Anular, verbo intransitivo na praxe suprema

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Anular. Em linguagem jurídica, designa a conduta de autoridade, judiciária ou administrativa, que declara inválidos e desfeitos certos atos e/ou negócios jurídicos após a identificação de vícios e defeitos neles. Na acepção corrente, indica ainda a atitude de eliminar, quebrar, destruir, exterminar, tornar algo sem efeito, inútil ou insignificante, reduzindo-o ao nada.

O verbo começou a povoar o noticiário a partir da série de anulações, pelo STF, das condenações de corruptos desmascarados, durante os anos lavajatistas, em propinodutos bilionários envolvendo políticos, seus tesoureiros, marqueteiros, doleiros e assessores e empresários próximos ao círculo de mando. Após o leading case de Lula, cujas condenações foram anuladas pelo chamado “erro de CEP”, supremos togados se dedicaram a anular outras sentenças contra os mais diversos figurões, assim como as provas produzidas graças aos esforços de agentes policiais e outrora chanceladas por todas as instâncias judiciárias.

Um dos episódios mais histriônicos da recente sanha anulatória de decisões foi protagonizado por Dias Toffoli, notório por suas ligações com o lulopetismo, mas não por um robusto saber jurídico. Já na era Lula 3, o togado anulou todas as evidências obtidas a partir do acordo de leniência com a empreiteira Odebrecht, mediante as alegações de que tais provas teriam sido colhidas durante o “pau-de-arara do século XXI”, no âmbito do que teria sido “o maior erro judiciário da nossa história”. As alusões denegritórias à Lava-Jato e à prisão de Lula, respectivamente, foram tão úteis ao manejo da caneta anuladora de Toffoli quanto o foram para torná-lo, sob as lentes da imprensa estrangeira, uma espécie de coveiro-mor de nosso “cemitério de provas de crimes”. Na distribuição de tarefas inconfessáveis, parece ter cabido ao ex-assessor de José Dirceu o protagonismo no cancelamento das evidências do maior esquema de corrupção de toda a nossa história.

No plano legislativo, o desejo supremo tem gerado um injustificado cancelamento de normas aprovadas por mandatários eleitos. Convertidos em autênticos “anuladores em série”, nossos togados, sempre a pedido de siglas esquerdistas esvaziadas em sua representação parlamentar, vêm colocando por terra diversas normas sobre pautas relevantes, tais como as leis do marco temporal e da desoneração da folha de pagamentos, impondo o refazimento das normas, sob a “supervisão” direta da elite judiciária.

Em mais uma recente demonstração de força das togas sobre a vontade popular, a corte tratorou a Lei de Drogas em vigor, para, na prática, anular seu artigo 28, descriminalizar o chamado consumo pessoal de maconha e, ainda, estipular uma quantia aleatória como “limítrofe” entre o uso e o narcotráfico. Não satisfeito com a mais nova “façanha” alcançada pelo tribunal, Toffoli ainda se esmerou em advertir a câmara dos deputados sobre os “riscos” em torno da eventual aprovação de uma PEC que torne a criminalizar a conduta do usuário e que venha a ser enxergada, pela corte suprema, como violação a cláusulas pétreas (inalteráveis) da Constituição. Acinte seria termo muito brando para designar combinação tão tóxica de prejulgamento e egolatria.

Não imagine você, caro leitor, que a ânsia anulatória se restrinja a peças da legislação federal, de ampla repercussão midiática. Várias normas estaduais, e até municipais, têm tido sua breve existência ceifada por delírios ideológicos de togados, que, apesar de nomeados ao sabor da conveniência do planaltino de plantão, se sentem os mais legítimos representantes de uma população inteira. Não à toa, o STF acaba de anular uma lei municipal de Blumenau (SC) que vedava a abordagem da chamada “ideologia de gênero” em escolas. Sem qualquer questão constitucional relevante, os supremos procederam a mais uma descarada invasão da esfera legislativa, e, juntamente com a lei em si, anularam as escolhas dos munícipes para seus filhos em idade escolar. Afinal, para um morador local, do que adiantou ter votado em um certo perfil de vereadores se, mediante decisão irrecorrível, togados de cúpula julgaram por bem incutir, em mentes infantis, baboseiras do tipo “não se nasce mulher; se escolhe ser mulher” ou até aberrações mais gritantes?

A sede por anular não conhece reverência às normas processuais, muito menos à autonomia da própria magistratura. Tanto assim que, em um dos casos mais “pitorescos” nos últimos anos, o ministro Alexandre de Moraes atendeu a um pedido da AGU (ora capitaneada pelo famoso “Bessias”) para anular sentença da 1ª Vara da Justiça Federal de Maringá (PR) que havia condenado a União ao pagamento de R$ 20 mil a título de danos morais ao ex-deputado estadual Homero Marchese (Republicanos), devido a um “erro procedimental” do próprio Moraes. Em ótimo português, o “supremo dos supremos” permitiu à AGU atropelar todos os ritos, saltar por cima de todas as instâncias competentes para o julgamento de eventuais recursos (a saber, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região – TRF4 e o STJ), e acolheu uma reclamação do “Bessias” nos autos de caso que sequer poderia ter apreciado por envolver um juízo desfavorável sobre uma de suas decisões censoras.

A anulação, por Moraes, da sentença do juízo de Maringá contém em seu bojo uma declaração implícita da completa “nulidade” de todos os desembargadores cíveis do TRF-4 e de todos os ministros das turmas cíveis do STJ. Do alto de seu poder sem limites, Moraes tornou-os todos autênticos “zeros à esquerda”, decorativos no exercício de uma jurisdição passível de ser menosprezada, sem pudor, a depender de interesses pessoais. Como se não bastasse tamanho escárnio frente à atuação funcional do magistrado diretamente agravado e de todos os demais que sequer foram chamados a opinar no assunto, Moraes ainda determinou a instauração, pelo CNJ, de processo investigativo contra o juiz pela ousadia “inaceitável” de ter condenado a União em virtude de uma sacrossanta canetada alexandrina.

Por fim, não se poderia deixar de aludir às diversas decisões supremas de anulação de robustas provas policiais contra indivíduos em prisão preventiva ou já condenados por tráfico de entorpecentes. Em reiteradas deliberações, muitas das quais proferidas em caráter monocrático, togados de cúpula vêm suscitando “firulas” retóricas (tais como a inexistência de mandado judicial ou a falta de autorização ao ingresso em domicílio vistoriado) para anular buscas policiais legítimas e, na esteira destas, todas as evidências de práticas delitivas configuradas por assombrosas quantidades de drogas, e até de munições, encontradas de posse dos envolvidos. Esvaziadas as operações anticorrupção, começam a ser tornados sem efeito os esforços de agentes policiais no combate à criminalidade dita de rua e, em particular, ao narcotráfico. Como consequência nefasta à nossa segurança pública, indivíduos comprovadamente envolvidos nesse mercado ilegal são restituídos ao convívio social, com visível agudização na percepção de impunidade generalizada.

Nossos supremos togados banalizaram a tal ponto as anulações e passaram a decretá-las de modo tão indistinto, que criaram a “arte” de anular por anular, independentemente do objeto a ser anulado e dos fundamentos para tanto. Anular como modo de ostentação de seu poder sem freios, anular como meio de imposição de supostas pautas ideológicas, anular para a mera satisfação de caprichos pessoais. Apenas anular, e ponto final. Em uma regência inusitada incorporada à praxe recente do Supremo, o verbo anular passou a prescindir de objeto direto definido.

Dentre as inúmeras autoridades (togadas ou não) cujas deliberações foram alvo de estapafúrdias anulações supremas, nenhuma delas manifestou o mais leve estarrecimento diante do atropelo dos ritos institucionais. Seja por medo, covardia ou apego às benesses estatais, todas optaram pelo silêncio. “Digo que quando a alma é malnascida (…)”, já profetizava Dante Alighieri, com todas as devidas reticências. Algo a acrescentar à sabedoria do velho mestre?

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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