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Os militares não estão imunes ao patrimonialismo brasileiro

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O patrimonialismo como traço marcante na sociedade e, consequentemente, nas instituições brasileiras, algo explorado com maestria por Raymundo Faoro em seu Os Donos do Poder, bem como por autores como Sérgio Buarque de Holanda, é, creio eu, a fonte maior da forma falha e frequentemente antiliberal com a qual a coisa pública é tratada no Brasil. Nos diálogos do cotidiano, a corrupção é com frequência apontada como o mal maior, sem o qual viveríamos em um país de primeiro mundo, ou ainda, conforme alguns mais ufanistas, no país mais rico e desenvolvido do mundo. Em que pese a possibilidade de elaborar melhor uma resposta a esta afirmação, o que caberia em um artigo à parte, vou me contentar aqui em dizer que, muito embora a corrupção seja, de fato, um cancro em nossas terras tupiniquins, ela é muito mais um sintoma do que a doença em si. Esta doença, como já antecipei, é o patrimonialismo, a confusão entre a coisa pública e a privada.

Para que fique claro o que quero dizer, patrimonialismo não é o mesmo que corrupção, sendo esta uma de suas possíveis consequências. A bem da verdade, acredito que as manifestações mais corriqueiras do patrimonialismo à brasileira não se dão com a corrupção em si, mas com atos e fatos totalmente dentro da lei e talvez por isso vistos como inofensivos ou até dignos de encorajamento. É que o vulgar “jeitinho brasileiro” não se restringe à esfera privada, e muitos sequer conseguem distinguir o início e o fim do que é privado e do que é público – isso pensando no trato de cidadãos com o setor público; mas também temos exemplos dentre os próprios membros desse setor, muitas vezes não havendo uma confusão direta, mas indireta entre o público e o privado, com o agente colocando seu interesse particular acima do público, desviando-se de seu papel institucional. Lembram-se do procurador que se queixou por ter dificuldades para viver com o salário de R$24 mil (líquido), que qualificou como “miserê”? Pouco lhe importava a discrepância entre seu vencimento e a renda média de quem paga a conta, bem como não lhe interessava o custo de um eventual reajuste, contanto que seu interesse particular fosse satisfeito.

Apesar do reconhecido enraizamento do patrimonialismo brasileiro, não falta quem se ocupe de apontar seus malefícios, seja diretamente na fonte ou nas suas consequências. Os movimentos de rua mais relevantes nos últimos anos, a partir de 2014, em que pesem suas diferenças, tinham como denominador comum a crítica aos privilégios e aos descalabros com o dinheiro público, descalabros estes não necessariamente fruto de corrupção. Os alvos mais comuns dessas críticas sempre foram, obviamente, os políticos; mas aqui também entram membros do judiciário e servidores públicos de forma quase geral, em especial os de alto escalão.

No entanto, outros tantos, e por outros devo dizer parcela significativa da população brasileira, tendiam a ver os membros das Forças Armadas como impermeáveis ao mal, como se essas nobres instituições de Estado habitassem uma fortaleza perpétua, uma ilha, alheias àquilo que, em maior ou menor escala, parece acometer a todas as demais instituições públicas brasileiras. Em face do descrédito da classe política, devido a diversos escândalos de corrupção, em face do sentimento de injustiça diante dos privilégios legalizados de alto escalão, e, por fim, desgostosos com sua própria apatia, muitos passaram a ver os fardados como bastiões da moralidade e, em casos mais extremos, a salvação única e possível da pátria. Eis aí o apelo moral daqueles seres exóticos que, já datando de alguns anos, têm ido esporadicamente às ruas pedir por uma intervenção militar ou coisa que o valha. A hierarquia e a “ordem”, de cunho positivista e estampada na bandeira da República que se fez pela ação dos quartéis soa como panaceia contra a aparente “desordem” na qual vivemos.

Não é este o fator preponderante para explicar a vitória de Bolsonaro, que se explica, antes de tudo, pelo antipetismo reinante em 2018, mas é, como sabemos, um denominador comum entre seus apoiadores mais enérgicos. Nesse sentido, não deixa de ser irônico que tenha sido o governo Bolsonaro aquele que, a meu ver, tenha dado contribuições incontáveis para implodir a ideia de que os militares são imunes ao patrimonialismo e que nunca são movidos pela popular “boquinha”, que motiva e motivou tantos outros personagens que fazem política, direta ou indiretamente — já que não existe isso de integrar governo e não fazer política: o mais mísero secretário na mais negligenciada das pastas faz política, por mais técnico que seja.

Corroboro minha afirmação com a listagem de alguns fatos (todos seria impossível) que julgo mais relevantes. O primeiro deles é a fonte de todos os outros, e fator que já critiquei em diversos outros artigos: a massiva presença de militares no governo Bolsonaro. Como disse no parágrafo acima, não existe isso de integrar governo e não fazer política, com o adendo de que o nosso Congresso tem permitido que inclusive membros da ativa o façam, uma aberração típica de republiquetas. De quem faz política, tendemos a ter uma visão negativa arraigada em nossa sociedade, o que é muitas vezes injusto (embora muito apropriado para quem quer vestir a farda e subir em palanque ao mesmo tempo); mas, no caso dos militares, há quem se convença de que todos os que aceitaram integrar o governo o fizeram munidos do mais fino patriotismo e enxergando a função de governo como uma “missão”, uma extensão de suas funções de Estado, não se preocupando eles com quaisquer tipos de privilégios do cargo. O desdobrar dos acontecimentos, contudo, desafia essa lógica.

Comecemos com a Reforma da Previdência. O governo Temer tem o mérito de ter colocado a reforma em pauta e talvez até tivesse conseguido aprová-la, não fosse a tentativa de implosão do governo armada pelo então PGR, Rodrigo Janot. Não havia escapatória: o tema teve que entrar nos debates em 2018 e sabíamos que quem vencesse deveria enfrentar a questão previdenciária. Pois bem, Bolsonaro venceu a disputa, seu governo apresentou a proposta e o Congresso aprovou. A Reforma, como sabemos, era tema controverso, mas era extremamente necessária, girando toda a propaganda governista em torno dessa necessidade. Ocorre que o que se aprovou valia para todos, menos para os militares. É que os militares não se aposentam, são “reformados”, alguém diria. Balela. Chame do que quiser, o efeito previdenciário e, portanto, fiscal, é o mesmo. O governo propôs, então, uma reforma exclusiva para os militares, o que até poderia ser compreensível, não fosse essa reforma ter vindo acompanhada de uma reestruturação de carreira que anulou quase toda a economia que se faria. Se a Reforma da Previdência representava, nas contas do governo, uma economia de R$855 bilhões em 10 anos (contando da data da aprovação), a dos militares economizará módicos R$10 bilhões no mesmo período.

No bojo dos privilégios duramente criticados nos últimos anos estão os tais “supersalários”, quando servidores públicos recebem vencimentos acima do teto, normalmente a título de indenizações e benefícios que, argumenta-se, não integram a remuneração em si. O teto hoje, vale lembrar, é o salário de ministros do STF, perfazendo R$39,2 mil. No entanto, uma portaria do Ministério da Economia, no ano passado, passou a permitir que servidores aposentados e militares da reserva que ocupam cargos de comissão recebam acima do teto. A referida portaria tem permitido o acúmulo de cifras vultosas por militares que comandam estatais no governo Bolsonaro. Conforme notícia amplamente divulgada em setembro do ano passado, de 16 militares em comandos de estatais (de um total de 46 com controle direto da União), 15 recebiam vencimentos acima do teto, valores brutos que variavam de R$43 mil a R$260 mil – isso com o agravante de que o país estava em meio à pandemia e com situação econômica nada privilegiada.

Falando em pandemia, de acordo com uma auditoria realizada pelo TCU (Tribunal de Contas da União), divulgada pela Folha de São Paulo, o Ministério da Defesa gastou, em 2020, recursos destinados ao combate à Covid-19 com a compra de itens de luxo como filé mignon e picanha. Do valor, que deveria ser gasto para fazer frente à crise sanitária, R$535 mil foram gastos com esse tipo de item. Em nota, a Defesa argumentou que as atividades das Forças Armadas foram mantidas durante a pandemia, justificando o gasto com alimentação. Ora, é evidente que os fardados precisam comer, mas é no mínimo forçar a barra justificar esses gastos com este argumento. Na mesma auditoria, o TCU identificou que, de todos os órgãos dos três poderes, a Defesa foi o que mais despendeu dinheiro com itens não essenciais: “Ressalte-se que, dos recursos destinados ao combate à pandemia Covid-19 utilizados indevidamente para aquisição de itens não essenciais (aproximadamente R$557 mil), 96% foram despendidos pelo Ministério da Defesa”. Também não se justifica, de forma alguma, o uso de créditos extraordinários (para enfrentamento à pandemia) para custear despesa ordinária da Defesa, como é a compra de alimentos para as tropas. Por certo, não devem figurar na dieta essencial aos militares e de responsabilidade do Estado iguarias como caviar, camarão, picanha e bebidas alcoólicas.

A supracitada auditoria do TCU não foi a primeira a indicar o uso indevido de recursos da pandemia pelos militares. Em relatório encaminhado à CPI da Covid no ano passado, a procuradora do MCP-SP (Ministério Público de Contas de São Paulo) Élida Graziane Pinto diz que, de um total de R$730 bilhões destinados pelo governo federal no combate ao Covid-19, R$72 bilhões deveriam ir para o SUS. No entanto, deste valor, R$140 milhões foram gastos pela Defesa com despesas não relacionadas à saúde. A Defesa figura como a pasta que mais recebeu recursos do SUS. No relatório, Élida também aponta que recursos do chamado Orçamento de Guerra, destinado aos gastos relacionados à pandemia, também foram usados pelo Ministério da Defesa para o custeio de despesas de rotina.

Outro relatório do TCU, também do ano passado, dá conta de que R$4,1 milhões que compunham valor destinado para o combate à pandemia, foram usados para outros fins, configurando desvio de finalidade. Para ilustrar, o Exército gastou cerca de R$1,1 milhão com manutenção de bens imóveis e instalações, a Marinha gastou R$960,1 mil na aquisição de itens como coletes, mochilas, porta-celular e bandeiras, enquanto a Aeronáutica gastou cerca de R$95 mil na reforma de um almoxarifado.

Alguém pode argumentar que alguns destes gastos são necessários para as operações e atividades das FA. Ora, aquilo que é despesa necessária tem a fonte de financiamento adequada, o que certamente não inclui recursos carimbados para o combate à pandemia. O que transparece aqui é o uso de tais créditos extraordinários para inflar recursos que não compunham o orçamento vigente e aprovado das tropas, uma possível artimanha de um governo sempre zeloso em agradar os fardados, haja vista o percentual expressivo de recursos destinados à Defesa por ocasião da pandemia.

Mais recentemente tivemos uma nova polêmica relacionada aos processos licitatórios das Forças Armadas. Divulgada inicialmente pelo deputado Elias Vaz (PSB-GO), a informação de que o Exército adquiriu itens como filé, picanha, bacalhau e cerveja e, em especial, 35 mil comprimidos de viagra, causou reações indignadas. Segundo o deputado “Foram 373,2 mil quilos de picanha e mais de 80 mil cervejas das marcas Heineken e Stella Artois só no ano passado”. No caso do Viagra, o Ministério da Defesa argumenta que o medicamento é usado para o tratamento de hipertensão pulmonar arterial (HPA). No entanto, além de esta ser uma doença rara e atingir principalmente mulheres, a dose recomendada neste caso é de 20 mg, diferentemente das doses 25 mg e 50 mg do processo licitatório.

A atuação de Bolsonaro presidente, no que concerne aos militares, é uma continuação do Bolsonaro deputado, que sempre atuou como um sindicalista informal (militares não podem se sindicalizar) dessa classe. Subjacente a isso, há a agenda de poder do presidente e sua tentativa de cooptação das tropas, da qual já tratei outras vezes. E é esse “sindicalismo” que acredito que bem representa o patrimonialismo brasileiro, pois não é um sindicalismo qualquer, mas o que, ainda que informal, busca fatias da receita pública. Isso nem sempre desagua em corrupção (embora isso também aconteça), mas com frequência resulta em coisas que, mesmo sob o guarda-chuva da lei, ou ao menos do que se tolera, não deixa de ser absurdo.

Característicos desse “sindicalismo patrimonialista” são os programas e benesses criadas para aqueles que, mesmo quando ganham muito aquém de fortunas (e alguns ganham sim fortunas, para padrões brasileiros), ganham ainda muito mais do que a média dos que pagam seus salários, aqui inclusos os dezenas de milhares de miseráveis que recentemente foram duplamente castigados: primeiro pela pandemia, depois pela inflação. Foi assim que, com claros fins eleitoreiros, o governo Bolsonaro criou o chamado Habite Seguro, que funciona como uma espécie de Minha Casa Minha Vida para profissionais de segurança pública. Em que pese a evidente importância desses profissionais, a criação de um programa de habitação com subsídios do governo para quem certamente não tem carências e vulnerabilidades que os justifiquem, se constitui em um disparate. E não é um disparate qualquer, é mais um exemplo dos recursos públicos sendo usados para satisfazer interesses, ou ao menos benesses privadas, numa ponta, movido por interesses escusos (eleitoreiros), em outra.

O que proponho com esse artigo não é, como nunca foi em meus artigos predecessores (o que, infelizmente, não será compreendido por muitos), um ataque aos militares, mas o reconhecimento do fato de que eles não estão, e nem poderiam estar, alheios à lógica do patrimonialismo brasileiro. Para demonstrar isso, ao menos o governo Bolsonaro serviu. Que dessa constatação, que é o nível de penetração do patrimonialismo em nossas instituições, tiremos a conclusão sã de que, assim não como não há personalidade salvadora da pátria, não há instituição que sozinha possa servir a esse papel. O que precisamos hoje é o que já precisávamos ontem: combater a confusão entre o público e privado, que, quando se transmuta em supremacia do último sobre o primeiro, é quase sempre para satisfazer interesses individuais (mas não individualistas, numa acepção liberal do termo). Fazer o diagnóstico é o primeiro passo. E o segundo? Penso que doses cavalares de liberalismo.

Fonte: https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2019/09/09/procurador-de-bh-reclama-de-salario-de-r-24-mil-misere.ghtml

https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/05/15/reforma-da-previdencia-militar-gerara-economia-de-r-10-bi-em-uma-decada

https://g1.globo.com/economia/noticia/2019/12/09/reforma-da-previdencia-governo-revisa-previsao-de-economia-de-r-800-bi-para-r-855-bi-em-dez-anos.ghtml

https://www.correiobraziliense.com.br/economia/2021/07/4938260-portaria-permite-que-alto-escalao-do-governo-receba-mais-que-o-teto.html

https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2021/09/06/interna_politica,1302920/militares-acumulam-altos-salarios-para-comandar-estatais.shtml

https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/12/defesa-gasta-verba-da-covid-para-comprar-file-mignon-e-picanha-diz-tcu.shtml

https://www.poder360.com.br/coronavirus/verba-para-combate-a-pandemia-e-usada-com-militares-diz-relatorio/

https://www.poder360.com.br/brasil/militares-usaram-r-4-mi-para-combate-a-covid-de-forma-indevida-diz-tcu/

https://veja.abril.com.br/economia/viagra-picanha-e-cerveja-o-extrato-de-compras-das-forcas-armadas/

https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2022/04/12/doenca-usada-como-justificativa-para-compra-de-35-mil-comprimidos-de-viagra-para-as-forcas-armadas-e-rara-e-atinge-mais-mulheres-do-que-homens.ghtml

https://www.poder360.com.br/governo/governo-cria-programa-de-r-100-mi-para-policial-comprar-casa-propria/

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Gabriel Wilhelms

Gabriel Wilhelms

Graduado em Música e Economia, atua como articulista político nas horas vagas. Atuou como colunista do Jornal em Foco de 2017 a meados de 2019. Colunista do Instituto Liberal desde agosto de 2019.

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