“Descriminalização”: STF se mete no que não deve e não decide que deve

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Manifestei há alguns meses atrás em um artigo aqui no IL minha posição favorável à descriminalização, não apenas da maconha, mas de todas as drogas. Ressaltei, na ocasião, que estava tratando de minha posição pessoal, mas que, naquele momento, não adentraria na discussão que estava ocorrendo no STF, nem sobre o embate de legitimidade entre Legislativo e Judiciário na questão, o que faria em um artigo futuro. Bom, dado que a votação no STF foi finalizada com maioria favorável pelo que chamam de “descriminalização” da maconha para uso pessoal, este é o artigo que havia prometido.

Não tratarei aqui dos meus argumentos pró-descriminalização, já exaustivamente tratados no artigo supracitado, o qual convido os interessados a lerem. O ponto aqui é outro. Quando me manifesto favorável à descriminalização, isso não significa que vá subscrever toda e qualquer decisão que pareça privilegiar esse fim, sem me preocupar com a forma. Se o único mérito que você julga em uma decisão judicial é o fim, sem se importar com os meios, não pode reclamar quando, usando exatamente os mesmos meios, chegarem amanhã a decisões que não lhe agradem. Então, o primeiro ponto é a legitimidade do STF para julgar a questão.

Vou dizer logo na largada que estou distante dos que reduzem a legitimidade do STF a temas polêmicos versus temas não polêmicos. Segundo estes, independente do mérito da provocação feita à corte, os ministros não têm legitimidade para debater temas controversos tais como drogas, aborto etc. Até posso aquiescer com a necessidade de se avaliar a conveniência de se pautarem determinadas ações para julgamento, mas a legitimidade, ou não, não depende de polêmica, mesmo porque não deve ser a popularidade o desiderato dos magistrados (quando isso ocorre, temos um sinal claro de politização da corte, já que a busca pela popularidade é própria de quem tem cargo eletivo).

Ora, em nossas críticas ao ativismo judicial, não temos dito, no caso do STF, que esta corte deveria se limitar à função dada a ela pela Constituição Federal? E qual é essa função? A de uma corte “constitucional”. Esse, portanto, deve ser o parâmetro para delimitar a legitimidade ou não. Se ela é provocada com uma ação questionando a constitucionalidade de uma lei, a priori, está dada a legitimidade para responder a essa provocação, ainda que o tema seja controverso. O problema, é claro, é quando os digníssimos ministros não se comprazem com esse nobre papel e descambam para as “inovações”; mas já chegaremos lá.

A questão a ser decidida era se o art. 28 da Lei n.º 11.343/2006 era constitucional ou não. O referido artigo, vale recordar, diz o seguinte: “Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I – advertência sobre os efeitos das drogas; II – prestação de serviços à comunidade; III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”.

Defendi em meu outro artigo que, em que pese essa lei ter representado um avanço, no sentido de deixar claro que alguém não poderia ir para a cadeia simplesmente por usar uma substância ilícita, que as penas previstas, ainda que leves, seguem sendo um disparate e uma indevida incursão do Estado na vida privada, bem como uma pretensão de tutelar o corpo e saúde alheios. Conforme essa visão, considerar essas penas como sendo também inconstitucionais não seria nenhum absurdo e eu não teria problema algum em elogiar uma decisão da suprema corte nesse sentido. Já a alternativa era considerar o tal artigo constitucional, o que significaria manter as coisas exatamente como estavam (lembrando que, ainda que muito distantes do ideal, ao menos o Brasil não está encarcerando usuários por serem usuários).

Ocorre que, em algum momento, o ilustre ministro, hoje presidente da corte, Luís Roberto Barroso, muito preocupado com uma possível repercussão negativa da discussão com respingos à “popularidade” do STF (preocupação própria de político, não de magistrado), propôs, sendo seguido por seus pares, restringir a questão apenas à maconha, delimitando-se uma quantidade como norte para diferenciar usuário de traficante. É aqui que o problema começa.

O artigo 28 da Lei n.º 11.343/2006 fala de forma muito clara em “drogas”, isto é, de todas as drogas ilícitas. Não há parte alguma do artigo que permita um tratamento distinto à maconha. “Mas a maconha é uma droga com menor impacto social”; “Descriminalizar a maconha é menos impopular do que fazer isso para todas as drogas”; ou, em sentido contrário: “A maconha é prejudicial à saúde”. Estas, embora não sejam transcrições literais, sumarizam alguns dos argumentos apresentados ao longo do tempo por ministros do STF em seus votos e opiniões. São considerações de cunho antes de tudo pessoal e, se próprias a uma discussão legislativa, nada têm a agregar à questão que deveriam responder: o artigo 28 é constitucional? A opção por restringir o julgamento a apenas uma droga, muito longe de demonstrar prudência, atesta ainda mais o ativismo do STF. Fizeram uma escolha antes por inclinações pessoais ou mesmo considerações de popularidade do que técnica, ignorando o que está expressamente escrito na lei.

Contra essas e outras críticas, Barroso, mais do que todos, tem ido à mídia para defender a proposta e, entre declarações contraditórias, tem, bem como seus colegas, reforçado a necessidade de se estabelecer uma quantidade como critério de corte para diferenciar usuário de traficante. Como já virou rotina, argumenta-se que há uma “omissão” do Legislativo, que teria se furtado em decidir sobre a quantidade. É esse ponto, a diferenciação entre usuário e traficante, que estabeleceu a direção para a qual a discussão se encaminhou.

Discutir o ponto mais relevante, se indivíduos podem ser punidos por serem usuários, se isso é ou não autorizado pela Constituição, virou algo totalmente secundário. Um suposto encarceramento em massa, com viés racista, de usuários (negros, em sua maioria) presos e condenados como se fossem traficantes, tudo devido a um silêncio da lei sobre a quantidade, passou a dominar o debate. Se, com a restrição do julgamento à maconha, tentaram supostamente sinalizar prudência e não desagradar setores mais conservadores da sociedade, o direcionamento da quantidade foi um notório aceno a setores ditos mais progressistas, mais em especial às hostes identitárias, as quais nunca têm a liberdade individual como prioridade, dada a primazia da identidade.

Ocorre que o suposto silêncio do legislador é mais uma dessas ilusões propagadas pelos digníssimos ministros, não contentes com o papel negativo que a Constituição lhes dá e dispostos a assumir um protagonismo que não lhes cabe e um ativismo que lhes avilta ao invés de elevá-los. Lemos claramente no parágrafo segundo do mesmo artigo que “para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”. Bem se vê que a retórica de que é o policial que decidirá se o indivíduo é usuário ou traficante, como tantos repetem por aí, é falsa, bem como desmente-se aqui a afirmação de que é tão somente a quantidade que dirá que é um caso de tráfico, sendo, sim, necessária a concorrência de outros elementos para caracterizar o crime.

Se esse parágrafo é adequado ou não, isso é outra questão, mas o fato é que não há silêncio do legislador sobre esse ponto, e sim uma opção por dar ao juiz a faculdade de decidir, mediante outros elementos, além da quantidade, se se trata de tráfico ou consumo. Aliás, seria diferente mesmo se o legislador houvesse estabelecido a quantidade na lei? Das duas, uma: ou os outros elementos falariam mais alto e a quantidade não seria algo tão relevante assim, ou a quantidade passaria a ser o principal, senão único elemento para configurar tráfico, e por uma mera tecnicalidade de gramas, um usuário, com uma quantidade ligeiramente acima do permitido, seria enquadrado como traficante, o que seria potencialmente muito mais prejudicial aos usuários como um todo (e certamente estimular o tal encarceramento em massa). Essa é uma ponderação tão óbvia que os próprios ministros não deixaram de considerá-la em sua decisão.

No item 4 da tese estabelecida, os ministros decidiram que, “nos termos do §2º do artigo 28 da Lei 11.343/06, será presumido usuário quem, para consumo próprio, adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, até 40 gramas de cannabis sativa ou seis plantas-fêmeas, até que o Congresso Nacional venha a legislar a respeito. Na sequência, (item 5): “A presunção do item anterior é relativa, não estando a autoridade policial e seus agentes impedidos de realizar a prisão em flagrante por tráfico de drogas, mesmo para quantidades inferiores ao limite acima estabelecido, quando presentes elementos que indiquem intuito de mercancia, como a forma de acondicionamento da droga, as circunstâncias da apreensão, a variedade de substâncias apreendidas, a apreensão simultânea de instrumentos como balança, registros de operações comerciais e aparelho celular contendo contatos de usuários ou traficantes”. Já para quantidades acima do estabelecido, o item 8 estabelece: “A apreensão de quantidades superiores aos limites ora fixados não impede o juiz de concluir que a conduta é atípica, apontando nos autos prova suficiente da condição de usuário”.

Então, vejamos: o Congresso, teria se omitido e se furtado a fazer uma diferenciação entre usuário e traficante; já vimos que isso não é verdade e que a opção do legislador ao não estabelecer quantidade foi dar ao juiz a prerrogativa de analisar os elementos como um todo; vimos também que o mero estabelecimento de uma quantidade, sem consideração de outros elementos, seria uma medida arbitrária com o condão de mandar inocentes para a cadeia; por fim, temos que o mesmo STF, afoito em responder à dita “omissão” do Legislativo, estabeleceu uma tese que, malgrado estabelecer a quantidade (apenas para a maconha, lembremos), reconhece que na prática a questão poderá depender dos demais elementos, já que um traficante pode estar portando menos do que 40 gramas, e um usuário pode ser flagrado portando mais. Não é a consequência prática a necessidade de elementos outros que não a quantidade para configurar o tráfico, exatamente o que o artigo 28 já estabelece?

Eis o resultado de uma ação que, diante de interrupções, completou quase uma década desde seu início, passando por desgastes diante da opinião pública e uma dificuldade imensa em comunicar o que estava sendo discutido (já que, graças a Barroso, a discussão de fato mudou de rumo): o artigo 28 segue de pé (aliás, acho que, neste momento, nem a população, nem a imprensa, nem os próprios ministros sabem ao certo se o dito cujo é constitucional ou não, sendo que isso era o único ponto que eles tinham que responder); abriu-se uma exceção para a maconha (pois ela é especial), sem, contudo, invalidar todas as penas do artigo para essa droga, já que os usuários seguem sujeitos a advertência, bem como a medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo (mas não mais a prestação de serviços à comunidade); o usuário de maconha passa a poder adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo até 40 gramas da droga, ou até 6 plantas-fêmeas.

Cumpre perguntar, após toda a verborragia sobre o encarceramento em massa de jovens negros, se, seguindo essa tese, teriam sido todos esses jovens encarcerados por tráfico de maconha somente? Que alento podem dar os nobres ministros àqueles que, seguindo esse argumento, estão injustamente presos como traficantes enquanto portavam quantidades módicas de outras drogas? Se dizem que o legislador se omitiu ao não estabelecer uma quantidade na lei, permitindo que usuários fossem presos como traficantes, por que remediar isso apenas no caso da maconha? Cometeria o policial racismo ao prender o jovem negro com 50 gramas de maconha, mas não se o prender com duas pedras de crack? Mas, claro, a verborragia identitária escapa à lógica. Os vícios que pode ter o artigo 28 (e acredito que tem muitos) seguem aí produzindo seus efeitos, já que os digníssimos ignoraram a provocação inicial e passaram a brincar de legisladores, chegando ao ridículo de ter que fazer uma média da quantidade de gramas de maconha proposta por cada um deles.

Diante de mais esse arroubo, mais esta incursão do STF sobre o Legislativo — arroubo que, repito, não tem a ver com o tema, e sim com o rumo da discussão e o que foi decidido —, qual foi a resposta do Congresso? Até o momento, a aprovação de uma PEC no Senado, que coloca na Constituição uma reprodução literal do artigo 28 da Lei 11.343/06. Também aqui não podemos cometer o erro de ignorar a forma e concluir que, dada a escassez de respostas ao STF, esta é proposta meritória simplesmente por ser uma resposta. Penso, justamente ao contrário, que a chamada PEC das Drogas é uma das coisas mais estúpidas que já saiu da Casa Alta recentemente.

Temos uma das maiores constituições do mundo, o que se deve em grande parte a esse hábito maléfico de incutir tudo o quanto é coisa, por mais trivial que seja, na Carta Magna. Nossa Constituição, em que pesem seus pontos positivos (e ela tem muitos), é hoje uma colcha de retalhos que trata de temas completamente impróprios de serem tratados na lei maior. Certamente, não podemos ver com bons olhos que ela siga sendo usada como rascunho para interesses outros, ou como mural para que se grafitem acenos ou respostas a outras instituições. Além do mais, é uma resposta tosca sobre algo cujos efeitos reais são praticamente nulos e que não limita, de forma alguma, o ativismo dos ministros. Se o Congresso — o Senado em especial — estivesse realmente interessado em dar respostas concretas aos desmandos dos vizinhos togados, já teria agido para frear os abusos e os vilipêndios à liberdade de expressão cometidos diuturnamente há pelo menos cinco anos pelo STF (e muito mais do que isso, se considerarmos o longo histórico de indevidas intromissões no território legislativo).

Por fim, convém perguntar quais as consequências da decisão do STF no debate sobre a descriminalização das drogas (que é diferente de legalização, lembremos). Primeiro, notamos que, ao fugir da única questão que lhes competia responder, os ministros enveredaram por um caminho além de tudo confuso, que não deu a oportunidade de que a opinião pública discutisse a questão realmente importante: as pessoas podem sofrer consequências legais por usarem drogas? O ponto realmente caro à liberdade, foi ignorado. Ao invés disso, como optaram por fazer novar investidura contra a autonomia legislativa, mesmo após todo o desgaste da corte perante à população, colaboraram para reduzir a coisa a legitimidade do STF versus a do Congresso, deixando novamente a questão de lado. Já a leitura popular, que, a priori, já é carregada de todas as desconfianças quando o tema é drogas, ainda que equivocada, mas facilitada pela confusão armada pelos ministros, é de que o STF “liberou” a maconha.

Falar em liberação é uma grosseria; aliás, recuso-me a chamar sequer de descriminalização uma decisão que segue impondo consequências legais ao usuário da maconha. Como vimos, todo o rodeio e desgaste provocados por Barroso e aceitos por seus colegas resultaram em algo que, fora algumas tecnicalidades, não altera substancialmente em nada o artigo 28 da Lei 11.343/06.

Se o STF tivesse se limitado à questão inicial e declarado o artigo 28 inconstitucional (como eu penso que deveria ter feito), então seria próprio falar em liberação das drogas? Tampouco. Quem pensa dessa forma, e incluo aqui legisladores que, por limitação interpretativa, ou desonestidade intelectual mesmo, seguem propagando esse mito, provavelmente crê que usuários, na condição de usuários, podem ir para a cadeia e consideram isso como correto. Com ou sem artigo 28, usuários já não podem ser presos. Tivesse esse artigo sido considerado inconstitucional, a única coisa que aconteceria seria que usuários de drogas deixariam de estar sujeitos a “I – advertência sobre os efeitos das drogas; II – prestação de serviços à comunidade; III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”; só isso. Que consequência isso teria para a segurança pública? Nenhuma. Como ajudaria o tráfico? Não ajudaria (a distinção entre traficante e usuários seguiria dependendo da conjuntura e dos elementos probatórios). A única consequência, positiva, seria que cidadãos deixariam de ser tratados como bebês por consumir substâncias sabidamente nocivas; mas, claro, a decisão do STF nada teve a ver com liberdade individual e quase uma década depois do início da ação, seguimos não debatendo o que realmente importa, com um lado transformando toda a discussão em uma questão identitária e outro fazendo tempestade em copo d’água e alimentando a paranoia popular.

Fonte:

https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=528474&ori=1

https://www.estadao.com.br/opiniao/stf-de-novo-usurpa-papel-do-congresso/#:~:text=O%20Supremo%20Tribunal%20Federal%20(STF,e%20aos%20traficantes%20de%20drogas.

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm

https://www.poder360.com.br/justica/stf-fixa-limite-de-40-g-de-maconha-para-diferenciar-usuario-de-traficante/#:~:text=O%20STF%20

https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2024/04/16/senado-aprova-pec-sobre-drogas-que-segue-para-a-camara

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Gabriel Wilhelms

Gabriel Wilhelms

Graduado em Música e Economia, atua como articulista político nas horas vagas. Atuou como colunista do Jornal em Foco de 2017 a meados de 2019. Colunista do Instituto Liberal desde agosto de 2019.

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