“Entre os Cupins e os Homens”: síntese do liberalismo de Og Leme
O professor Og Francisco Leme (1922-2004) foi, durante muitos anos, a maior liderança intelectual do Instituto Liberal, figurando em posição de protagonismo entre seus fundadores ao lado do empresário Donald Stewart Jr. (1931-1999). Se, no entanto, o pequeno livro O Que é o Liberalismo?, publicado por Donald em 1988, é bastante conhecido pela geração atual de liberais brasileiros, pouco se difunde a produção textual do professor Og. Uma das razões para isso é que, para além de seus artigos e crônicas, ele, lamentavelmente, pouco escreveu de teor organizado ou sistemático.
Ao mesmo tempo em que Donald lançava seu famoso livro, porém, Og publicava sua obra que mais exibe essa característica: o notável opúsculo Entre os Cupins e os Homens. Orgulhosamente, o Instituto Liberal está relançando este trabalho em uma edição iniciada por prefácio de Alex Catharino, antigo pupilo de Og e atualmente conselheiro superior da instituição. De acordo com síntese de Catharino, o livro é “leitura essencial, tanto para liberais quanto para conservadores, sobre os princípios que devem orientar uma sociedade livre, justa e próspera”. A contracapa da edição traz ainda comentários do próprio Og Leme e de José Osvaldo de Meira Penna (1917-2017), outro ícone do liberalismo brasileiro e dos antigos círculos do instituto.
Na introdução, Og Leme reconhecia um incremento global do interesse pelo liberalismo – que, lamentavelmente, nos dias que correm, sofreu reveses consideráveis. Motivado pelo interesse que percebia entre brasileiros que recorriam ao Instituto Liberal, ele decidiu publicar o livro, que é a transcrição de uma palestra por ele realizada a alguns desses interlocutores. Og Leme também estabelecia que os problemas políticos e organizacionais das sociedades modernas poderiam ser majoritariamente resumidos à opção imperativa entre a liberdade individual e a contenção do poder do Estado, advogada pelos liberais, e “a posição daqueles que, por vários motivos, não titubeiam em privilegiar a expansão daquele poder em detrimento da liberdade dos cidadãos”.
O objetivo do autor era fornecer argumentos para demonstrar, resumidamente, que a crença liberal na liberdade como aspecto radical da condição humana é verdadeira, que o custo mais difícil que se pode exigir do ser humano é a restrição de sua liberdade, que a liberdade econômica é necessária – mas não suficiente – para a liberdade política e que a economia de mercado é superior ao planejamento econômico. Como bom professor, ele delineou alguns conceitos gerais antes de construir sua abordagem, como o de “liberdade”, que, em sua obra, seria tratada como um fato social e não um valor abstrato, materializado quando se pode afirmar que há “ausência de coerção”. “Coerção”, por sua vez, seria “tudo aquilo que obriga o indivíduo a fazer ou deixar de fazer algo que, espontânea e normalmente, em face de seus interesses pessoais, ele não faria ou deixaria de fazer”. Nesse sentido, ele elencou três de suas maiores influências intelectuais para fundamentar sua abordagem: o economista austríaco Friedrich Hayek (1899-1992) e os economistas da Escola de Chicago Frank Knight (1885-1972) e Milton Friedman (1912-2006).
A coerção segundo Og Leme, porém, em um tom bastante hayekiano, excluiria o poder coercitivo do Estado dentro dos limites “de uma jurisdição tecnicamente reconhecida pelos critérios liberais”. Subsidiariamente, ele também ressaltou o conceito de “poder” como sendo “a capacidade de influenciar decisões sobre a utilização de recursos e o comportamento humano”; “autoridade” como “capacidade para o exercício do poder”; “ordem” como “o conjunto de normas organizacionais e comportamentais, formais e informais” e “justiça” como a “administração de conflitos de interesse pela aplicação de normas gerais de comportamento a casos particulares”. Percebe-se claramente a influência dessas conceituações do professor Og sobre a Declaração de Princípios do Instituto Liberal divulgada por Donald Stewart em todas as impressões de seu O Que é o Liberalismo.
O primeiro capítulo, A origem dos problemas sociais, desenvolveu uma reflexão sobre a natureza humana, apontando-a como conciliadora de elementos contraditórios – tanto sociais quanto antissociais. A partir de uma enriquecedora análise dos esforços históricos para a convivência humana com as diferenças intrínsecas entre as pessoas, ele concluiu que a gênese de todas as contendas relativas à organização social está no fato de que os indivíduos são plurais, têm interesses próprios diferentes dos interesses dos demais e, apesar desses qualificativos tão notáveis, desejam viver na companhia uns dos outros e em liberdade.
O segundo capítulo, Condição humana e liberdade, embasando-se principalmente em Frank Knight e José Ortega y Gasset (1883-1955), se esforçou brilhantemente por diferir o ser humano de outros animais, particularmente trabalhando a imagem de sociedades altamente gregárias como as de insetos da estirpe dos cupins, das abelhas ou das formigas. Nessas sociedades, seus indivíduos têm seus propósitos de vida geneticamente determinados, ao passo que os seres humanos dispõem de personalidade, construindo suas ações mediante cooperações deliberadas e não por uma imposição rígida da natureza. “É parte do drama humano”, sintetizou genialmente Og, “a obrigação inescapável que o homem tem de conviver com várias antinomias. Aqui mesmo nos achamos diante de uma delas: o homem, para ser humano, necessita conviver com seus pares; mas, para confirmar a sua humanidade, precisa de liberdade. Para ser humano, tem que lutar pela preservação de sua liberdade, no maior grau possível” – não absoluto, pois Og se apressou em relembrar que o liberalismo não é anarquista.
O Estado existiria prioritariamente para zelar para que a liberdade e direitos dos indivíduos cessassem onde se iniciassem os dos demais, pois o anarquismo, em sua concepção, levaria à concentração cumulativa das diferenças e do poder (“os mais fortes tenderiam a ficar progressivamente mais fortes”) e à incapacidade de equacionar certos problemas que teriam um custo demasiadamente elevado para a sociedade sem a existência dele. Infelizmente, sendo sistemas próprios, os Estados ansiariam por crescer, e assim se tem dado com aqueles que se alimentam da liberdade que deveriam proteger.
Nesse campo é que se travaria a luta entre individualistas e coletivistas, situando os primeiros o indivíduo como sujeito da liberdade, e os segundos posicionando o Estado nessa categoria. “Os Estados autoritários contemporâneos – União Soviética e satélites”, pontuava Og, escrevendo antes da dissolução do titã comunista oriental, “insistem que são livres, soberanos e democráticos. De fato, pode ser que sejam livres e soberanos: os indivíduos que compõem essas respectivas nações é que não o são”.
Os capítulos subsequentes de dedicavam a confrontar a lógica liberal e a lógica autoritária e coletivista sob pontos de vista específicos. O primeiro, “Dois modelos extremos de organização social”, o fazia de maneira mais geral, confrontando as sociedades autoritárias – e as dos insetos gregários – com as sociedades liberais, empenhando-se em enumerar as seguintes oposições: nas primeiras, os indivíduos estariam a serviço do grupo, servindo como meios ao fim, que seria o próprio Estado, ao passo que, nas segundas, os fins são os indivíduos e o Estado, um meio; nas primeiras, os indivíduos não teriam propósitos próprios, sendo regidos totalmente pelo altruísmo, pela “entrega ao todo social”, ao passo que, nas segundas, teriam interesses próprios e identidades como prerrogativas naturalmente reconhecidas e respeitadas; nas primeiras, a divisão do trabalho seria geneticamente determinada ou decidida pelas autoridades, enquanto, nas segundas, tudo dependeria das vocações e ações dos indivíduos; nas primeiras, os indivíduos cegamente obedientes teriam apenas um “passado”, enquanto, nas segundas, acessariam uma “História”, dotada de componente crítico; nas primeiras, impor-se-iam imobilismo e necessidades limitadas, enquanto, nas segundas, questionamento, experimentação e infinitas possibilidades e necessidades; as primeiras proporiam uniformidade, mas dependeriam da existência de privilégios iniciais, enquanto as segundas teriam apenas a igualdade perante a lei, apesar de os indivíduos alcançarem resultados diferentes em suas vidas; nas primeiras, os indivíduos se sujeitariam à natureza e às circunstâncias, ao passo que, nas segundas, as transformariam. Por fim, Og Leme concluiu que, nas sociedades não liberais, que querem se equiparar aos insetos, é empregado “o pleno uso do poder coercitivo do Estado sobre os membros da comunidade, um tipo de relação que implica o controle da nação pelo Estado”, à semelhança de sistemas mecânicos, enquanto, nas sociedades liberais, “predomina a autoridade das regras e a submissão do Estado aos indivíduos, o que leva ao controle do Estado pela nação”.
Em “Dois extremos de organização política”, Og Leme discutiu as tensões entre a democracia e o liberalismo, que foram mais de uma vez objeto de suas preocupações. Reconhecendo o casamento das ideias democráticas com as ideias liberais como algo desejável, lógico e característico dos Estados modernos, que enfrentaria dificuldades também por ser uma experiência histórica relativamente jovem, Og chamou a atenção para os desafios enfrentados entre as pressões majoritárias e os direitos individuais. Por meio de farta exemplificação histórica, ele demonstrou nesse capítulo a economia de mercado – com efetiva liberdade econômica – e o império da lei como dispositivos indispensáveis ao enraizamento de uma experiência liberal-democrática sólida. Acrescentou a ambas as condições, porém, o papel crucial da educação para qualificar os atores sociais desse sistema.
O quinto capítulo, “Dois modelos extremos de organização econômica”, consistiu em uma extensa apreciação das vantagens do direito de propriedade, do reconhecimento dos problemas econômicos como decorrentes da constatação da escassez dos bens materiais, da formação espontânea de preços, do lucro, da liberdade de entrada no mercado e dos esforços de contenção das regulamentações intrusivas do Estado na atividade econômica. O professor encerrou o livro com dois pequenos capítulos: “Descentralização, divisão e pluralismo”, enaltecendo o princípio da subsidiariedade, e “Uma sugestão prática”, em que ele fez recomendações para o combate à pobreza no Brasil. Conforme a análise de Og Leme, o verdadeiro combate a esse mal se faria com uma economia de mercado efetiva, uma política agropecuária inteligente e a melhoria da formação humana.
A leitura de Entre os Cupins e os Homens é extremamente recomendável e, para os que estão habituados a O Que é o Liberalismo de Donald Stewart Jr., oferece uma complementação iluminadora, capaz de condensar de maneira didática e elucidativa a bandeira levantada intrepidamente por aqueles dois grandes homens na década de 80, quando trouxeram à luz o nosso querido Instituto Liberal.
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