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“O mínimo sobre Marx”: uma valiosa contribuição

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A editora O Mínimo vem publicando livros de bolso com vistas a popularizar o acesso a diversos temas através de introduções inevitavelmente curtas, mas pretensamente eficazes. Um desses lançamentos é o livro O mínimo sobre Marx, de autoria da professora Marize Schons, que finalmente está fazendo o bem ao Brasil de publicar projetos editoriais de sua lavra.

O opúsculo é realmente muito breve em extensão: pouco mais de 110 pequenas páginas. Lê-se em menos de uma hora. Por isso mesmo, contudo, tenho certeza de que, se devidamente divulgado por quem deveria se interessar pela reflexão mais cuidadosa e a qualificação teórica de nossas lideranças em vez de pela fabricação improdutiva de slogans vazios, pode exercer o papel de poderoso antídoto contra simplificações tentadoras e vexames perfeitamente evitáveis por parte de liberais e conservadores ao falar sobre Karl Marx (1818-1883), o maior ícone intelectual da tradição socialista predominante, sobretudo, a partir do século XX.

Conforme afirmado na contracapa, o propósito da obra é ser “um ponto de partida para os estudos daqueles que, seja qual for sua posição política, queiram ampliar sua visão sobre um autor que, muitas vezes, fica limitado aos debates militantes”. Para atingir esse objetivo, Marize optou por apresentar Karl Marx pela sua sociologia, o que lhe permite explicar com maior abrangência os fundamentos de sua concepção filosófica e social, em vez de pela sua biografia ou pelo detalhamento de suas ideias econômicas.

Não obstante isso, ela descreve rapidamente na introdução o contexto de atuação da Liga Comunista, organização secreta de trabalhadores e intelectuais alemães em atividade no exterior cujos princípios foram explicitados por Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista em 1848. No contexto das transformações sociais operadas pelo capitalismo, Marize relaciona as tentativas revolucionárias de 1848, ainda que fracassadas, como elemento consolidador da liderança de Marx, estimulando esse autor a aprofundar sua proposta de confecção do “socialismo científico”, por oposição a todos os demais sistemas socialistas e comunistas anteriores a ele (autoproclamados como tal ou não), alguns dos quais seriam por ele alcunhados de “utópicos” e acusados de sentimentalismo e romantismo baratos.

A juízo da autora, o que torna Marx ainda um pensador pertinente nas discussões políticas e acadêmicas é o fato de “ter proposto uma teoria social que leva em consideração as transformações históricas e os conflitos inerentes às relações humanas”. Ela convenciona reservar o termo “marxiano” para o pensamento do próprio Marx e “marxista” para a tradição política que se estruturará em torno de sua figura e seu trabalho nas gerações subsequentes. Também pontua que o pensamento de Marx não permaneceu rigorosamente igual em todas as suas obras, existindo ao menos diferenças marcantes entre o Marx jovem e o Marx maduro, mas “o teor materialista” de seu pensamento “é permanente durante toda a sua trajetória, mesmo que em diferentes níveis”.

É basicamente a explicar a natureza desse materialismo que Marize dedica seu primeiro capítulo, “A crítica materialista ao Idealismo alemão”. O materialismo marxiano é compreendido como, grosso modo, uma concepção filosófica “que afirma que a realidade existe independente da consciência humana, que a matéria é uma condição concreta e que o comportamento da matéria pode ser conhecido”, sustentando ainda que “a matéria tem primazia em relação à mente, o que significa afirmar que as ideias não existem de maneira independente das condições materiais”.

A premissa materialista determina que as ideias e instituições existentes em determinada época estão subordinadas às relações materiais estabelecidas, ou seja, “por mais que Marx admita que a economia e as instituições sociais sejam interdependentes, o Estado ou a religião não são capazes de ter autonomia perante as condições econômicas”. A partir disso, Marize elucida os conceitos de infraestrutura e superestrutura no dizer marxiano, que seriam, respectivamente, os aspectos materiais e econômicos da organização social, de um lado, e, de outro, os aspectos institucionais, culturais, religiosos e valorativos. Sem avançar em que Marx negasse qualquer nível de autonomia, ainda que relativa, às elaborações superestruturais, como o Estado, Marize deixa claro que a transformação essencial da superestrutura se dá em subordinação às transformações operadas na infraestrutura.

Diante do Idealismo de Friedrich Hegel (1770-1831), que se propunha a investigar a evolução da consciência ao longo do tempo, apontando-a como algo que se desenvolve mediante o entrechoque de ideias opostas, o que daria às ideias em si a primazia, Marize acentua que Marx promoveu uma inversão, dando preponderância às transformações nas relações entre as classes e na dinâmica dos modos de produção (classificados, nas sociedades ocidentais, em uma sequência linear a partir das sociedades primitivas, passando por escravismo, feudalismo, capitalismo e, no futuro, socialismo e comunismo). Essas transformações se operariam não mediante o entrechoque das ideias, mas mediante o entrechoque material das classes dominantes e dominadas pelo esgotamento de suas relações de poder. Conclui com isso que “o materialismo histórico-dialético não só pretende ser um método capaz de caracterizar modelos de sociedades passadas e explicar o funcionamento do capitalismo presente na época de Marx, mas é também uma filosofia do devenir histórico”.

O segundo capítulo, “Crítica à filosofia política burguesa”, ressalta que, a despeito das exceções que resultaram na social-democracia, a natureza distintiva do pensamento marxiano e da tradição marxista em geral é o apelo à ruptura revolucionária mais ampla em detrimento do valor da continuidade político-cultural-institucional. A autora apresenta o conceito marxiano de ideologia, “um conjunto de ideias, concepções políticas, filosóficas, religiosas e morais” que, no entanto, nunca está subordinado às preferências ou movimentos individuais, mas se inscreve em um contexto de classe, estruturando-se em um discurso falsificador e alienador da realidade a fim de justificar a relação de poder vigente em determinado modo de produção. O capitalismo teria na ideologia burguesa um instrumento para ocultar a exploração de dominantes sobre dominados e supervalorizar uma suposta autonomia da consciência individual, que, na prática, na verdade, estaria subordinada ao contexto material, conforme explicitado no capítulo anterior.

Marize aborda também o problema do “fetichismo da mercadoria” que Marx enxergava no sistema capitalista, consistindo na distorção que atribui às mercadorias um valor próprio e independente do trabalho que as produziu. Explica que o filósofo não chegou a desenvolver uma teoria abrangente e sistemática de Estado, embora defendesse que os comunistas tomassem o poder estatal mediante a ditadura do proletariado, isto é, que a classe dominada no capitalismo promovesse uma revolução para ter o controle em suas mãos e destruir o sistema vigente através da estatização dos meios produtivos. O que Marize elucida ainda magistralmente é que, partindo da lógica de infraestrutura e superestrutura anteriormente exposta, levando-se em conta que a segunda se condiciona amplamente pela primeira, o Estado burguês ou liberal é o que é, na visão de Marx, em função das relações capitalistas. As relações socialistas implantadas pelo proletariado representariam a extinção gradual da relevância do Estado porque toda a superestrutura decorrente das contradições de classe seria esvaziada de sentido com a morte das bases materiais que a determinam. É por isso que Marx acreditava que adviria, com o tempo, fatalmente, “uma sociedade sem Estado em que as classes sociais são abolidas, a propriedade dos meios produtivos é comum a todos e a distribuição dos bens e dos recursos é amplamente igualitária”, dispensando-se do trabalho de pormenorizar como tal sociedade se estruturaria.

O último capítulo trabalha a “Crítica socioeconômica ao capitalismo” de Marx. Marize mostra como o filósofo rechaçava as discussões metafísicas sobre a natureza humana travadas por outros pensadores, tratadas como meramente ideológicas, preferindo enfatizar a humanidade como “a capacidade de produzirmos nossas próprias condições de existência, o que aponta para uma prática humana consciente (práxis) capaz de transformar a natureza para contemplar suas necessidades”.

Em decorrência disso, a autora analisa a importância do trabalho na concepção de Marx como uma atividade fundamental para a evolução da técnica, que, por sua vez, permite que os humanos moldem o mundo de acordo com suas necessidades. O próprio Marx reconheceria que o progresso tecnológico capitalista foi formidável, mas salientaria que resultou da alienação crescente do trabalho mediante a apropriação, por parte da classe dominante, da mais-valia, “a diferença entre o valor total produzido pelo trabalhador e o valor pago a ele como salário”, transformada abusivamente em lucro pelos proprietários dos meios de produção. A pauperização da classe trabalhadora proletária, em consequência disso, levaria, na previsão de Marx, ao colapso dessa relação econômica e à revolução socialista. Aí, então, mediante uma revolta das massas e não de parcelas populacionais sequiosas por privilégios, a verdadeira liberdade, no sentido da emancipação total em relação aos abusos e confrontos de classes, seria alcançada, ditando-se, com isso, o fim da História.

Após uma pequena conclusão do caminho percorrido ao longo do opúsculo, Marize elenca uma sequência de sugestões de leitura para a compreensão mais aprofundada da obra de Marx; como estou longe de ter uma leitura tão abrangente da obra de um filósofo que, para o bem ou para o mal – afirmo que, de longe, sobretudo para o mal -, impactou decisivamente o mundo no século passado, estou ansioso para fazer uso de suas indicações a respeito.

Uma observação muito interessante de Marize ao término de seu livro é a de que, “ironicamente, o legado de Marx não resiste pela concretização de suas ambições científicas”, já que, poderíamos afirmar, suas previsões falharam, mas por “uma específica teoria da sociedade impregnada com um forte teor normativo” que “se tornou uma forma de senso comum que, para existir, não depende mais da leitura atenta dos textos originais, tendo em vista que se expressa como uma visão de mundo que pouco reflete sobre seus pressupostos”. Os críticos de Marx e do Marxismo – sobretudo nós, os liberais -, por outro lado, bem farão em ser críticos conscientes e consistentes, que não incorram na armadilha dos reducionismos vexatórios. Que o labor de Marize por disseminar reflexões mais adequadas nesse sentido produza esse efeito e já será uma inestimável contribuição para o país!

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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