegelin, conhecendo-o justamente apenas a partir de “comentadores” ou referências indiretas. Dessa forma, não estou na posição ideal para apreciar todo o conteúdo do opúsculo de Barreto, o que outros leitores poderão fazer melhor.

Entrementes, já que o autor falou bastante na pretensão necessária de restaurar a realidade, parece-me que diversos de seus apontamentos são perceptíveis por qualquer um que enxergue o real status da intelectualidade – particularmente, da intelectualidade pública – no Brasil, conquanto boa parte dos problemas aí diagnosticados também se deva poder observar em outros cantos do planeta. Se parte preciosa da Filosofia consiste em conceber uma gama séria e relevante de perguntas, o simples fato de apontar adversidades reais, e gigantescas, que nos devem interessar a todos, já me parece justificar a sugestão de que a obra seja consultada.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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