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“Introdução ao Libertarianismo”: sobre o que nos une e o que nos divide

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O esforço por explicitar os fundamentos do liberalismo e as diferenças entre suas correntes se justifica por facilitar a compreensão do que representa a causa comum dessas diversas correntes e o que as diferencia, permitindo que os liberais saibam quando as prioridades devem fazê-los trabalharem juntos e quando devem saudavelmente divergir. O livro Introdução ao Libertarianismo, vindo depois de nosso livro Introdução ao Liberalismo, exibe propósito semelhante.

Editado pela Almedina, com selo do Instituto Liberal, o trabalho é de autoria de Bernardo Santoro, ex-presidente desta última instituição e atualmente membro de seu Conselho Superior. Advogado e cientista político, Bernardo transpõe para essa breve obra, com sutis modificações e prefácio de Salim Mattar, a sua dissertação de mestrado em Direito originalmente publicada em 2014. Como ele mesmo afirma, o trabalho pretendia transcender a discussão meramente econômica e levar as ideias da liberdade à discussão “epistemológica, ética e principalmente jurídica”. O autor também observa na abertura do livro que “aquele garoto que escreveu as linhas que seguirão já não tem mais o ardor de outrora, tendo sucumbido, até certo ponto, ao pragmatismo que a experiência eventualmente nos leva a ter, além de termos revisto algumas ideias políticas, agregando também conteúdos de cunho mais conservador, que decidimos não adicionar nesta obra, mantendo sua pureza de princípios”.

Esclarecida a finalidade do trabalho, Bernardo Santoro conceitua o libertarianismo como um desenvolvimento do liberalismo. A fase clássica desta última tradição é identificada por ele como sendo marcada pelas teses “do racionalismo, do individualismo, do igualitarismo formal, do universalismo, do reformismo e do progressismo”, em algum grau, conforme as conceituações expostas por Ubiratan Borges de Macedo em seu clássico Liberalismo e Justiça Social. O termo “progressismo”, naturalmente, não deve ser lido com rigorosamente a mesma acepção com que é empregado de hábito na discussão política atual, referindo-se de forma genérica à crença na possibilidade de melhoria através do exercício da razão e do desenvolvimento econômico, mas não demandando necessariamente o abstratismo destrutivo das vertentes que hoje se verificam.

O princípio da liberdade seria um elemento comum a todas as ramificações liberais, entendido “como a possibilidade de uma pessoa realizar o ato que quiser, sem ser regulado, tributado ou punido, a não ser que haja razão suficiente para demonstrar porque não deve ser permissível”. No entanto, segundo as vertentes mais radicais do liberalismo, postulados como a soberania individual se tornaram vítimas de uma flexibilização indesejável em virtude da fluidez do entendimento quanto a esse princípio da liberdade e, concomitantemente, quanto ao papel do Estado que dele decorreria.

Como exemplos principais disso, o autor relaciona o incremento do papel do Estado no liberalismo norte-americano, sustentando que “a heterogeneidade de pensamento resultou no esvaziamento do liberalismo como pensamento político autônomo e a cooptação de suas bandeiras pelo movimento conservador, no que tange às liberdades econômicas, e pelo movimento socialista, no que tange às liberdades civis, deixando órfãos de representatividade os cidadãos cuja visão reflete uma defesa integral do conceito de liberdade”, a ponto de “o próprio termo ‘liberal’ passar a ser identificado com a social-democracia estadunidense”. De fato, embora reconheça a existência do liberalismo social, que admite uma maior atuação estatal, entendo que, nos EUA, a designação “liberal”, a ele associada, se perdeu de tal forma que vertentes mais radicais, que já se pode dizer que cruzaram a fronteira para a social-democracia (ou até coisa pior), estão atreladas a ela.

Com isso, na década de 1960, o fundador da Foundation for Economic Education, Leonard Reed, cunhou o termo “libertário”, antes referente ao anarcossocialismo europeu, para identificar o movimento político que pretendia “purgar” o liberalismo dessa fluidez e robustecer o individualismo. Esse movimento ganhou força no meio intelectual, dentro do Partido Republicano e no Partido Libertário, fundado em 1971. Bernardo Santoro engloba sob esse rótulo “libertarianismo”, como fica claro, também quase todos os institutos e movimentos surgidos na segunda metade do século XX que, na verdade, procuraram revisar o liberalismo social e a Revolução Keynesiana, retrair a social-democracia e valorizar concepções econômicas como a Escola Austríaca e a Escola de Chicago. A rigor, muitos dos autores que ele relaciona como parte do debate libertário podem perfeitamente também ser considerados autores liberais de suas respectivas épocas – embora haja debate sobre alguns, como Murray Rothbard e Hans-Hermann Hoppe com seu anarquismo de mercado, que rompem com toda a tradição liberal clássica ao propor a eliminação do Estado.

Depois da Introdução, Santoro aborda o tema “Epistemologia libertária nas Ciências Sociais”. A Teoria do Conhecimento estuda os caminhos e instrumentos necessários para descobrir a verdade, para “conhecer”, sendo a Epistemologia a “concretização da pesquisa dessa teoria do conhecimento em um campo científico específico”. O tema aparece aqui porque o autor compreende que não se pode discutir o conteúdo ético do libertarianismo sem formular as teorias epistemológicas que legitimariam esse pensamento. As epistemologias libertárias se reconheceriam pelo fato de que “a verdade (…) produzida pela execução de seus métodos” chegou à conclusão “de que a melhor ética a basear a relação social entre homens racionais é a ética baseada na maximização das liberdades políticas, sociais e econômicas dos indivíduos que compõem determinada sociedade”. As chamadas epistemologias libertárias, para Santoro, também se reconhecem por criticarem o método positivista-empírico, “em geral pelo fato de que hipóteses no campo social são muito mais volúveis do que na natureza”.

Entre as epistemologias libertárias, Bernardo Santoro enumera e elucida: o anarquismo teórico de Paul Feyerabend, que acredita não haver vantagem na adoção de um método científico pré-definido, pontuando que os observadores não possuem racionalidade avançada ao ponto de observar a realidade como ela é; o falsificacionismo de Karl Popper, segundo o qual “a experiência passa a não mais verificar a veracidade de determinada hipótese construída através do método indutivo, mas sim a sua não falsidade”, enfatizando-se que Popper, apesar de incluído na categoria das epistemologias libertárias por sua crítica ao racionalismo construtivista arrogante, não era adepto do individualismo metodológico; o individualismo metodológico de Max Weber, que defende que as instituições sociais são criações da ação humana individual; a Praxeologia de Ludwig von Mises, subdivisão do individualismo metodológico, que propõe a teoria geral da ação humana como paradigma das ciências sociais e econômicas; e, por fim, o evolucionismo subjetivista de Friedrich Hayek, também uma subcategoria do individualismo metodológico, enfatizando o papel da interação dos homens no processo social.

Na sequência, Bernardo Santoro aborda “A Ética Libertária”, enunciando e desdobrando suas diferentes vertentes. Aí encontramos primeiramente a chamada visão deontológica, que “corresponde ao dever-agir de um indivíduo perante determinada situação” e determina que “uma ação é considerada boa ou má caso nela estejam embutidos os princípios que vinculam a obrigação moral dos indivíduos em adotá-la”, categoria que ele ilustra com as seguintes subcategorias: a ética deontológica de Murray Rothbard, que se atrela à noção da existência de uma lei natural e parte da premissa da propriedade privada do próprio corpo, rejeitando a legitimidade do Estado; a ética deontológica de Robert Nozick, que se estrutura em torno da ideia do valor objetivo do ser humano e da sociedade livre, justificando o papel de um Estado mínimo, com base na filosofia kantiana; e a ética deontológica do Objetivismo de Ayn Rand, que elege a manutenção e glorificação da vida como valor maior e o egoísmo racional como virtude.

Bernardo aponta a seguir a existência de uma ética libertária de visão dialogal-argumentativa, na qual se destaca Hans-Hermann Hoppe, discípulo de Rothbard, que, no entanto, se inspira nas ideias do sociólogo da Escola de Frankfurt, Jürgen Habermas, para construir seu sistema, segundo o qual “somente a ética que defenda a propriedade privada, e nenhuma outra, pode ser demonstrada pela argumentação”, porque o ato de argumentar implica o exercício de meios escassos, contidos no próprio organismo do indivíduo, o que deriva, a seu ver, do fato de que tal indivíduo detém a propriedade privada do próprio corpo.

Há ainda uma visão utilitarista, consequencialista, visando a apreciar as ações morais a partir de seus resultados. O utilitarismo libertário deitaria raízes em John Stuart Mill e seria encontrado nos economistas e pensadores da família Friedman, como Milton e David Friedman, e em outros nomes da Escola Austríaca e da Escola de Chicago, que precisam explicar, com base nos fatos econômicos, porque a liberdade individual é útil para aumentar a prosperidade. Por fim, o autor aponta a visão pluralista de Randy Barnett, que entende que o libertarianismo não deve se preocupar em propor uma grande teoria ética unificada, mas “estabelecer quais os princípios fundamentais em que um sistema legal deve se fundamentar para que, de forma autônoma à ética seguida por um indivíduo ou um grupo, a liberdade humana prospere numa sociedade pacífica”.

Depois da Epistemologia e da Ética, Bernardo Santoro analisa o “Direito libertário”. Ele extrai dos pensadores libertários uma acepção do termo “instituição” restrita a fenômenos sociais que sejam produto das ações não intencionais dos indivíduos, o que faria, em sua leitura, do Estado, por exemplo, uma organização que não se enquadraria no conceito – o que não significa necessariamente, conforme ainda o autor, que não seja uma organização necessária. Nomes como o próprio Hayek, Bruno Leoni, Tocqueville, James Buchanan, Ayn Rand, Hans Kelsen, David Friedman e até o fundador do Instituto Liberal, Donald Stewart Jr., aparecem nesse capítulo para conduzir uma reflexão sobre as propostas libertárias de sistemas legais policêntricos, “com muitos centros jurisdicionais”, como quereriam os libertários anarcocapitalistas, e seu oposto, o sistema monocêntrico, em que se admite a figura do Estado.

Em uma rica conclusão, particularmente elogiada pelo prefaciador Salim Mattar, Bernardo Santoro elenca o que seriam, em sua opinião, limites de todas as propostas libertárias anteriormente elencadas, sustentando que “é extremamente saudável para o movimento libertário e para as ideias libertárias que tenhamos vários argumentos em prol da liberdade. Isso significa uma maior probabilidade de se convencer pessoas dos mais diferentes perfis a estudar a filosofia política” – e arremata: “Liberdade importa, inclusive dentro do próprio libertarianismo. Um libertarianismo livre e inclusivo na epistemologia, na ética e no direito”.

Pessoalmente, nunca me identifiquei como um libertário. Sempre preferi enfatizar a tradição liberal clássica, as raízes de nossas teses e reflexões, e, parece-me que antes de Bernardo, já esboçava simpatia pelas vertentes mais conservadoras do liberalismo. O termo “libertarianismo”, como o autor aponta, apesar de sua elasticidade englobar nomes como Hayek e Friedman, ficou mais associado a vertentes mais radicais, como o anarcocapitalismo, que jamais esposei, apesar de respeitar sua presença no debate e no ativismo liberal. No entanto, concordo totalmente com essa conclusão.

Meu esforço por expor a diversidade de pensamentos dentro do liberalismo tem exatamente o mesmo motivo. Louvo este trabalho de Bernardo por essa nobre intenção que o move, muito competentemente realizada, que marca também um verdadeiro documento histórico de uma época em que o que vivemos e fazemos hoje estava sendo viabilizado pela atividade intrépida de figuras como o seu autor.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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