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A tensão no Leste Europeu, o despotismo asiático e o individualismo ocidental

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Uma tensão internacional de envergadura comparável aos grandes estresses da Guerra Fria, com a perspectiva de uma guerra na Europa levar a um morticínio sem precedentes há décadas, se materializou a partir das ameaças da Rússia de Vladimir Putin à Ucrânia. Os sucessivos fracassos dos esforços diplomáticos fizeram com que a sombra da tragédia, a cada disparo retórico de parte a parte, parecesse se avizinhar como poucas vezes desde, talvez, a crise dos mísseis de Cuba.

De um lado, a resistência russa à ideia de um eventual ingresso ucraniano à OTAN e de uma expansão da aliança militar ocidental para ainda mais perto de suas fronteiras; do outro, as exigências dos EUA e dos países europeus por garantias de que os russos não invadiriam o território ucraniano. Até há pouco tempo, a ampla maioria dos comentaristas afirmava com certa convicção que esses entrechoques terminariam como quase todos os últimos entreveros desse gênero: limitando-se a palavras e documentos.

Com o tempo, essas certezas se foram diluindo: Putin tomou a medida de reconhecer a independência de regiões da Ucrânia onde atuam forças separatistas russas e o presidente norte-americano Joe Biden reverberou por mais de uma vez seu receio de que, conforme fontes da inteligência dos EUA, o mandatário do Kremlin estaria decidido a promover uma invasão de larga escala, possivelmente resultando no conflito mais sangrento que o mundo já viu desde a Segunda Guerra Mundial. As declarações e atitudes assumiram proporções suficientemente graves para provocar a ameaça de grandes sanções e deixar o planeta em compasso de espera. No momento em que escrevo, parou-se por aí, mas há muito o que refletir sobre esse cenário, que tem evidentes repercussões para toda a humanidade.

O discurso de Vladimir Putin na segunda-feira (21), ao justificar seu apoio à separação da região de Donbass em relação ao governo ucraniano, foi bizarro e ameaçador. Ele deixou claríssimo que o “czar” moderno da Rússia não dá a mínima para a soberania nacional ucraniana. Isso é particularmente importante de se notar porque alguns amantes estúpidos de tiranos no Ocidente vivem grasnando que autocratas como Putin representam uma reação gloriosa de um “soberanismo nacional tradicionalista” contra o decadente globalismo ocidental.

Com efeito, um problema bem mais concreto do que uma suposta ameaça nazista deflagrada por comentários mal-feitos num podcast é a quantidade de fãs alucinados de Putin que caminham entre nós, pelas bandas de cá. Vejo mais do que gostaria uma porção de puxa-sacos de um autocrata russo – que, ao contrário de Hitler, está em plena atividade – e cujos opositores desaparecem “misteriosamente”, bem como apologistas de supostos modelos de “democracia iliberal”, julgando-se com alguma autoridade moral para ironizar ou condenar os liberais.

Segundo eles, líderes como Putin ou Viktor Orbán são os guardiões-salvadores-preservadores do Estado-nação e seus símbolos, tradições e, por extensão, para alguns mais entusiasmados, até da fé cristã, contra a “esquerda ateísta e secularizante”, que está impondo sua ditadura do progressismo sobre a covardia e a pusilanimidade ocidentais. Essa concepção levou Steve Bannon, estrategista político de Donald Trump demitido em 2017, a tentar formar uma associação internacional de movimentos que espelhassem esse mesmo tipo de visão da política e do mundo: uma espécie de mescla de tradicionalismo antiliberal com nacionalismo. A confusão que esses movimentos populistas provocam no próprio debate público também encontra morada nas mentes confusas de Jair Bolsonaro e seus filhos, a ponto de nosso presidente da República ter dito a apoiadores, questionado se Putin seria um aliado, que o tirano russo é um “conservador”.

Embora geralmente uma balela consiga se sustentar porque existe alguma verdade superficial a estimulá-la, e é este o caso, ela não deixa por isso de ser uma balela. Se esses movimentos “soberanistas” costumam ter na Rússia, em Putin ou na ideologia do “eurasianismo” do cientista político moscovita Alexandr Dugin suas “meninas dos olhos”, quase como a esquerda latino-americana em relação ao regime cubano, resta claro que a ideia central deles é comprovadamente uma farsa.

Putin demonstrou para quem tem olhos de ver que o “soberanismo” que defendem é só para quem esses lunáticos julgam ter direito a ele. Ao proclamar, como se lhe coubesse determinar isso, que a Ucrânia não passa de uma artificialidade fabricada pela Rússia bolchevique, ele negou, com todas as letras, a respeitabilidade da Ucrânia como um Estado-nação soberano. Putin pode até não promover uma invasão completa, pode até não tentar dominar a capital ucraniana Kiev como Biden disse suspeitar que faria, mas ele já tem um discurso de base bem elaborado para justificar, em sua psicopatia galopante, um movimento bárbaro nesse sentido.

Defender o Ocidente e o individualismo ocidental não é sinônimo de defender a concessão de poderes excessivos a organismos internacionais, aplaudir a esquerda ou louvar governos específicos. Reconheço que existem correntes políticas no Ocidente que o enfraquecem desde dentro, como o famigerado “progressismo identitário”, e que supervalorizam o poder de estruturas supranacionais. Reconheço que o “politicamente correto” oferece ameaças à liberdade de expressão e associação, promovendo a apologia da censura sob o pretexto da higienização de opiniões tidas como “discursos de ódio” por burocratas e intelectuais “canceladores” de plantão. O Ocidente é, sim, responsável por sua própria fragilização e precisa ser encarregado de limpar a própria sujeira se quiser fazer frente aos seus adversários. No entanto, não se pode “jogar fora o bebê com a água do banho”.

Tomar partido da civilização ocidental é respaldar um conjunto de regras do jogo que, sem sombra de dúvidas, estão, com todos os problemas que enfrentam, com todos os adversários e ameaças que vêm de dentro, ainda mais bem conservadas entre nós que sob a égide de déspotas asiáticos. Ninguém em sã consciência, com todas as críticas que tiver a fazer, poderá proclamar que tem menos liberdade de discordar do governo e defender suas próprias convicções nos EUA, nos países da Europa ou mesmo no Brasil do que na Rússia ou na China. Ninguém poderá proclamar que países que conseguem promover a alternância de poder e em que existem correntes de opinião nitidamente representadas, ainda que em graus variados de pluralidade e vigor democrático, são tão tirânicos quanto uma ditadura dominada por um único partido ou uma autocracia em que um mesmo sujeito, na prática, está no poder há mais de vinte anos.

O fetiche por homens fortes – cercados de bombas nucleares e outras garantias, evidentemente – e uma fachada de “tradicionalismo de costumes” faz com que uma porção de párias morais endeusem um “ex-espião” da KGB que faz seus opositores sumirem e despreza a autonomia de seus vizinhos, ou até com que enalteçam a ditadura do Partido Comunista Chinês, que também ameaça a autonomia de Taiwan. É uma verdadeira vergonha.

Em recente artigo para a The Economist, o historiador e filósofo Yuval Noah Harari escreveu que a crise ucraniana coloca no cerne dos debates a divergência crucial entre duas correntes de pensamento: aquela que acredita que os seres humanos podem mudar, que a civilização pode se refinar cultural e moralmente, que transformações nesse sentido podem ter seu peso na redução das guerras nas últimas décadas, e aquela que acredita que basicamente vivemos em uma lei da selva em que a força ainda é o que importa em última instância. Costuma-se tratar a primeira postura como sendo a escola “liberal” – compreendida aqui como uma teoria das relações internacionais e não propriamente como a doutrina ou tradição política que atende por esse nome – e a segunda como a escola “realista”. Impedir que a questão ucraniana descambe para a matança seria uma luta humanitária em favor da “escola liberal”.

Não obstante eu não pretenda negar totalmente as alegações da “escola liberal”, acredito que a presença das armas nucleares nas mãos das superpotências foi, sim, uma das razões mais importantes para que elas não tenham mais se enfrentado diretamente e para que os conflitos de larga escala tenham praticamente cessado na atual ordem internacional, esta que Putin desafia. Infelizmente, as armas importam neste mundo e nós ainda somos mais violentos do que gostaríamos de ser. Em coletiva de imprensa nesta terça (22), o presidente russo afirmou que suas demandas para uma “normalização de relações” com a Ucrânia envolvem – além da aceitação das perdas territoriais e da renúncia a qualquer hipótese de inserção na OTAN – a desmilitarização, o desarmamento. Em outras palavras: que os ucranianos se calem e aceitem a dominação! Aos que vociferam o tempo todo contra o “imperialismo”, digo e repito: aí está o imperialismo na prática. A Ucrânia aceitou ceder suas armas nucleares nos anos 90 e é essa a recompensa que recebe.

Reconhecer isso e admitir que ainda existe a barbárie no mundo não significa abdicar dos esforços por cultivar as instituições saudáveis e por perseguir os objetivos civilizados e humanitários. Justamente para alcançá-los, contudo, precisamos estar cientes do que esses objetivos significam e não perder de vista as forças que o desafiam e as circunstâncias concretas pelas quais operam.

O cenário exige a conclusão firme de que os despotismos asiáticos não representam uma alternativa a um Ocidente fragilizado. São, antes, inimigos fundamentais da liberdade. A democracia liberal continua a ser alvejada por oponentes relevantes, cujo peso geopolítico não pode ser subestimado. Com realismo, mas fidelidade aos princípios que moldaram os nossos maiores sucessos, precisamos lidar com eles com altivez – sem jamais nos deixarmos seduzir pelas ilusões que oferecem, como nossos antepassados não tão distantes se deixaram seduzir pelos que vaticinavam a morte do liberalismo no começo do século passado. O liberalismo não morrerá enquanto não abandonarmos a convicção de que não vale a pena viver sob outro sistema.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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