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Por que não reprovar a invasão russa é antiliberal

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Já escrevi a respeito da ameaça representada por certas ideologias populistas e nacionalistas às liberdades ditas ocidentais, aplicando esses conceitos às questões levantadas pela agressão russa à Ucrânia. Abordo agora a questão por outros ângulos.

Em primeiro lugar, acerca da posição do Brasil como Estado-nação e membro da comunidade internacional a respeito do problema. Tenho ressaltado que a questão repousa fundamentalmente sobre a dificuldade de muitos comentaristas em distinguir sobriedade de neutralidade.

Ao começo desta guerra, vi pressões exageradas sobre a diplomacia brasileira. Havíamos acabado de apoiar a resolução contra a Rússia no Conselho de Segurança da ONU, afirmando claramente nossa contrariedade com a invasão, devidamente identificada. China, Índia e Emirados Árabes optaram pela abstenção – e que isso seja lembrado. O que alguns pareciam querer era que o Brasil bradasse mais alto que qualquer um que Vladimir Putin é um monstro e se tornasse uma espécie de arauto da condenação à Rússia, mas estou de acordo com os que dizem que não temos condições de dar esse passo.

Em momento algum isso quer dizer que o Brasil deveria ser “neutro” na questão ucraniana. Não se trata de neutralidade; é do interesse brasileiro subscrever a crítica a uma violação violenta da ordem internacional, pelo fato óbvio de que isso representa um precedente aberto que ameaça toda a humanidade, inclusive o Brasil, com sua vasta extensão territorial e poder bélico quase nulo. É evidente que devemos rejeitar essa agressão russa, dentro dos princípios que sempre regeram nossa atuação diplomática. O ponto é que devemos fazê-lo com realismo, sobriedade e discrição, levando em conta nossa posição real como “player” no mundo, e foi exatamente isso que o Itamaraty fez na ONU.

Não houve neutralidade alguma por parte de nossa embaixada naquele órgão, apenas a adoção do tom certo. A embaixada brasileira não tem condições de falar ao microfone neste momento como Churchill bradando contra Hitler ou Carlos Lacerda contra Getúlio Vargas. Simplesmente não temos condições materiais para isso e alguns líderes internacionais que nos exigem algo do gênero já nos deram as costas antes, fizeram pressões covardes sobre nós recentemente com alegações falsas e sabe-se lá até que ponto nos ajudariam em situação similar – afinal, lembro que também não estamos dentro da Otan. Posso dizer o que eu quiser aqui, mas a diplomacia precisa de pragmatismo. É o mundo real, não uma luta de cavaleiros Jedi ou coisa que o valha.

No entanto, o presidente da República Jair Bolsonaro, em coletiva de imprensa, declarou que nosso país é “neutro” – o que, acabei de dizer, não é a posição brasileira expressada por nossa diplomacia – e achou por bem disparar: “Eu entendo que não há interesse por parte do líder russo de praticar um massacre. Ele está se empenhando em duas regiões do Sul da Ucrânia que, em referendo, mais de 90% da população quis se tornar independente, se aproximando da Rússia. Uma decisão minha pode trazer sérios prejuízos para o Brasil”. Bolsonaro, basicamente, verbalizou o argumento russo para justificar a invasão. Mais do que isso, fingiu ignorar (ou quero quer que tenha fingido, já que, se o presidente não sabe, está completamente alheio à realidade) que os bombardeios e ataques russos não se circunscrevem às regiões separatistas. Pior: Bolsonaro ainda ironizou o presidente ucraniano, Volodymyr Zelenksy – que, à revelia de como viesse sendo seu governo até então, vem surpreendendo o mundo por sua coragem -, soltando que os ucranianos “escolheram um comediante” para dirigir a nação. Ao menos, Zelensky é um comediante voluntariamente, não involuntariamente…

Uma coisa é o Brasil se limitar à sua manifestação diplomática, própria do seu lugar no mundo, equilibrando os princípios que deve advogar com seus interesses e seu real poder, que é muito limitado. Outra é o presidente da República fazer uma declaração dessas, como se fosse advogado de Vladimir Putin. Por que não ficou em silêncio? A manifestação de Bolsonaro não é digna nem decente e não representa a posição da maioria do povo brasileiro.

Depois da fala desastradamente asquerosa de Bolsonaro, o embaixador do Brasil na ONU voltou a salvar a pátria. Embora sutilmente inserindo uma crítica vaga a sanções à Rússia, sem dizer que outro instrumento o Ocidente poderia usar para pressionar os perpetradores da barbárie, ele sustentou novamente a postura sóbria de defender a ordem internacional: “Deixe-me ser claro: esta situação não justifica o uso da força contra o território de um Estado membro”. Repito: é tudo que o Brasil deveria dizer sobre o assunto. Dói? É tão difícil? Provado está que não é.

Outro ângulo é o ângulo puro e simples dos princípios liberais. Acabo de dizer que não podemos resumir nossa vida a princípios, mas saber aplicá-los com sobriedade e realismo. No entanto, por vezes o excesso de “complexificação” prejudica o entendimento do que de fato importa. Preguemos agora apenas aos “convertidos” e deixemos bem claro: não faz sentido algum a um liberal relativizar os atos da Rússia. Qualquer relativização, procurando atribuir mais responsabilidade a terceiros, é antiliberal.

Provo-o concretamente com base nos princípios estatutários deste Instituto Liberal e a Declaração de Princípios dos Institutos Liberais de 1988. Os atos de Vladimir Putin violam praticamente todos os princípios do liberalismo. Agridem a liberdade, recorrendo à força – e à fraude – para obrigar os ucranianos (e os próprios russos) a se sujeitarem à sua tirânica vontade. Violam a propriedade, porque provocam destruição, impedindo que os ucranianos disponham livremente de seus bens e capacidades. Violam a ordem, porque procuram surrupiar as leis e instituições geradas pelos ucranianos por regras impostas por ele, mediante, ao que tudo indica, um golpe de Estado e a instauração de um regime fantoche. Violam a justiça, pelo mesmo motivo. Violam a economia de mercado, porque a economia de mercado demanda a paz; nada mais hostil ao liberalismo que a guerra, ainda que os liberais não devam ser pacifistas ingênuos. Violam a democracia e o Estado de Direito, porque Putin é antitético a esses ordenamentos institucionais; é um ditador assassino, sedento por subjugar seus vizinhos, sem qualquer agressão provocada. Violam a tolerância, porque ele quer se arrogar a autoridade de decretar se os ucranianos têm ou não o direito de viver em uma nação própria e se têm ou não direito a se associarem aos demais países como desejarem. Violam a descentralização, porque querem que Moscou e o Kremlim se imponham sobre Kiev.

O mais importante, porém, é que qualquer liberal que pretenda incorrer em diversionismos e culpar prioritariamente Joe Biden, os Democratas, o Ocidente, a Nova Ordem Mundial, Deus e o mundo, viola um dos princípios liberais mais fundamentais: a responsabilidade individual. Quem bombardeou, quem agrediu, quem atacou a Ucrânia, tolerando ataques até nos arredores de usinas nucleares, ameaçando explodir a Europa com sua arrogância abominável, não foi absolutamente nenhum outro senão aquele que exerce a autoridade máxima da Federação Russa, Vladimir Putin. Eventuais erros de lideranças ocidentais não podem ser empregados para minimizar isso.

Não adianta, sinceramente, pregar apaixonadamente privatizações, aberturas de mercado ou redução de funcionalismo público; se as fibras mais íntimas do seu ser ao menos não se agitam de indignação perante a barbárie perpetrada pelo líder russo, sua compreensão do liberalismo é, no mínimo, muito deficiente. O liberalismo não é apenas uma agenda econômica. É um protesto da civilização contra a estupidez, da construção laboriosa contra a destruição descabida. É, como diria Ortega y Gasset, a suprema generosidade, o reconhecimento, por parte do forte e do majoritário, de que o fraco e o minoritário têm direito a existir e a falar. Sem isso, resta apenas uma caricatura do liberalismo, que, por si só, não vale a pena defender.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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