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Realpolitik penal – Aula 1: nunca fale com um policial

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Novos tempos demandam novas habilidades. Sim, se antes liberais e conservadores estavam do lado dos acusadores – e se orgulhavam disso –, hoje a cadeira mais possível de ocuparem é a do banco dos réus. Sejam bem-vindos à única posição de uma sala de audiências criminal que pode ser ocupada por um indivíduo (todas as outras são do Estado[1]).

Mas, sejamos mais exatos: não se trata de uma habilidade nova e nem de tempos novos, mas de uma compreensão antiga que não se encontra em nenhum livro de Ludwig von Mises ou de Edmund Burke; ao menos não de forma explícita. Talvez se tivessem lido mais os Federalist Papers, ou mesmo as entrelinhas daquela montanha de livros que dizem ter lido, entenderiam de uma vez por todas que, afora todas as rusgas e divergências entre liberais e conservadores, há um conselho que emerge do seio de ambas as formas de ver o mundo, mas que a vaidade, a soberba e exagerada educação de nossa nova direita não permite que se fale por aí: nunca fale com um policial.

O privilégio contra a autoincriminação se encontra na Quinta Emenda da Constituição dos Estados Unidos e foi proposto por James Madison, o pai da Constituição, em 1791, no Bill of Rights. Fruto de quatro séculos de estudo por parte de diversos juristas, foi defendido, muito antes de James Madison, por Sir Edward Coke, Lord Chief Justice of England, um dos mais brilhantes advogados da Inglaterra, que forçou um writ de proibição contra uma tentativa de uma corte eclesiástica em compelir um acusado a confessar um crime por meio de tortura[2]. Sir William Blackstone, o mais importante jurista inglês, comentou em seu Commentaries on the Laws of England que o privilégio contra a autoincriminação seria uma representação do correto desenvolvimento da jurisprudência inglesa[3]. Como disse Griswold, “é um dos maiores marcos na luta do homem para se tornar civilizado”.

Porém, se os exemplos dos Estados Unidos e da Inglaterra são liberais demais para alguns conservadores mais tradicionalistas, podemos citar o privilégio contra autoincriminação inscrito na máxima nemo tenetur prodere seipsum – ninguém é obrigado a trair a si mesmo –, que pode ser encontrado no glossa ordinária dos Decreteals do Papa Gregório IX, tendo sido repetido e endossado pelo Papa Inocêncio IV, o papa jurista. Diversos são os relatos históricos de acusados pelas cortes eclesiásticas que se utilizaram de tal privilégio[4].

Para todos aqueles que não conhecem as práticas comuns nas dependências das delegacias de polícia, esse privilégio pode parecer uma loucura ou um excesso garantista – coisa de esquerdista, para eles. Afinal, é o que todo cliente sempre fala: eu não fiz nada. Sim, todo cliente – o culpado e o inocente. Como diferenciar ambos?

As polícias foram criadas para não deixar nenhum culpado sem punição. O Ministério Público, o órgão de acusação, segue essa mesma linha. É o que clama a população, é o que garante seus salários. Com o tempo, liberais e conservadores inocentes passaram a endossar a existência do juiz vigilante, o caçador de corruptos e de bandidos, sempre pronto para acabar com o maior problema que nosso país enfrenta: a impunidade. Ou seja, hoje, até o juiz tem como função não deixar nenhum culpado sem punição – é o que garante seu prestígio. Então, para todos eles, qualquer explicação é só uma desculpa esfarrapada – afinal, está na natureza do mentiroso tentar parecer o mais sincero possível. O direito ao silêncio é a proteção do inocente contra a combinação da esperteza do mentiroso com a malícia do policial (ou do promotor, ou do Sérgio Moro, ou do Alexandre de Moraes).

Tudo o que você disser poderá ser e será usado contra você em um tribunal[5], é o que todo policial americano deve dizer ao abordar um suspeito, por força do caso Miranda vs. Arizona. Ressalto aqui: poderá ser e será. Se disser que cometeu o crime, será uma confissão. Se disser que não cometeu, mentiu. Se não disser nada, nossos impostos serão bem revertidos, pois é essa a função da polícia – investigar. Não facilitemos o trabalho dela… ela se tornará indolente e preguiçosa, como já é. Cobre o seu policial, faça valer o seu imposto. Coloque-o para trabalhar.

Para se ter uma ideia: é prática extremamente comum – por mais surreal que pareça – que investigados sejam chamados para depor em delegacias na condição de testemunhas. Por quê? Para que se descuidem e não contratem advogados, ou que achem que precisam comparecer à delegacia sob pena de serem processados pelo crime de desobediência. Ao chegar lá, ouvem a conversa de sempre: “só te chamamos para esclarecer algumas coisas. Nada demais. Não precisa ficar preocupado. Quanto mais informações você der, melhor”. Em breve receberão a denúncia formal em casa, na qual o Ministério Público baseará toda a tese acusatória nos “esclarecimentos” prestados – que serão copiadas e coladas em uma sentença condenatória, ao final do processo, e repetidas pelos mais diversos jornais do país. O problema do acusado inocente é exatamente esse: ele é inocente demais.

“Mas eu não fiz nada”, dirá você de novo, o liberal. “Nunca serei acusado por nada pois sou inocente”, insistirá. Esquecendo, entretanto, que os serviços prestados por um policial, por um promotor e por um juiz são serviços públicos e que, portanto, são terrivelmente prestados. Se em cinco anos administrando o deserto do Saara farão faltar areia[6], imagina o que fazem ao administrar a justiça?

“Mas eu sou inocente, eu sou um santo, estou do lado de Deus”, repetirá você, o conservador. “Só bandidos são perseguidos pela justiça”, teimará. Deixando de lado, todavia, que mesmo o mais santo dos homens, o próprio Verbo, foi perseguido pelo Estado, e que, mesmo Ele, ficou em silêncio diante da justiça de seu tempo[7]. Será que Ele tem algo a lhe ensinar com isso?

Então, você, liberal da moral inabalável ou conservador santo de nascença, faça um favor para si mesmo: nunca fale com um policial. É o que James Madison e Jesus Cristo fariam.

[1] E antes que falem que há a cadeira da testemunha: sendo obrigada a dizer a verdade, não podendo mentir, é livre a testemunha? Ou cumpre ela uma função de servidor naquele momento?

[2] Bowers, C. G. Jefferson and the Bill of Rights.

[3] Levy, Leonard W. Origins of the Fifth Amendment.

[4] Richard. H. Helmholz. Origins of the Privilege against Self-Incrimination: The Role of the European Ius Commune.

[5] Miranda Warning. Miranda vs. Arizona.

[6] disse Milton Friedman.

[7] Lucas 23:9

*Igor Damous é advogado criminalista. 

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