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A questão do conhecimento (segunda parte!)

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Para ler a primeira parte deste artigo, clique aqui.

III. Os equívocos do socialismo

Em uma sociedade socialista, em que uma autoridade central leva às últimas consequências o controle sobre a vida dos cidadãos, João, Maria e José terminariam frustrados por serem impedidos de aumentar a satisfação por meio de suas ações. Mesmo que José percebesse que João precisava do meio de que só Maria dispunha, ele não poderia procurar Maria, comprar-lhe o referido meio e depois revendê-lo para João, a não ser que o fizesse no chamado mercado paralelo. O socialismo é um desastre completo. E o intervencionismo – definido como uma forma mais branda de socialismo, ou como social-democracia – também leva a resultados trágicos no longo prazo. Convém examinarmos essas afirmativas com atenção, primeiro apontando individualmente os principais problemas do socialismo e em seguida mostrando a contradição dos sistemas mistos entre o socialismo e o capitalismo, a chamada terceira via, à luz da filosofia política.

O socialismo é um erro intelectual

Em um sistema socialista, existe um órgão central, um órgão de planejamento, do qual emanam os comandos ou ordens impostos à vida social, em que se incluem, evidentemente, as ações no campo da economia. A atuação desse órgão é essencialmente coercitiva e se sobrepõe, em nome do coletivismo, aos planos individuais de ação e às aspirações de cada cidadão. Não importam os desejos de João, Maria, José ou de quem quer que seja, mas as necessidades coletivas, ente tão abstrato quanto atraente para fins populistas e totalitários.

É evidente que um sistema de organização social e econômica fundamentado dessa forma é um enorme erro intelectual, pelo simples fato de que é impossível que o órgão central, ao qual cabe tomar a maioria das decisões, sobrepondo-as às decisões individuais, possa dispor de um conjunto de informações ou conhecimento suficiente para que os seus comandos tenham efeitos coordenadores sobre o sistema social.

Cada agente possui um conjunto de informações individual de natureza prática e não passível de articulação, que está sempre disperso e se apresenta oculto. Sendo assim, não é logicamente aceitável a suposição de que esse conjunto, bem como os dos milhões de outros indivíduos, possa ser transmitido para o órgão central. Isso ocorre tanto porque o volume de informações é muito grande, como, principalmente, porque está disperso na mente dos habitantes da sociedade, sendo, portanto, impossível expressá-lo formalmente e transmiti-lo explicitamente ao órgão de controle.

Ademais, sabemos que a informação importante para a vida em sociedade é criada e transmitida de uma forma implícita, descentralizada e dispersa, não conscientemente deliberada, por ser uma ordem espontânea, um processo evolutivo em que os agentes aprendem, mediante tentativas e erros, a disciplinar o seu comportamento em função dos comportamentos dos demais agentes, mas sem se darem conta disso. Esse conhecimento que vai sendo aperfeiçoado continuamente ao longo do tempo real é condição inescapável para que possa ocorrer a necessária coordenação social entre as diferentes ações individuais. Em outras palavras, isto quer dizer que um sistema socialista não tem as condições mínimas para que possa funcionar razoavelmente.

Mais ainda: sob um ponto de vista dinâmico, os agentes estão permanentemente criando ou descobrindo novas informações e conhecimentos e é naturalmente impossível transmitir ao órgão central informações ou conhecimentos que estão por surgir ou surgindo, mas que ainda não existem efetivamente. Por exemplo, suponhamos um agente que esteja pensando em vender suas ações em bolsa para abrir uma padaria, mas que ainda não tenha decidido se vai ou não realizar a operação. Como ele poderia transferir essa informação ou conhecimento latente ao órgão central, se ela ainda está encerrada em sua mente e somente nela? Para os mais radicais, a “solução” seria abolir os mercados de ações e as padarias privadas…

E não é só isso. Quanto mais forte é o poder coercitivo do órgão central, maiores serão os obstáculos ao exercício da função empresarial e maiores as dificuldades para se descobrir as informações práticas de cunho empresarial imprescindíveis para a existência de coordenação social. Como ressalta Soto (op. cit., p. 99, tradução livre), “o órgão central se encontra, portanto, diante de um dilema inescapável, pois necessita fortemente da informação que vai sendo gerada pelo processo social, informação que não consegue obter em nenhum caso, porque, ao intervir coativamente em tal processo, destrói a capacidade criadora de informação e, se não intervém, tampouco obtém qualquer informação”.

Os órgãos centrais nesses sistemas são formados por seres humanos como outros quaisquer, sejam eles ditadores, caudilhos, sindicalistas, militares, civis, intelectuais ou políticos eleitos pelo povo e, sendo assim, não é razoável esperarmos, por melhores e mais “puras” que possam ser as intenções de seus integrantes, que possuam o dom da onisciência, que lhes permita absorver, saber e interpretar ao mesmo tempo todos os conjuntos de informações que se encontram dispersos, de forma individual, nas mentes de todos os agentes existentes na sociedade, conjuntos esses que estão permanentemente se alterando e renovando ao longo do tempo. E observemos que isto é verdade mesmo na presença do extraordinário desenvolvimento da informática, porque esses instrumentos tendem a aumentar fortemente a capacidade dos agentes individuais de descobrir novas informações práticas, dispersas e ocultas, prejudicando ainda mais a capacidade de obter as informações necessárias por parte do órgão planejador. Adicionalmente, são formados por pessoas, isto é, por indivíduos que, como todos os demais, buscam fins particulares e isso os faz buscar com maior disposição as informações importantes para esses fins, e não aquelas relevantes para o “bem comum” ou a “justiça social”.

Na verdade, os planejadores nem mesmo conseguem saber qual o seu o grau de ignorância a respeito das informações necessárias para promover a coordenação. E existe aí um paradoxo insolúvel, o de que quanto maior o grau de coerção por eles imposto, menores são as possibilidades de atingir os seus propósitos, por mais bem intencionados até que possam ser, porque, nesses casos, a ausência de coordenação aumenta, gerando distorções e desajustes nos mercados, que crescem progressivamente com o tempo.

Outros defeitos dos sistemas intervencionistas

A atitude arrogante da pretensão do conhecimento que caracteriza todos os sistemas intervencionistas, desde o socialismo radical até as suas formas mais brandas como a social democracia e que leva ao que Hayek denominava de construtivismo e engenharia social, a par de constituir-se em grave erro intelectual, produz uma série de problemas que, inevitavelmente, determina seu fracasso. Listaremos em seguida alguns desses defeitos intrínsecos e inerentes a essa concepção coletivista da sociedade.

O primeiro deles já foi comentado. Trata-se da impossibilidade desses sistemas de promoverem a coordenação e da consequente desorganização da sociedade que esse fato produz, levando a que muitos dos agentes sejam levados a atuar de maneira contraditória, o que se traduz em uma indisciplina comportamental generalizada, com a ocorrência de erros que não são vistos como tal, exatamente pela inexistência de coordenação. O resultado é uma frustração também generalizada dos planos individuais. Essa situação costuma servir como pretexto aos planejadores para intensificarem as intervenções na vida social e econômica, o que, evidentemente, só faz com que o problema se agrave. Os efeitos obtidos, na maioria das vezes, acabam sendo exatamente opostos aos que os planejadores idealizam. Um exemplo evidente dessas situações são os controles de preços, com o estabelecimento de “preços máximos” e “preços mínimos”, em que os resultados, invariavelmente, são, no primeiro caso, pressões altistas e, no segundo, pressões de baixa nos preços controlados.

O segundo é a inibição no processo de criação de conhecimento, provocada pelo desincentivo à geração de informações e à descoberta sobre os desejos efetivos dos consumidores, que se reflete na baixa qualidade dos bens e serviços produzidos pelo sistema econômico e na escassez. Na verdade, muitas vezes esse estado de escassez nem pode ser percebido, porque sua percepção precisaria ser sentida pela ação empresarial, mas esta ou é impedida de existir ou é fortemente influenciada pelo excesso de regras com o caráter de comandos que emanam do órgão central.

Terceiro, os sistemas intervencionistas são um convite à realização de maus investimentos e ao desemprego de fatores de produção, porque introduzem artificialmente no horizonte uma nuvem imensa de falta de informações e de distorções, que prejudica irremediavelmente a visão dentro dos mercados. Com efeito, o desemprego é um dos efeitos mais típicos da coerção institucional que impede o livre desempenho da ação humana e, portanto, da função empresarial. O “remédio” adotado historicamente pelos governos socialistas é o de mascarar ou, simplesmente, esconder as estatísticas sobre o emprego.

Um quarto efeito perverso do intervencionismo é que ele tende a produzir mais corrupção do que os sistemas em que as liberdades individuais prevalecem e esse vício se manifesta tanto por parte dos que ocupam o poder quanto pelo lado dos demais agentes, por uma razão muito simples: sistemas centralizados tendem a concentrar o poder e a criar uma série de dificuldades para as ações empresariais, o que, em razão das fraquezas humanas, estimula a venda de facilidades. Quando os potenciais empreendedores percebem que será mais fácil alcançar os seus fins se dedicarem o seu tempo a tentar influir nas decisões governamentais, acabam abandonando ou colocando em segundo plano exatamente a essência de sua função social, que é a de descobrir oportunidades de lucros por meio dos mercados e coordenar assim as atividades econômicas. Isto corrompe o processo social espontâneo, substituindo-o por um nefando processo de luta pelo poder. Os agentes que não conseguem êxito em sua tentativa de influenciar as decisões dos planejadores, por sua vez, são tentados a despender uma parcela maior de sua atividade empresarial e de sua criatividade para tentar evitar os efeitos prejudiciais a eles impostos pelos comandos, em troca da concessão de vantagens, privilégios, propinas e outras formas de corrupção para os que têm o controle das normas. O socialismo, portanto, promove desvios da função empresarial. Do ponto de vista dos membros do órgão central, ou seja, daqueles que ditam as regras de coerção, o intervencionismo os estimula também a exercer de maneira viciosa sua própria atividade empresarial e sua engenhosidade, porque seu objetivo maior passa a ser o de manter-se no poder para assegurar seus privilégios. Fomenta, portanto, o surgimento e fortalecimento de grupos de interesses – privados e públicos – que sirvam de suporte à manutenção do poder e de todas as benesses que ele proporciona. Não é por outra razão que os sistemas intervencionistas costumam usar e abusar da propaganda oficial, em que os donos do poder tentam passar mensagens fantasiosas de seus feitos, para iludir a população e manter os atuais governantes no poder. O socialismo padece, por sua própria essência, de megalomania crônica e contém o germe da propensão à mentira.

Em quinto lugar, o intervencionismo tende a estimular reações por parte dos agentes no sentido de desobedecerem aos comandos e ordens exarados pelo órgão central, que se manifestam em ações à margem da legalidade – ou da pretensa legalidade – imposta pelos comandos. Isto significa que ele estimula o surgimento da economia informal, especialmente naqueles setores da economia em que a coerção, sob a forma de regulamentações, é mais forte. Essa reação existe tanto nas sociedades socialistas como naquelas que optam por um sistema mais brando de intervencionismo ou social democracias, com a ressalva de que nestas últimas a corrupção e a economia informal tendem a se desenvolver mais depressa exatamente nos setores em que o intervencionismo estatal é mais forte.

Sexto, por indução simples, percebe-se que o intervencionismo impõe diversos obstáculos à criatividade dos indivíduos e, como esta é um fator importantíssimo para o desenvolvimento da economia e da sociedade, provoca atraso econômico, político, cultural e tecnológico. Ao bloquear a criatividade humana, emperra o avanço em todos os setores da vida social.

Por fim – e para não nos estendermos em demasia – há outro efeito corrosivo do socialismo e do intervencionismo: trata-se de um sistema que se constitui em verdadeira aberração moral. Perverte os conceitos de lei e de justiça, ao instituir hábitos e concepções viciosos e agride os mais elementares direitos inerentes à pessoa humana, a começar pelas liberdades individuais, como veremos no item seguinte. Além disso, por ser fundamentado no conceito de “luta de classes”, o socialismo é extremamente desagregador: é característico de seu ethos lançar patrões contra empregados, pobres contra ricos, brancos contra negros, mulheres contra homens, heterosexuais contra homossexuais, porque, para que possa encontrar eco entre as massas de Ortega y Gasset e mergulhar todos na segunda realidade de Voegelin, é preciso desagregar, fomentar o ódio, lançar irmãos contra irmãos, porque, sem esse vício moral, ele, simplesmente, não pode vicejar.

Mas sua imoralidade vai além. Ao estabelecer a igualdade de resultados, o socialismo desestimula a ética do trabalho, por razões óbvias: se João, trabalhador, dedicado, bem preparado e com espírito de iniciativa, sabe de antemão que vai ganhar o mesmo que Inácio, preguiçoso, desleixado, sem estudo e que prefere viver às custas dos outros, é evidente que João não se sentirá estimulado a colocar em prática as suas habilidades, limitando-se a fazer o essencial, que lhe garantirá a renda estipulada pelo Estado.

Como veremos no último capítulo deste livro, o socialismo não é compatível com uma ordem social que estimule a liberdade e a virtude dos indivíduos, nem em suas formas mais pesadas, nem nas mais brandas.

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Ubiratan Jorge Iorio

Ubiratan Jorge Iorio

É economista, professor e escritor.

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