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Democracia nos trópicos: um breve ensaio sobre o caso brasileiro.

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A jovial república federativa do Brasil parece passar, pelo menos na última década, por um certo mal-estar, uma ressaca que não se cura. Diversos fatores explicam esse “desgosto estomacal” e “aperto no peito”, mas a consequência mais clara possível é uma desesperança na terra de Santa Cruz. O presente ensaio pretende condensar os protagonistas desse mal-estar, fugindo das análises rasas como “a culpa é da polarização”, “o governo Dilma/Lula nos meteu nessa crise econômica/institucional”, “a avalanche de fake news está destruindo o tecido social brasileiro”, ou, ainda, “o fascismo e a extrema direita cresceram nos últimos anos”. Sim, todos esses fatores parecem ser, de fato, um problema, em certa medida e circunstâncias, mas nenhum desses fatores parece ser a raiz do problema brasileiro: parecem muito mais consequências, e não a causa do mal-estar.

Abordaremos inicialmente o nível de complexidade[1] de administrar um território que é maior que a Europa em si, ilustrado na imagem abaixo:

Imagem 1- Tamanho territorial brasileiro comparado ao continente europeu.

[1] No capítulo V de seu livro Peças e Engrenagens das Ciências Sociais, Jon Elster fala sobre miopia e previsão. Quanto mais complexa for a decisão que precisamos tomar no presente, quanto mais escasso for o conjunto de informações, também será maior o nível de miopia. Essa assimetria de informação e miopia elevada são agravadas em um país de dimensões continentais, no qual há uma grande centralidade de decisões em sua capital, Brasília.

Esse problema é tão complexo que foi comum na história dos nossos pares da América Latina, onde houve secessão, a segregação em diversos pedaços. Não é foco deste ensaio explicar por que o Brasil não se dividiu como outros países, mas é fato que essa unidade apresenta um bônus e um ônus para a democracia. Além de a dimensão territorial aumentar a complexidade do sistema político, Robert Dahl cita mais dois pontos que podem favorecer o florescimento e a maturação de uma democracia: i) sociedades com uma economia de mercado moderna. Neste ponto, o Brasil está atrasado: compare os índices de liberdade econômica[1] brasileira com os países da OCDE ou com o restante do mundo. Estamos atrás em quase todos os rankings avaliando diversos índices; ii) Fraco pluralismo subcultural, em outras palavras, o que o autor chamou de forte assimilação. Neste ponto, parece que não apresentamos maiores problemas quando comparados com o restante do mundo.[2]

Democracia e seus ciclos

Partiremos do pressuposto de que a crise da democracia moderna brasileira (CDMB) é uma função dependente da estrutura do sistema democrático forjado ao longo dos anos[3] e dos seus operadores. Isto é, a função CDMB (falhas estruturais do sistema democrático[4]; falhas no operador do sistema) torna-se ainda mais complexa, pois as falhas estruturais do sistema dão margem e até incentivam o operador do sistema a dilapidar o próprio sistema que lhe confere poder[5].

Uma das vantagens clássicas do sistema democrático parece ser uma maior estabilidade do país quando seus atores divergem. Essa estabilidade e manutenção da estrutura de poder se dá principalmente através do voto, sistemas de freios & contrapesos e de alternância de poderes. Em outras palavras, a democracia, pelo menos no curto prazo e na teoria, parece evitar tiranos e guerra civis. Vale ressaltar que a democracia, por melhores que sejam suas ideias[6], precisa se provar madura e fiel aos seus valores ao longo do tempo.

A anaciclose descrita por Aristóteles[7] nos sinaliza a valoração do povo de um sistema político se, e somente se, este sistema político for capaz de responder aos problemas atuais da sociedade. Em suma, os gregos nos apontam para a dura realidade de que sistema políticos podem se desvirtuar[8] com o tempo e não mais responder às demandas da sociedade: daí ocorreriam os ciclos de divisão e concentração de poder, como a Imagem 2 nos mostra.

Imagem 2- Anaciclose e suas fases.

[1]Os índices de liberdade econômica podem ser vistos e analisados no site: https://www.heritage.org/index/

[2] Muito dessa assimilação se deve à forte miscigenação que marca a gênesis do povo brasileiro de acordo com Darcy Ribeiro e Gilberto Freire.

[3] Essa estrutura está principalmente vinculada à Constituição Brasileira, mas é mais profunda do que a carta magna brasileira. A estrutura está também vinculada a como o poder político se divide e se amplia no processo democrático.

[4] Estrutura do sistema democrático pode ser uma proxy para a variável check in balance, que normalmente garante a manutenção e estabilidade do sistema democrático. Podemos nos aprofundar citando algumas instituições que deveriam garantir um certo check in balance. São elas: constitucionalismo, tripartição dos poderes e fragmentação dos poderes – tendem a ser os representantes máximos do povo, as eleições conquistadas com base no voto.

[5] Quase como uma espécie do paradoxo da tolerância do Karl Popper. O operador do sistema se utiliza das próprias regras do jogo da democracia para subverter a democracia. No capítulo XV do livro Peças e Engrenagens da Ciências Sociais, Jon Elster aborda a importância das pessoas que compõem as instituições e, como, se elas não têm mais valores democráticos, as instituições também não terão, acabando com a pujança da democracia.

[6] Sistema de freios e contrapesos, devido processo legal, participação popular pelo voto, Estado de Direito.

[7] Platão também fala sobre esses ciclos da política.

[8] Aristóteles chama esse desvirtuar-se de: forma pura e forma impura. Formas puras: monarquia, aristocracia e democracia. Formas impuras: tiranias, oligarquias e oclocracia.

Então, é raso achar que a democracia é um fim ou um bem em si mesma: sua missão é servir à sociedade. Por mais importante que seja o personagem Churchill e, por mais que o mesmo faça uma defesa forte da democracia[1], esta deve buscar incorporar melhorias (ser um sistema antifrágil), empoderar a população o suficiente para controlar o governo e ter “regras claras” para o controle da população.[2] Em seu livro, Why Nations Fail, Acemoglu e Robinson chamam esse processo de instituições políticas inclusivas, isto é, um sistema claro de freios e contrapesos quanto às instituições, o que cada uma vai fazer e como ambas se limitarão reciprocamente. Somado a isso, teremos inclusão da participação popular, sendo esta a maior responsável pela manutenção dos poderes. Caso a população tenha os seus poderes diminuídos[3] e reprimidos, ou seja, apartada – mesmo que marginalmente – do processo político, teremos instituições políticas extrativistas. Já no livro O Corredor Estreito, Acemoglu e Robinson abordam o equilíbrio entre o papel do poder estatal (evitando o estado de natureza) e o poder da sociedade (evitando a tirania estatal) para se conquistar uma sociedade livre e verdadeiramente democrática. Esse equilíbrio, os autores denominaram de Leviatã Agrilhoado, como se observa na Imagem 3 3 abaixo.

Imagem 3- Representação gráfica do Leviatã Agrilhoado, Leviatã Despótico e Leviatã Ausente.

[1] “A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas.” Frase clássica de Winston Churchill

[2] População controlar o governo: o poder emana do povo e o governo deve servir ao povo. Caso contrário, o povo deve ter mecanismos para questionar e, caso preciso for, destituir e corrigir as incongruências.

Regras claras para controle da população: O povo não poderá fazer tudo. Existirão alguns limites, normalmente acordados na Constituição, que visam a minar uma possível ditadura da maioria (oclocracia).

[3] Exemplos de poder da população sendo dilapidado: relativização da liberdade de expressão, aumento da censura, redução do devido processo legal, judicialização da vida ordinária, ativismo judicial, relativização de direitos constitucionais.

Esse equilíbrio do Leviatã Agrilhoado foi explicado pelos autores como uma metáfora, a corrida da Alice contra a rainha vermelha[1], também chamado de “o efeito da rainha vermelha”:

“O feito da Rainha vermelha se refere a uma situação na qual é preciso continuar correndo só para manter a sua posição (…) Se a sociedade diminui o ritmo e não continua a correr rápido o suficiente para dar conta do poder crescente do Estado, o Leviatã Agrilhoado pode rapidamente se transformar em Despótico.  Precisamos da competitividade da sociedade para manter o Leviatã sob controle, e, quanto mais capaz e poderoso o Leviatã for, mais poderosa e atenta a sociedade precisa se tornar.” (ACEMOGLU e ROBINSON, 2022, p 54)

Interessante notar que os conceitos de alguns autores conversam entre si em alguns contextos. Robert Dahl com a poliarquia parece ser um exemplo disso. Poliarquia seria um amadurecimento de uma democracia representativa que possuiria os seguintes pilares: participação efetiva da população, oposição política e liberdades civis. Em outras palavras, a Poliarquia exige um pluralismo e respeito pela individualidade das pessoas na sociedade, garantias essas fornecidas com maior probabilidade por um Leviatã Agrilhoado.

O que vivemos no Brasil do século XXI, principalmente nos últimos 10 anos, é uma situação de pouco consenso democrático e muito conflito. Será no conflito que, na teoria, a democracia irá se sair melhor do que outros modelos de governo, pois na democracia usará mais das ações cívicas (sistemas de leis, parlamento representativo através do voto, estado de direito através da constituição), do que o uso da força (revoluções, estado de natureza, morte e guilhotina)? Essa é uma boa pergunta.

Democracia como valor

 A democracia não tem valor em si mesma: é como a assimilação de Calcio (Ca) em nosso corpo: só ocorre quando está na presença de vitamina D[2]. A democracia só possui valor quando está na presença do Estado de Direito, caso contrário, podemos ter uma palavra esvaziada de significado. Há alguns exemplos de países que alegam ser uma democracia, mas estão muito distantes da Poliarquia; são eles[3]: Venezuela, China, Coreia do Norte, Cuba. Todas essas se autodenominam democracias, todavia, por não existir Estado de Direito, não passam de países que “fazem eleições”[4].

De maneira simples, o Estado de Direito nos aponta para a realidade cívica de que todos os cidadãos terão direitos civis[5].  Além disso, esses direitos não poderão ser aniquilados, nem pela vontade da maioria, muito menos por uma elite iluminada. Esses direitos não devem ser tirados em nenhuma circunstância, mesmo alegando: “defesa da democracia”, “segurança nacional”, “saúde do coletivo em primeiro lugar”, ou ainda “situação excepcionalíssima”.

Se, por um lado, temos países que não respeitam o Estado de Direito e se dizem democráticos, por outro, teremos pessoas que não querem relativizar os direitos civis em nenhuma circunstância. Boa parte do mal-estar do brasileiro com a democracia, por mais que o brasileiro médio não saiba exatamente explicar nesses termos, encontra-se na relativização da importância do Estado de Direito. A título de exemplo, parte da elite brasileira adota a falácia da falsa dicotomia. Pensam eles: nessa época de polarização, redes sociais e fake news, ou teremos um total respeito pelos direitos individuais (o que os americanos chamam de free speech) ou defenderemos a democracia. Nada mais equivocado! É justamente nos momentos de mais conflitos que precisamos de mais discussão, mais direitos cívicos e mais democracia/poliarquia. Caso contrário, corremos o risco de nos aproximar do cenário distópico “Orwelliano”[6].

A Democracia tupiniquim 

Convenhamos que as ideias, sejam boas ou ruins, quando chegam ao Brasil, passam por um certo processo de “abrasileiramento”, um aspecto intrínseco de nossa cultura. O homem cordial, diria Sérgio Buarque de Holanda, que se molda, que ganha fluidez e emoção, retém certo nível de racionalidade, mas “se adapta para a região dos trópicos”. República, Federalismo, Democracia, Check in balance, Judiciário Imparcial, representação indireta, são conceitos importantes para a construção de um Estado verdadeiramente democrático, sendo essenciais para a vivência de uma democracia madura que visa a servir o seu povo. Entretanto, em nossa história, a forma por que o Estado brasileiro se relaciona com o seu povo não parece ser, por muitas vezes, de servir, mas de ser servido.

Em seu livro A gramática política do Brasil, Edson Nunes reforça a ideia de como uma elite política busca ser servida pelo aparato estatal. Ele nos aponta, de forma esquemática, como o Estado brasileiro costuma se relacionar com seus diversos stakeholders[7], isto é, as gramáticas são um conjunto de regras, formais e informais (matriz institucional – Douglass North), que gera incentivos, favorece certos padrões de comportamento, interações dos políticos e burocratas com o restante do país. A Imagem 4 abaixo mostra de forma esquemática as quatro gramáticas.

            Imagem 4 – Gramáticas para entender o Estado brasileiro.

[1] Metáfora do livro Alice no país das maravilhas.

[2] Por isso a importância de tomar sol.

[3] O presidente Lula não foi a primeira pessoa a relativizar o conceito de democracia. De fato, a palavra ganhou “elasticidade” ao longo da história. Entretanto, o que o repórter alegou foi a dupla democracia & Estado de Direito. Disponível em: https://www.poder360.com.br/governo/conceito-de-democracia-e-relativo-diz-lula-sobre-venezuela/

[4] Possuir eleições não é a mesma coisa de dizer que sejam eleições válidas, eleições limpas. Se um país não possui Estado de Direito, por que acreditar em que as eleições que lá existam não sejam fraudadas? Todos esses países já relativizam as liberdades individuais, qual seria a surpresa se também relativizassem o conceito de “fraudar eleições”?

[5] Exemplos de direitos civis:  liberdade individual, direito ao livre pensamento, fé ou culto, liberdade de expressão, liberdade de ir e vir, o direito à propriedade privada, o direito de contrair contratos válidos e o direito à justiça e ao devido processo legal.

[6] É um questionamento antigo, mas sempre em voga: quem vigiará os vigias? Quem guardará os guardiões? Se dou o poder ao Estado de dizer o que pode ou não ser dito, sem dúvida nós, como sociedade, estamos dando mais graus de liberdade ao Leviatã. Uma vez que este possui o poder, ele, também auto interessado, poderá usar isso a seu favor. Dessa forma, correremos mais risco de cairmos no Leviatã Despótico. No extremo, George Orwell nos apresenta em seu clássico o poder desse Leviatã quando este diz: “Guerra é paz, liberdade é escravidão e ignorância é força.” (ORWELL, 2021, p. 21)

[7] Nesse caso, os stakeholders podem ser diversos: cidadãos comuns (possíveis eleitores), empresas que fazem lobby, autarquias, instituições diversas nacionais e supranacionais.

De acordo com Edson Nunes (2003), a política brasileira se enquadrará em gramáticas chaves como: clientelismo e insulamento burocrático.[1] O clientelismo é caracterizado por uma visão mais personalista, com lideranças políticas se utilizando de seu poder para benefícios privados, trocas de favores e apoio político.[2] Por sua vez, o insulamento burocrático (e o universalismo de procedimento) é marcado pela impessoalidade. Logo, parte do poder estatal terá uma maior autonomia, menores interferências políticas, por consequência, maior presença de técnicos no processo de tomada de decisão da política pública.  Façamos um breve contexto histórico brasileiro para entendermos por que a gramática que prevalece[3] nos últimos 130 anos é o clientelismo.

Golpe da república brasileira, 1889. O rei é retirado de suas funções e exilado à força. Não há votação no parlamento para tal, não há votação para mudança de constituição e muito menos pressão popular. Não passava de uma briga elitista pelo aumento de poder de uma certa oligarquia. O Brasil passou agora a ser os Estados Unidos do Brasil. Nossa monarquia constitucionalista passou a ser uma república federativa. Agora, algumas reflexões sobre a faixa dos termos e o esvaziamento das ideias. Será que, de fato, chegamos a ser uma real federação? Entendemos os termos e assumimos que estes geravam valor para a população brasileira? Ou será que exportamos os termos “da moda”[4]?

A República Velha tem como marca maior a gramática clientelista, a mais antiga de todas elas. Ao se instalar e criar raízes, não largou seu protagonismo até os dias de hoje. Na década de 30, era Vargas.

“O regime de 1934 foi substituído por uma ditadura, em 1937, mas os dispositivos corporativistas estão em vigor até hoje: não criaram a solidariedade desejada, mas funcionaram como poderoso instrumento de controle e atrelamento do trabalho ao Estado.”  (NUNES, 2017, p.34).

Posteriormente, no Estado Novo, houve uma tentativa de reforma do serviço público e de baseá-lo no universalismo de procedimento. O mesmo aconteceu na ditadura militar de 1964.  Nesse limbo entre duas ditaduras, o Brasil tem como base as gramáticas mais personalistas. “O regime democrático de 1946 emergiu quando uma das novas gramáticas, o corporativismo, já se encontrava em pleno funcionamento ao lado da antiga, o clientelismo.” Chegamos à década de 90 com o mesmo sentimento das décadas passadas, um clientelismo e um corporativismo arraigados na forma de se relacionar do Estado brasileiro, e com pouca ou quase nenhuma participação popular nas decisões mais cruciais para o rumo da nação. Apesar de termos uma democracia, pelo menos de jure, em todo o século XX, a nossa democracia muito mais se assemelhava, de facto, com uma oligarquia.

Em toda a história do século XX no Brasil, uma pequena elite de políticos, burocratas, juristas, burgueses mercantilistas[5], tomou todas as grandes decisões nos rumos da nação. Exemplos de decisões tomadas sem aporte popular: 1- Seremos uma monarquia ou uma república? 2- Queremos Estado mais centralizado (modelo atual) ou mais municipalista (Brasil império)? 3- Queremos a ditadura do Estado Novo? Se sim, por quanto tempo? 4- Vamos mudar a nossa capital de lugar e chamar esse novo lugar de Brasília? O quanto isto irá custar para a população? 5- Regime militar será só durante a elevada instabilidade política? Então por que durou 20 anos? 6- Quem aceitou financiar o “progresso nacional” futuro para convivermos hoje com a inflação (medida clássica cepalina)? 7- Lockdown com pouco alicerce científico na pandemia de COVID-19. Todos esses exemplos têm alguns denominadores em comum.  Primeiro, raramente os tomadores de decisão equivocados pagam pelos erros cometidos. Segundo, e mais importante ponto, uma vez que o poder deixa de estar com a população e vai se concentrando na casta política/burocratas, dificilmente esse poder retornará para a população. Isto é, o Estado moderno brasileiro ao longo da sua história concentrou poder. Vale ressaltar que estes são somente alguns exemplos, muitos outros ainda poderiam ser ressaltados.[6]

Concluo constatando que, durante o século XX brasileiro, por mais eleições que tenham existido nesse período, não foi presenciada uma democracia de facto[7] neste território tropical.  A verdade é que o brasileiro não teve um Leviatã devidamente Agrilhoado em nenhum momento. O que há é uma falha estrutural no sistema democrático que torna o brasileiro vulnerável ao “ditador benevolente” da vez.[8] É por isso que, em nossa história, vivemos de forma pendular entre oligarquias e ditadores. A crise da democracia moderna brasileira (CDMB) tem raízes profundas em nossa história, e sua causa não é a polarização. A polarização é, sem dúvida, um agravante e consequência da crise que já vivíamos. Temos um problema estrutural sobre como o Estado se relaciona com o seu povo e o povo com o Estado.

Há esperança? E o império contra-ataca.

No dia 23 de outubro de 2005, ocorreu um fato histórico brasileiro de grande relevância, pelo menos como indicador de que existe um descompasso entre a população e o Leviatã[9] brasileiro. O plebiscito de 2005 perguntava à população brasileira se o governo deveria proibir o comércio de armas de fogo no Brasil. Para a surpresa de muitos na época, inclusive a minha, a maioria dos eleitores votaram contra a proibição, isto é, aproximadamente 63,94% da população brasileira se posicionou favorável ao comércio de armas de fogo. Entretanto, o governo decidiu, quase como uma inspiração iluminista, não respeitar em plenitude da vontade popular para implementar medidas de regulamentação, restrição à posse e porte de armas no país.[10]

Em 2005, começa o primeiro despertar com relação à interação entre o povo brasileiro e a elite política. Esse plebiscito apareceu como uma “luz amarela no semáforo”. A vontade popular é importante, mas somente quando for de acordo com a minha vontade. Para o impeachment do Collor, no momento certo, a vontade popular veio para abrilhantar esse momento democrático. Mas, para uso de armas ou qualquer outro ponto com que a nossa oligarquia não concorde, a vontade popular pode ser relativizada. Parte pequena da população começa a se revoltar com o teatro que parece ser a democracia inclusiva brasileira. Isto é, essa elite fala da importância da democracia, da vontade popular, das instituições, mas a dinâmica de poder continua concentrada nas mãos de poucos.

Veja bem, nada de discursos conspiracionistas aqui, entretanto, é comum entre as máfias[11] o líder não ser visto, não demonstrar poder, nem mesmo ser lembrado em público. Isso é de extrema importância, pois quem comanda o jogo não será alvo de críticas. Tudo que o Leviatã mais quer é que a população pense que está vivendo sob o julgo de um Leviatã Agrilhoado (cheio de check in balance, diversas instituições) quando, na verdade, está vivendo com um Leviatã Despótico.[12] Como nos lembra o dilema dos prisioneiros, é mais importante parecer correto do que ser.

Nos últimos 10 anos, não só no Brasil como no mundo, o teatro (“Leviatã Agrilhoado”) fica cada vez mais difícil de ser sustentado com o advento das redes sociais. Isso não quer dizer que todos os frutos das redes sociais sejam bons… claro que não! Entretanto, é fácil constatar que as redes sociais são uma arma da população brasileira contra o Leviatã. É claro que existirão fake news, assim como sempre houve, mas o fato é que, outrora, havia poucos canais de comunicação em massa, poucas formas de a informação chegar na ponta. Com a internet de massa e a rede social, a informação passa a ser descentralizada e distribuída. Em consequência, atualmente é muito mais difícil montar uma narrativa falsa e esta ser comprada por quase a totalidade da população. Logo, seria só uma questão de tempo para esse fenômeno respingar na política.

Concluo dizendo que o mal-estar brasileiro muito se deve por melhor enxergar o Leviatã Despótico que o governa[13]. A população parece, por diversos meios (muitas vezes totalmente equivocados[14]), tentar acorrentar o Leviatã brasileiro: no entanto, essa queda de braço dificilmente será vencida pelo povo. Estamos há, pelo menos, 130 anos vivendo sob a tutela desse tipo de Leviatã; agrilhoá-lo não será nada fácil. Ele possui várias armas, se adaptou, se refez e sobreviveu ao teste do tempo. Confesso que tenho esperança, mas sei que o mal-estar e as náuseas vieram para ficar. Cabe a nós buscarmos inspiração em pessoas maiores que passaram por aqui, como diz Euclides da Cunha: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte.” Que a força do nosso bom humor em tempos difíceis seja consolo e acalento para o nosso povo sofredor.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS

ACEMOGLU, D; ROBINSON, J. Porque as nações fracassam: as origens do poder, da prosperidade e da pobreza. 1 ed. Elsevier, 2012.

ACEMOGLU, D; ROBINSON, J. O corredor estreito: estados, sociedades e o destino da liberdade. 1 ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2022.

DAHL, R, A. Sobre a democracia. Brasília: Editora Universidade de Brasília. Tradução: Beatriz Sidou. 2001.

DAHL, R, A. Poliarquia: Participação e Oposição. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. Tradução: Celso Mauro Paciornik. ed. 1. 2005.

ELSTER, J.  Peças e engrenagens das ciências sociais. Rio de Janeiro: Relume- Dumará, Tradução: Antônio Trânsito, 1994.

GIAMBIAGI, F. Capitalismo: modo de usar: porque o Brasil precisa apreender a lidar com a melhor forma de organização econômica que o ser humano já inventou. Rio de Janeiro: Elsevier, 1 ed. 2015.

GIAMBIAGI, F; et. al. Economia brasileira contemporânea (1945- 2015). 3ª ed. Rio de Janeiro: GEN/ Grupo Editorial Nacional. 2021.

HOLANDA, S. Buarque de. Raízes do Brasil. 27ª edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

LAZZARINI, S. Capitalismo de laços: os donos do Brasil e suas conexões. São Paulo: BEI Comunicações. 2 ed. 2018.

NUNES, E. A gramática política do Brasil – clientelismo e insulamento burocrático. 5ª edição. Rio de Janeiro: Garamond, 2017.

OSTROWIECKI, A. O moedor de pobres: nada atrapalha sua vida tanto quanto o sistema. São Paulo: LVM Editora, 2021

ORWELL, G. 1984. São Paulo: Editora Pandorga. Tradução: Juliana Garcia. 2021

[1] As gramáticas Universalismo de procedimento e corporativismo apresentam várias semelhanças, respectivamente, com o insulamento burocrático e os clientelismos.

[2] Essa gramática é bem resumida na frase: “Aos amigos tudo. Aos inimigos, a lei.”

[3] Prevalecer não implica exclusividade. Edson Nunes deixa claro em sua obra que o Brasil é uma mistura das gramáticas, mas com um “gene dominante” de clientelismo. No Brasil, “o corporativismo, o insulamento burocrático e o universalismo de procedimentos são incorporados ao clientelismo já existente” (Nunes, 2017, p.34)

[4] Vale a pena consultar a primeira bandeira da república do Brasil para entendermos melhor os questionamentos feitos. Além de ver se aprofundar na autonomia dos estados americanos em comparação com a autonomia dos estados brasileiros para com a União.

[5] O protecionismo estatal é datado e está em nosso DNA desde a época do império. Para se aprofundar no mercantilismo brasileiro, recomendamos dois livros: Capitalismo de Laços, Sérgio Lazzarini; e o livro Capitalismo: modo de usar, Fabio Giambiagi.

[6] Literatura complementar para o aprofundamento no assunto: Economia Brasileira contemporânea, Fabio Giambiagi; e o livro O moedor de pobres: nada atrapalha tanto a sua vida quando o sistema, Alexandre Ostrowiecki.

[7] Estamos longe de, como país, viver uma poliarquia.

[8] No breve período republicano, tivemos: 2 ditaduras, república velha marcada por uma forte oligarquia e militarismo, Collor confiscando poupança, Sarney fiscalizando supermercados para controlar uma hiperinflação, vivemos mais de uma década com Hiperinflação e diversos “flertes” com ditaduras fascistas e comunistas.

[9] Leviatã aqui é uma figura de linguagem para representar os políticos, burocratas e elites políticas que detém o poder.

[10] Após o plebiscito o governo encaminhou ao congresso nacional um projeto de lei com alteração do estatuto do desarmamento, visando a ter mais controle, mais legislação, mais burocracia e mais dificuldade para o uso de armas no país. O projeto de lei resulta na lei 11.706/2008 que estabeleceu novas regras, maiores exigências (agora periódica) do registro de armas, maior rigor na concessão e no porte.

[11] Recomendamos a trilogia Godfather. Acontece esse movimento de poder diversas vezes.

[12] A trilogia Matrix também sinaliza para essa realidade, com uma distopia no mundo das máquinas, na qual estas criavam um mundo imaginário, um teatro para os homens viverem enquanto estas escravizam a humanidade.

[13] É claro que existem gradações de Leviatãs despóticos: China, Coreia do Norte são piores que a Venezuela; esta, por sua vez, é pior do que o Brasil.

[14] 8 de janeiro de 2023.

*Marcos Chaves Gurgel é engenheiro agrônomo formado pela Universidade Federal do Ceará, economista e administrador formado pelo Insper. Atualmente é mestrando em Políticas Públicas pelo Insper e trainee do IFL-SP.

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