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O medo como ferramenta política

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O medo, como todos sabem, é um importante mecanismo de defesa, fundamental para nossa sobrevivência à medida que nos permite sopesar e evitar riscos. O medo, porém, também pode ser uma ferramenta traiçoeira, em especial nas mãos de quem sabe explorá-lo com maestria para fins não exatamente nobres. Ele sempre tem sido um aliado de ditadores e aspirantes a autoritários de todas as estirpes. Nesse caso, ao assumir feição política, ele carece de uma personalização, de um inimigo, seja ele concreto ou abstrato. É por temer um mal ainda maior que muitos acabam aceitando constrições à liberdade, ainda que essas constrições em muito excedam o real risco que se tenta evitar.

Se em ditaduras e protoditaduras a função do medo é mais evidente, isso não significa que em democracias ele não possa ser usado para fins estranhos à ordem democrática; talvez, em democracias, a aposta no medo seja ainda mais alta, justamente por se tentar sair de um estado de maior liberdade para um de menor, ao invés de simplesmente manter um estado com pouca ou nenhuma liberdade. Por outro lado, a maior dificuldade nas democracias seria derivar o medo do nada, de se realizar maquinações para convencer as pessoas de que há um mal a ser combatido. O mais comum, então, é desenvolver abstrações que partam de uma ameaça real, onde o medo tem sua razão de ser.

Trazendo esse raciocínio para a realidade brasileira, creio que podemos denotar o uso político do medo nos mais recentes acontecimentos envolvendo atentados em escolas. Um dia após um homem invadir e matar quatro crianças em creche de Blumenau (SC), o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, anunciou que determinou que a Polícia Federal instaurasse “Inquérito Policial sobre organizações nazistas e/ou neonazistas no Brasil”. Para que não haja dúvida sobre a ilação feita pelo ministro, também no dia seguinte ao ataque ele twittou o seguinte: “O acervo de causas que leva à ampliação de tragédias está bem visível: proliferação de ódio na sociedade, inclusive por uma internet desregulada e com empresas irresponsáveis; incentivos ao armamentismo e à ideologia da morte; agrupamentos nazistas e neonazistas”.

O texto do ministro é um combo de elementos que merecem respostas separadas, então vamos por partes. A ilação automática de que todo e qualquer ataque, por mais bárbaro que seja, tenha raízes ou inspirações nazistas, é coisa reducionista e típica de Twitter e adolescentes. Quando digo que é coisa típica de Twitter, é porque lá costuma ser o lugar onde rotineiramente os analistas mais “iluminados” da realidade nacional anunciam uma onda nazista, fascista, ou coisa que o valha, que estaria varrendo o país. São a prova de que as abstrações derivadas do medo não são obra só de profissionais, mas de gente que se convence de que seu simplismo é a coisa mais incontestável que pode existir. Basta que um elemento qualquer apareça em público com uma suástica no braço e o efeito algoritmo começa a operar. É tão cansativo repetir o óbvio, mas, em se tratando do mesmo pessoal que acredita em “cultura do estupro”, as repetições nunca deixarão de ser necessárias.

Já ao culpar o que chama de “incentivo ao armamentismo”, o ministro claramente ignora que tanto o ataque na creche de Blumenau quanto o ocorrido em uma escola de São Paulo no final de março foram feitos com arma branca. Colocar nos defensores da posse de armas por civis a pecha do incentivo a tragédias é pura vigarice. O Brasil registrou 40,8 mil assassinatos em 2022 — um número absurdamente alto, mesmo sendo o menor da série histórica —, é historicamente um país violento, tem áreas dominadas pelo crime organizado e por milícias, mas o farol do ministro, que, vale lembrar, também é da “Segurança Pública”, volta-se para posições políticas no debate democrático sobre armamento civil, ao passo que não tem nada a dizer, em sua divagação “pacifista,” sobre as facções criminosas.

Já sobre a tal “ideologia da morte”, tenho curiosidade em saber o que o ministro entende por isso, apesar de ter minhas suspeitas. Seriam os boçais que cometem atentados em escolas os profetas dessa tal ideologia? O que sei é que, se ideologia fosse, o número de adeptos seria muito menor do que sugerem os algoritmos e adolescentes problemáticos, haja vista o repúdio que a sociedade tem por esse tipo de crime. Uma verdadeira ideologia da morte, muito melhor organizada e com número ainda considerável de adeptos, tem o partido ao qual o digníssimo ministro foi filiado por 15 anos. Para ser econômico, só o maoísmo, corrente comunista à qual o PCdoB se filiou após o racha com o PCB, causou a morte de “ao menos” 45 milhões de pessoas. Trata-se de mais de quatro vezes o número de mortos vitimados pelo nazismo, cujo fantasma ainda habita paranoias e que o proselitismo de certos esquerdistas quer tornar mais relevante do que é hoje — em tempo, é verdade que o comunismo também tem relevância diminuta.

Como Dino é figura ilustre do grupo ideológico que está no poder, que não esconde a sanha censora, não poderia faltar a crítica ao que chama de “internet desregulada”. Vale lembrar que a ideia de regulamentação não surge ao petismo e seus asseclas no bojo de tragédia alguma. A primeira vez que Lula confessou seu arrependimento por não ter “regulamentado a imprensa” foi quando passou a culpar a imprensa pela ampla cobertura da Lava Jato e de toda a podridão que ela desnudou, bem como por crer em um papel desta mesma imprensa na consecução do impeachment de Dilma. O que mudou foi que, em vez de falarem em uma regulamentação “econômica” da imprensa, passaram, nos últimos anos de ascensão do bolsonarismo, que muito dependeu das mídias digitais, a focar sua atenção para a regulamentação da internet. O argumento, é claro, é combater “discursos de ódio” (como se santos fossem), mas a motivação política é clara e a cronologia supracitada não me deixa mentir.

Nesse sentido, o cometimento de crimes contra a vida, e mais especificamente contra a vida de crianças — o tipo de crime que gera mais furor —, se é uma tragédia para todos os que não são desprovidos de humanidade, é também uma oportunidade para proselitismos políticos dos mais repulsivos, como tentarei demonstrar. Por ora, basta dizer que isso é apenas mais um capítulo na saga contra a “indisciplina” das redes, saga essa já capitaneada pelo todo poderoso Alexandre de Moraes. Mas o governo também quis dar sua colaboração para a “causa” e um grupo de trabalho foi formado pelo ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, com o objetivo de “assessorar o ministro de Estado dos Direitos Humanos e da Cidadania nas questões referentes ao discurso de ódio e ao extremismo; realizar estudos e discutir estratégias de combate ao discurso de ódio e ao extremismo; e propor políticas públicas de direitos humanos para combater o discurso de ódio e o extremismo”. Podemos todos dormir tranquilos, pois certamente coisas muito coisas boas sairão dessa ficção orwelliana trazida à realidade concreta. Apenas imaginemos que políticas sãs resultarão da colaboração de nomes ilustres como Felipe Neto, Manuela d’Ávila, sob a batuta de quem (Silvio Almeida), em suma, chega ao ponto de chamar o capitalismo de “racista”.

Porém, há quem possa dizer que estou de má vontade com o ministro Flávio Dino e que seu argumento não obedece a nenhuma agenda oculta com fins de fechar o cerco à liberdade de expressão. Ora, como estamos a falar do ministro da Justiça e Segurança Pública e não de um palpiteiro qualquer, façamos também o esforço de analisar seu discurso como se realmente despido de qualquer interesse político. Faria então a análise do ministro algum sentido? Se olharmos o que ele escreveu com a devida atenção, veremos que todos os elementos por ele listados podem muito bem integrar um único que resume tudo: cultura. Esta última quase sempre é a resposta dos pós-modernistas para todo e qualquer problema contemporâneo. O nome (e culpado) pode variar, mas a cultura e a sociedade são seus preferidos, não sendo nada mais do que variações do “ambiente” e uma confissão do seu tabularasismo.

Ora, os perpetradores de atentados têm nome, sobrenome e, se brasileiros, CPF. Não foi a cultura em uma forma corpórea que invadiu uma creche e matou crianças com uma machadinha. Mas o ministro estaria preocupado com a explicação por detrás do ocorrido, muitos diriam. Podemos, então, encerrar os cursos de psicologia país afora; façamos, ao invés disso, uma análise coletiva e, melhor, capitaneada pelo executivo federal, da psique dos criminosos em questão.

Cumpre demonstrar a inadequação dessa explicação, não por uma questão de ponto de vista, mas porque a leitura errada inevitavelmente levará a medidas inadequadas e a uma ilusão de que o problema está sendo solucionado. Tenho zero confiança em qualquer tipo de política pública que parta da suposição de que é a sociedade e não indivíduos que devem ser tratados. Um exemplo disso é quando nos EUA as atenções se voltam exclusivamente para os meios utilizados e não para as motivações de atiradores em escolas. Não que a terra do Tio Sam não careça de um melhor controle do armamento e que isso não ajude a minorar as tragédias (alguém munido com uma metralhadora causará mais estrago que alguém portando uma faca), mas, sendo as armas o meio apenas, ainda restam as diferentes questões psicológicas (e provavelmente patológicas) e isso é do âmbito individual, não coletivo, haja vista que a maior parte dos estudantes não cometem atentados. Uma medida mais adequada (não panaceia, pois não há panaceia possível aqui) poderia ser, e registro aqui minha sugestão, a presença de psicólogos nas escolas como medida profilática.

Buscar culpados fantasmagóricos, ou apelos à cultura, pode até parecer muito requintado (e não faltam acadêmicos para embelezar essas teses), mas não ajuda a resolver o problema. Politicamente, tem o condão de motivar respostas flagrantemente toscas e antiliberais, como o pedido do deputado Zé Trovão (PL – SC) para que o governo suspenda jogos violentos. É mais do mesmo. Culpar os jogos está em linha com reducionismos históricos e retrógrados, como culpar o heavy metal, filmes, livros etc., e vai na mesma toada dos que falam em uma suposta “cultura do ódio” ou em “ideologia da morte”. Creem que uma mente sã possa se converter em doentia por causa de um jogo, novamente ignorando o fato (vou insistir) de que a maior parte dos jovens e estudantes não cometem atentados. Uma mente doentia não o é porque a sociedade assim a fez e a eventual concorrência de fatores ambientais não muda o fato de que certamente são fatores micro (família, amigos, escola). Tampouco é porque um jogo, ou o Cristo da vez, assim a fez.

Dito isso, volto à questão: estaria o governo tentando colher louros políticos do medo gerado pelas tragédias? Dino esclarece. No último dia 10, em conversa com jornalistas, o ministro fez uma ilação ligando os atentados em escolas aos atos golpistas do dia 08/01: “A questão hoje remanescente é a responsabilização das pessoas que engendraram esse planejamento golpista durante meses, e os ecos, as reverberações da violência que permanecem. Por exemplo, estamos agora às voltas com essas ameaças relativas a escolas. Nós temos uma ligação entre uma coisa e outra”. Para explicar a ilação, um pouco mais da psicologia social do ministro: “Tem influência da ideia de violência extremista a qualquer preço, a qualquer custo. O ethos, o paradigma de organização do mundo que golpistas políticos e agressores de crianças, assassinos de crianças têm, é o mesmo; é a mesma matriz de pensamento: a matriz da violência”.

O pensamento do ministro é lugar-comum entre os que querem demonizar um grupo político rival. É como se dissessem: eles não apenas são o mal, mas são todo o mal que possa existir. Não que eu tenha algo de elogioso a dizer dos golpistas, mas criticá-los não implica aceitar abstrações que liguem seus atos a assassinatos de crianças, especialmente quando não assassinaram ninguém. Além disso, por grupo rival, não entendamos apenas os meliantes do dia 08, mas as hostes bolsonaristas de forma geral. Sou, como faço questão de lembrar e como o histórico dos meus artigos demonstra, um crítico ferrenho do bolsonarismo, contudo, nunca aceitei equivaler o bolsonarismo a nazismo ou fascismo, como tantos já fizeram e fazem. Considero o bolsonarismo um mal, é certo, mas não um mal da mesma ordem do nazismo. É que é perfeitamente possível estabelecer categorias (não falarei aqui de hierarquias) de males, mas isso é algo que os que elevam o oposicionismo ao radicalismo não conseguem aceitar: se você não aceita chamar seu rival de tudo de podre que pode existir, você é um traidor da rivalidade. Dentro desta linha de raciocínio, seria possível chamar um rival político qualquer (especialmente se ele realmente representar algum tipo de mal) de pedófilo, e apenas aguardar as primeiras vozes em protesto para acusar: “você é um defensor do fulano”. Assim, qualquer ilação é possível.

Os louros políticos do governo são, então, principalmente dois: dar substância para sua tentativa de regulamentação da internet e imprensa; inflar o apoio ao governo, vendendo-se como o caminho do “amor”, em oposição ao “ódio”, personificado por seus rivais (incluindo aqui não apenas bolsonaristas) e que responderiam por todos os tipos de mal, passando pelo nazismo e desaguando no barbarismo de se assassinarem crianças.

Em relação ao primeiro ponto, o governo não perdeu a oportunidade e, se aproveitando do pânico e comoção gerados pelos ataques, baixou portaria que basicamente dá um poder de polícia ao MJSP sobre conteúdos ditos “flagrantemente ilícitos” publicados em redes sociais. Em sua ginástica argumentativa para justificar o que é uma clara invasão da esfera dos demais poderes e à liberdade de expressão — ginástica essa amplamente exercida ultimamente —, apelam até ao Código de Defesa do Consumidor. Ora, se o MJSP pode agir basicamente de ofício contra conteúdos ditos ilícitos, é preciso que ele também tenha o poder de definir o que é ilícito ou não. Qualquer debate nesse sentido, por óbvio, deveria dar-se no Legislativo, mas vivemos tempos estranhos, em que até ditos liberais saem da moita para dizer que está tudo certo, já que esta seria uma política “baseada em evidências”. As evidências de fato atestam o perigo do “efeito contágio”, e foi justamente por isso que diversos veículos de comunicação tomaram a decisão de não dar publicidade ao nome do criminoso que atacou a creche em Blumenau, bem como a imagens do ataque. O voluntarismo da sociedade civil, como podemos ver, independe da tutela estatal.

Quanto ao segundo ponto, não estamos diante de nenhuma novidade. Se Bolsonaro governou sem sair do palanque (e sua derrota em grande parte a isso se deveu), o lulopetismo tenta se reinventar como o “antídoto ao ódio”, e não deixará de explorar, sempre que tiver a chance, o medo para tentar inflar suas fileiras. Também Dino explicita o quanto isso é um trunfo para o governo: “O extremismo político acabou fazendo com que se ampliasse o apoio ao governo, não só social como também institucional”. O que tentam fazer, basicamente, é vender a ideia de que apoiar o governo, a indubitável “encarnação do bem”, é algum tipo de imperativo moral. Para mim, imperativo moral é denunciar politicagem e oportunismo em cima de tragédias.

Fontes:

https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2023/04/05/ataque-a-creche-em-blumenau-veja-quem-sao-as-vitimas.ghtml

https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2023/04/06/interna_politica,1478227/flavio-dino-determina-investigacao-de-organizacoes-neonazistas.shtml

https://www.poder360.com.br/brasil/adolescente-mata-professora-a-facadas-em-escola-de-sp/

https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2023/03/01/numero-de-assassinatos-cai-1percent-no-brasil-em-2022.ghtml

https://g1.globo.com/ma/maranhao/noticia/2021/06/17/governador-flavio-dino-anuncia-desfiliacao-do-pcdob-apos-15-anos-no-partido.ghtml

https://www.gazetadopovo.com.br/ideias/a-grande-fome-de-mao-como-o-comunismo-matou-mais-que-o-holocausto-na-china/

https://congressoemfoco.uol.com.br/area/governo/governo-cria-grupo-contra-discurso-de-odio-com-felipe-neto-e-manuela-davila/

Racismo Estrutural — Silvio Almeida

https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2355180

https://www.metropoles.com/brasil/dino-associa-golpistas-de-8-1-a-assassinos-de-criancas-em-escolas

https://www.conjur.com.br/dl/portaria-ministerio-justica-redes.pdf

https://revistaoeste.com/politica/novo-pede-suspensao-de-portaria-sobre-redes-sociais-tribunal-da-verdade/

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Gabriel Wilhelms

Gabriel Wilhelms

Graduado em Música e Economia, atua como articulista político nas horas vagas. Atuou como colunista do Jornal em Foco de 2017 a meados de 2019. Colunista do Instituto Liberal desde agosto de 2019.

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