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Pena de morte: solução para o Brasil ou abertura para o ódio recreativo?

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O debate acerca da legalização da pena de morte está rodeado por inúmeras paixões, fervores, interesses e conflitos. Os problemas vivenciados pelos brasileiros nos últimos tempos levam a uma sensação de impunidade que aparenta só ser passível de solução com uma intervenção bruta e radical na criminalidade.

O cenário é o Brasil, um país marcado por diversos problemas sociais, estruturais, políticos e econômicos, que tenta superar uma crise institucional existente há quase uma década e enfrenta um embate entre forças políticas que transparecem buscar um plano de poder em detrimento de uma evolução social e de melhorias aos indivíduos.

Vemos pessoas clamando e defendendo bandeiras que não compreendem, ou pensam compreender, em um esforço triste e prejudicial a todos, não apenas aos que podem ser vítimas dessas ideias, mas também aos que propriamente as expressam.

Uma dessas ideias defendidas repetidamente é a de que é necessária uma pena de morte para a solução da criminalidade e que “bandido bom, é bandido morto”.

Uma pesquisa realizada pelo Datafolha no ano 2017 revelou que 57% dos brasileiros são a favor da pena de morte, número este que cresceu 10 pontos percentuais desde 2007, última pesquisa feita sobre o assunto. O aumento da criminalidade, a fraqueza das instituições, a instabilidade econômica permitiram que o desespero do povo criasse margem para a aceitação de políticas radicais e, possivelmente, medidas autoritárias.

Primeiro, para entendermos essa aprovação e seu pragmatismo, é necessário entendermos o objetivo da pena. Cesare Beccaria, filósofo iluminista, já defendia em sua obra Dos delitos e das penas que a sanção penal possuía mais significado do que simplesmente punir quem tenha cometido algum delito.

Beccaria foi um dos primeiros a classificar a pena com uma dupla finalidade: proteger as pessoas contra agressões injustas e evitar novos crimes. Se a pena não obedece às duas funções, ele não serve para nada e pode, inclusive, permitir injustiças.

O autor versa sobre a pena de morte e a julga maléfica à sociedade, elencando para isso quatro argumentos base:

1 – Uma pena mais longa e bem executada é mais amedrontadora para o delinquente que uma rápida pena de morte, que durará poucos instantes.

Imaginar que a morte é igualmente amedrontadora a todos é se iludir. A morte, na maioria das vezes, faz com que pessoas religiosas, que possuem um temor ao pós-vida, e aqueles apegados a seus bens e familiares tenham um receio de praticarem atos que possam torná-la próxima, mas não tem força o suficiente para segurar aquele que nada possui (seja fé, seja bens a que se apegar), ou que não a teme por analisar o custo-benefício da ação criminosa e chegar à conclusão de que naquele momento ele não será pego. O ser humano age de acordo com experiências e desejos e, por essa razão, é mais provável que este tenha muito mais medo de passar o resto de sua vida na prisão do que de perdê-la neste exato momento. Esse tempo poderia ser crucial, inclusive, para fazê-lo repensar sobre seus atos, apesar de que sabemos que não é exatamente assim que as cadeias funcionam, e essa reflexão pode não ocorrer em um cenário de facções dominando os presídios.

2 – Nossa justiça é imperfeita e, caso a pena de morte seja aplicada a um inocente, não terá essa medida uma possibilidade de retorno.

Aqui é importante nos lembrarmos de uma característica inerente ao sistema de justiça, que é sua falibilidade. Esse sistema é falho por diversos motivos, seja a dificuldade de realizar certas investigações, seja a corrupção presente em alguns locais, sejam os preconceitos sociais e até mesmo o erro humano. Para isso trarei dois exemplos: George Stinney e Manuel da Mota Coqueiro.

George Julius Stinney Jr foi um jovem de 14 anos que vivia em Alcolu, no condado de Clarendon, Carolina do Sul, com seu pai, George Stinney Sr, sua mãe, Aime, e seus quatro irmãos. Seu pai trabalhava em uma serraria e sua família morava em uma casa fornecida por seu patrão. Em 23 de março de 1944, duas meninas, Betty June Binnicker e Maria Emma Thames, 11 e 8 anos, respectivamente, estavam nos arredores da casa de George procurando flores-da-paixão, uma espécie de trepadeira da família do Maracujá.

Pouco tempo depois, o desaparecimento das duas preocupou seus pais, quando foi iniciada uma busca às crianças. Na manhã seguinte, as duas meninas foram encontradas mortas em uma vala, sujas de lama e com ferimentos graves na cabeça. Por ser a última pessoa a ter tido contato com as vitimas, George Jr foi levado por policiais para interrogatório e mantido preso em uma sala fechada por aproximadamente uma hora, apenas com a presença dos policiais.

Após o período, George confessou o crime, alegando que havia tentado abusar sexualmente de Betty e, sem sucesso, furioso, o jovem assassinou ambas com uma barra de ferro, causando fraturas no crânio das vítimas, chegando até mesmo a parti-los em quatro partes.

A grande questão é que a barra usada no crime pesava mais de 9,7 kg, sendo praticamente impossível que George a levantasse, avaliando que possuía apenas 40 quilos. O julgamento ocorrido em 24 de abril começou às 12:30 e se encerrou às 17:30, com o júri, composto inteiramente por homens brancos, tomando uma decisão em incríveis 10 minutos. O advogado público de George, Charles Plowden,  não contra-argumentou, não convocou testemunhas e tampouco recorreu da sentença. Assim, George Stinney foi condenado à morte na cadeira elétrica com apenas 14 anos.

Em 16 de junho de 1944, às 19:30, o menino foi executado e, no caminho para o equipamento, carregou uma Bíblia debaixo de seu braço. Em decorrência de a cadeira elétrica não ter sido feita para seu tamanho, após ser atingido pela primeira onda de eletricidade, a máscara que cobria seu rosto escorregou, revelando queimaduras de terceiro grau. Foram necessárias 3 descargas até ser declarado morto.

Em 17 de dezembro de 2014, 70 anos depois de sua execução, a sentença que o condenou foi anulada por pedidos dos familiares de George, que alegaram que não houve um julgamento justo neste processo.

O segundo caso ocorreu em terras tupiniquins e remonta ao período imperial. Mota Coqueiro, conhecido como “A fera de Macabu”, foi um rico fazendeiro fluminense acusado de assassinar toda uma família de colonos residente em suas terras. É um dos casos mais famosos do direito penal brasileiro, repleto de controvérsias e traições, e inclusive de descaso do Imperador D. Pedro II.

Após todo o processo, mesmo não tendo uma prova cabal contra o réu, Mota Coqueiro foi condenado ao enforcamento. Sua única saída nesse momento era a graça imperial. Curiosamente, D. Pedro II era contra a pena de morte, no entanto não livrou Mota Coqueiro da pena capital. A razão para tal foi, supostamente, a interferência de Julião Batista Coqueiro, primo do réu e provavelmente seu inimigo número um, a quem possuía fortes laços com a política local, e contatos, inclusive, próximos do Imperador.

Casos como esses não são incomuns e acontecem constantemente em países onde aplica-se a pena de morte. Apesar de a justiça cometer erros, é mais fácil revertê-los em condenações nas quais o condenado continua vivo, por motivos óbvios. Do contrário, as condenações criminais poderiam gerar mais injustiças do que benefícios, indo de encontro a seu objetivo maior, que é trazer equilíbrio à ordem social e preservar os direitos individuais.

3 – A pena de morte existiu em toda a história da humanidade e ainda existe em determinados países. Nunca, contudo, foi eficaz para uma redução considerável dos crimes.

O Centro de Informação sobre a Pena de Morte (DCPI) dos EUA realizou um estudo com duração de 31 anos sobre assassinatos, tanto de civis como de policiais, pois queriam avaliar se a pena de morte deixa a população e a polícia mais seguras. Foi descoberto que a taxa de homicídios era mais alta, em média, nos estados que adotavam a pena de morte. Foi descoberto que policiais foram mortos em taxas maiores em estados que tinham pena de morte em oposição aos que não tinham e, além disso, foram analisados os estados que haviam recentemente abolido a pena e, dentre eles, os que reduziram a menos tempo tinham as maiores taxas de morte. Mesmo com a longevidade e contundência desse estudo, não é possível afirmar que a pena de morte é causa direta para o aumento da violência, contudo, é possível defender que ela nada contribui para a diminuição da violência e criminalidade.

Cabe notar que a maioria dos aplicadores dessa pena são países onde há um Estado autoritário, com poder para aviltar os indivíduos e nada sofrer em contrapartida. Nesse sentido, a pena de morte é uma ferramenta de controle social, utilizada contra indivíduos e grupos opositores do governo. Na Arábia Saudita, a pena de morte é desproporcionalmente usada contra opositores do regime; no Irã, contra muçulmanos sunitas; no Iraque, contra grupos políticos e religiosos desfavorecidos; nos EUA, os sentenciados são em maioria pessoas sem condições financeiras de arcar com uma boa defesa, em geral os mais pobres. Ainda nos EUA, 85% das execuções acontecem no Sul do país, local que possui amplo histórico de escravidão e segregacionismo.

Defender a pena de morte, nesses casos, pode ser um convite ao autoritarismo e a desrespeito ao indivíduo.

4 – As pessoas tendem a sentir prazer com o sofrimento alheio na pena de morte.

Desde o sofrimento dos escravos no coliseu romano, passando pela inquisição católica, pela morte de Tiradentes e o massacre pela guilhotina na Revolução Francesa, as pessoas alimentam o desejo por ver seus adversários sofrendo e pagando por seus “crimes”, muitas vezes da pior e mais desproporcional forma possível. Esta é, talvez, a pior consequência da pena de morte, é a abertura para que algo muito pior possa surgir.

Desenterrando a compreensão de sociedade primitiva de Durkheim, nós temos um conjunto de pessoas que se compreendem como partes de uma ideia maior – eles são guiados por uma espécie de mito, ídolo ou símbolo em comum, e uma ofensa a este símbolo acaba sendo uma ofensa aos próprios indivíduos. Não é preciso cogitar uma sociedade antiga para verificar essa interação, visto que ela é observada até hoje em torcidas organizadas de futebol, grupos e seitas religiosas, além de partidos e movimentos políticos.

O principal mal dessa relação é o fomento ao coletivismo e sua consequente brecha para o autoritarismo. Como já dito, vivemos em um país muito desigual, com muitos problemas estruturais e institucionais, e a nossa grave crise na segurança, na economia e na política cria todos os subsídios para o surgimento de uma noção de “nós contra eles”.

A população discute e até briga com desconhecidos, defende com unhas e dentes políticos que não se importam verdadeiramente com ela, clamam com todas as suas forças o fim daqueles com quem não concordam ou que supostamente oferecem um risco à sua segurança, mesmo sem uma base racional para tal. Certos grupos lucram em cima disso, programas de TV disseminam cada vez mais violência, exprimem opiniões que elevam o clamor público por justiça e a punição mais severa de criminosos, que, caso não venham nos tribunais, virão no linchamento público.

Mais do que gerar uma polarização entre grupos opostos no cenário político, a banalização da violência permite que um governante ganhe popularidade prometendo seguir os anseios dessa população, o que no fim gera uma glamourização do ódio e uma guinada para permissões ditatoriais contra o “inimigo”. Isso gera um precedente, eventualmente, para que esse mesmo inimigo, na próxima vez, persiga pessoas e seja aquele considerado do “lado correto”.

A glamourização do sofrimento alheio (ou a banalização do ódio) pode levar nossa sociedade a um patamar cada vez mais violento, criando uma barreira nas relações entre os indivíduos e diminuindo a proteção deles contra a criminalidade. Assim, isso alimentaria muito mais uma cultura de conflitos do que preveniria crimes, dificultando a que as pessoas, inclusive, desenvolvessem um bom diálogo para a solução das contendas.

É possível um debate sobre a utilidade da pena de morte em casos extremos, como, por exemplo, crimes contra a humanidade. Ademais, a nossa Constituição prevê no inciso XLVII do seu artigo 5º: “não haverá pena de morte, salvo em caso de guerra declarada”. Os crimes que podem levar a essa punição estão escritos no Código Penal Militar, tendo a pena prevista de execução por fuzilamento. Estas condutas são: traição, fugir na presença do inimigo, rebelar-se ou incitar a desobediência contra a hierarquia militar, desertar ou abandonar o posto na frente do inimigo, praticar genocídio, etc.

Contudo, devemos nos ater ao principio de que todos possuem direito à vida. De acordo com o Art. 5º: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.

Claro, princípios podem ser relativizados no caso concreto, mas é preciso haver uma adequação correta deste princípio. Matar em legítima defesa, com uma reação proporcional a uma ofensa injusta, é uma coisa; executar após o indivíduo não estar oferecendo riscos a outrem é algo diverso.

Como dito por Albert Camus, a execução da pena de morte é um assassinato premeditado, na medida em que o Estado é quem programa o assassinato, marca dia e hora, contrata o assassino e usa de toda sua força para transportar a pessoa que vai ser assassinada para o local em que a morte ocorrerá – e tudo com grande publicidade.

Importante lembrar que a função da justiça é a pacificação social e a indenização dos danos causados. Matar uma pessoa não traz de volta o bem por este sujeito prejudicado, muito menos uma vida por ele tirada. Nesse caso, a pena de morte funciona muito mais como um instrumento de vingança, de autotutela, do que necessariamente de busca por justiça.

Por fim, mais que pragmatismo, deve ser analisado o lado moral e ético das condutas. Como muito bem formulado por Dostoievski, em O idiota:

“Foi dito: ‘Não matarás.’ E, então, se alguém matou, por que se tem de matá-lo também? Matar quem matou é um castigo incomparavelmente maior do que o próprio crime. O assassinato legal é incomparavelmente mais horrendo do que o assassinato criminoso.”

Um erro moral não justifica o outro e o papel dos indivíduos e do Estado não é aplicar a força para objetivar vinganças, e sim uma criação de bases para fornecer segurança e preservar direitos, punindo com os meios necessários aqueles que descumprirem regras da sociedade, sem, contudo, afetar os direitos mais basilares destes, que estariam relacionados não à interação deste com os demais (como seriam o direito de liberdade e propriedade), mas sim com o caráter de existência desse próprio ser, em síntese, seu direito à vida.

*Marcelo Melo é graduando em Direito pela Universidade Federal do Ceará e Coordenador do Grupo de Estudos Dragão do Mar.

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