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Sobre o paciente de R$ 800 mil e a saúde pública

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BERNARDO SANTORO*

solirisEm uma das melhores reportagens do ano, a Revista Época traz a história do brasileiro Rafael Fávaro, que possui uma doença raríssima que o debilitaria enormemente, mas graças a um remédio custeado, ainda que indiretamente, pelo poder público, faz com que ele possa viver uma vida normal. O único problema é o custo desse remédio: R$ 800.000,00 (oitocentos mil reais) por ano.

A reportagem é particularmente feliz por expor vários problemas relacionados ao tema: (i) o fato de somente o Brasil garantir direitos tão extensos no âmbito da saúde para todos os seus cidadãos; (ii) a interpretação do que é saúde; (iii) recursos são finitos, e o uso do dinheiro para uma pessoa importa no não-uso de várias pessoas; (iv) o problema da escolha pública; (v) a existência de um substitutivo para o tratamento caro, que pode levar da cura completa até a morte, sem resultados garantidos; (vi) a indústria de verbas para medicamentos caros; e (vii) o problema da certificação de remédios pela ANVISA.

Vamos tentar comentar esses sete pontos do ponto de vista liberal.

Do ponto de vista teórico, dizer que um fato que depende do seu custeio por terceiros pode ser um direito é de uma imensa temeridade. É a realização da força estatal sobre financiadores (pagadores de tributos) na direção de um privilégio para o destinatário do direito. Direitos positivos sempre são entregues às custas de alguém, ainda que esse alguém também seja a coletividade.

Direitos, do ponto de vista natural, só fazem sentido se eles existirem por si mesmos, de modo que a interferência da lei seja apenas no sentido de que outras pessoas devem respeitá-la e não transgredí-la. São os direitos negativos.

Portanto, filosoficamente falando, a saúde não deveria ser considerado um direito, pois isso importa na escravidão de quem o custeia. Mas na prática, o direito à saúde está consagrado na Constituição, com apelo de praticamente toda a sociedade brasileira, e a prestação desse serviço deve ser a ele entregue de maneira direta ou indireta.

No entanto, nem mesmo os países com maior pujança econômica entendem o direito à saúde como algo tão amplo quanto o Brasil. No Brasil, saúde é direito de todos e dever do estado, não importando quanto custa. A própria ideia de saúde é um conceito sócio-jurídico indeterminado. O que é saúde? Para muitos tribunais, o direito à saúde engloba mais que o serviço médico, e juízes estão, dentro da ideia de direito à saúde, obrigando prefeituras a fornecer bens e serviços que margeiam a atividade, como fraldas, pastas de dente e até mesmo água. Com isso, abre-se um leque de possibilidades para responsabilizar o estado pela entrega de um incontável número de bens e serviços, desde que haja uma mínima ligação com o conceito de saúde.

Já no exterior, o princípio da reserva do possível norteia o acesso à saúde pública, sempre de maneira muito parcimoniosa de forma a não debilitar exageradamente as contas públicas e, principalmente, o direito de outras pessoas. É noção básica de economia que desejos humanos são infinitos, mas recursos são escassos e finitos, e recursos públicos são mais escassos ainda. Na prática, a destinação de uma grande quantidade de recursos para um paciente importa na falta de recursos para uma grande coletividade de pessoas. Por mais que uma legislação bem-intencionada queira entregar saúde para todos, simplesmente não há dinheiro suficiente para isso, especialmente em um país relativamente pobre como o Brasil, ainda que todo o dinheiro público desviado por malversação ou roubo fosse estornado aos cofres públicos. Demandas de saúde são, como disse, infinitas.

E quem toma a decisão de onde alocar esses recursos? No caso de um sistema liberal privado, seriam os consumidores e os doadores de recursos para instituições de caridade, e essa organização certamente seria mais racional e eficiente. Mas vivemos em um país interventor e regulador, portanto, a maioria dessas decisões são feitas pelo governo. Em um governo democrático, essa decisão é feita pelo executivo, após deliberação junto ao legislativo.

Só que no Brasil não é esse o caso. Cada vez mais juízes é quem tomam a decisão de alocação de recursos com base no direito universal ao acesso a tudo. Só que juízes não se preocupam com orçamento público e com a economia. Preocupam-se única e exclusivamente com a lei, mas somente com a lei positiva, nunca com a lei econômica da escassez. Gestores acabam tendo que cortar despesas de outros lugares para tal finalidade, e o sistema de saúde está falindo as prefeituras brasileiras, com chancela da justiça.

Outro problema é que juízes e gestores não possuem pleno conhecimento técnico de saúde para saberem qual a maneira mais eficiente de se alocar os recursos. Os juízes certamente menos que os gestores (estes possuem algum corpo técnico lhes dando suporte). E saúde não se trata apenas de entregar um tratamento, mas sim o melhor e mais eficiente tratamento. Em casos limite, como o do jovem Rafael, existe um tratamento definitivo, o transplante de medula, mas que é arriscado. Como o custo do remédio não é bancado pelo paciente, ele prefere o tratamento caro e não definitivo, que vai sangrando os cofres públicos e o direito de outras pessoas terem acesso a tratamentos para suas moléstias. A operacionalidade de recursos públicos, que não pertencem a ninguém, retira da decisão o critério de racionalidade típico do sistema de mercado baseado em preços. Com isso, a escolha pública passa a ser um jogo completamente aleatório, dependendo do juiz que vai julgar, do médico que vai dar o laudo, do advogado que vai defender a causa e quase nada do gestor que gere o recurso público e foi escolhido por voto ou concurso para tal fim. Uma bagunça.

E nessa bagunça da irracionalidade do sistema de verbas que são de todos e não é de ninguém, instala-se logo um esquema de enriquecimento ilícito. Médicos recebem propina de laboratórios para forçar o paciente a usar remédios muito caros às custas do orçamento público. Uma indústria do medicamento caro. E o governo, que editou uma lei dizendo que remédios não autorizados pela ANVISA não pode ser custeados pelo governo, passa a usar a Agência politicamente a estimulando a não aprovar mais remédios caros, e conforme for o caso até descredenciando os mesmos, de forma a ter um argumento legal contra a entrega de determinados medicamentos.

Esse é o sistema único público brasileiro saúde. Não cabe aqui dar um tratamento definitivo ao problema, mas podemos afirmar, sem sombra de dúvidas, que tudo vem do fato de a saúde brasileira ser uma questão pública ao invés de privada. Enquanto não se racionalizar o sistema com a inserção de elementos de mercado, e princípios de racionalidade orçamentária, o Brasil verá na sua saúde um ralo gigante de recursos sem a contrapartida de eficiência esperada e com pacientes sendo privilegiados por terem bons advogados às custas de pacientes pobres. Como sabemos, sistema de privilégios não está presente apenas no setor de saúde brasileiro, mas em todos os outros, e até agora não se descobriu remédio para matar essa doença social.

*DIRETOR DO INSTITUTO LIBERAL

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