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A desmoralização das Forças Armadas não é hipótese, é fato consumado

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Com frequência se faz, com fundamento, um paralelo entre a eleição de Bolsonaro e a de Jânio Quadros. No entanto, penso que também é possível fazer um paralelo entre o governo de Bolsonaro e o daquele que sucedeu a Jânio. Sim, falo de João Goulart. Como todos devem saber, as guinadas ao radicalismo de esquerda em um contexto de Guerra Fria explicam em grande parte a queda de Goulart, mas um fator veio a coroar a sua derrocada: o endosso à quebra da hierarquia militar. Em setembro de 1963, Jango já havia demonstrado certa neutralidade diante da Revolta dos Sargentos, movimento de militares de baixa hierarquia revoltados com decisão do STF de tornar ilegítima a eleição de sargentos ao legislativo. A desconfiança suscitada pela neutralidade do presidente chegou ao clímax quando, em março de 1964, Jango anistiou militares amotinados na chamada Revolta dos Marinheiros, pouco após estes terem sido presos pelo motim. Dois dias depois, em 30 de março, Jango proferiria, no Automóvel Clube, em um evento organizado pela Associação dos Sargentos e Suboficiais da Polícia Militar, seu último discurso como presidente da República. Foi a gota d’água. Acreditava-se que Jango endossava a quebra de hierarquia buscando uma base para seu governo entre as baixas patentes. Cortejava para cooptar.

O resultado, todos nós sabemos: o país amargou 21 anos de ditadura militar. “Heróis”, foi o adjetivo usado no plano de governo de Bolsonaro para qualificar os artífices do golpe. Enquanto deputado, nunca é demais lembrar, ele manteve a foto de cada um dos cinco presidentes do período enfeitando a parede de seu gabinete. Em sua vida parlamentar, apoiou o regime, o oficial e aquele dos porões. Pela lógica, era de se esperar que, ainda que equivocado, ao menos vilificasse a quebra de hierarquia e pregasse a punição para os que desrespeitassem o Regulamento Disciplinar do Exército. Porém, trata-se de Jair Bolsonaro, que, enquanto oficial de média patente, atuava como agitador no Exército, sendo posteriormente acusado, em reportagens de grande veiculação em 1987, de planejar atentados à bomba, a despeito da absolvição pelo STM. Abandonando a caserna e entrando para a política, iniciou sua célebre carreira de sindicalista de militares e polemista banal até, por razões já exaustivamente elencadas, ser alçado à presidência da República.

Na presidência, manteve o cortejo, levando para seu governo vários militares, da reserva e – fato que critiquei em várias ocasiões – da ativa. Um desses militares foi Eduardo Pazuello, general de três estrelas e o ministro da Saúde na maior parte da pandemia da Covid. É que seus dois antecessores não quiseram se resignar ao papel de “paus-mandados”, tarefa aceita de bom grado pelo general, no melhor estilo “um manda, outro obedece”. Já fora do governo e às voltas com a CPI da Pandemia, marca presença em ato político de apoio ao presidente. Trata-se de clara violação do Regulamento Disciplinar do Exército, que veda manifestações políticas de militares da ativa, fato reconhecido até pelo vice-presidente, Hamilton Mourão. Não resta dúvida sobre a transgressão, não resta dúvida sobre a necessidade de punição.

Assim como Goulart, Bolsonaro corteja para cooptar. Tal fato fica claro como água nas diversas vezes em que o presidente se referiu ao Exército como “Meu Exército”, como se uma instituição de Estado dessa envergadura fosse sua milícia pessoal. Como se ele fosse não o mandatário, mas o próprio país. Como se sua estadia fosse permanente e não temporária. Para seus apoiadores intransigentes, é infrutífero fazer paralelos. É possível argumentar: e se o presidente fosse outro? Imagine, por exemplo, alguém como Lula tratando o Exército como uma milícia pessoal. Imagine um general da ativa em uma manifestação em apoio a Lula. Não diriam, sem exceção, e com razão, todos aqueles que hoje apoiam incondicionalmente Bolsonaro, que se trata de um acinte, de um atentado à democracia? Não diriam que assim o país se aproxima cada vez mais da Venezuela? É claro que diriam, mas não é que sejam incapazes de enxergar o paralelo, é que o que lhes governa não são princípios, são preferências. O populismo que sequestra as instituições só é um problema se for de esquerda, mas, sendo de direita, é desejável. São reacionários enfeitiçados pelo personalismo, tão forte no Brasil, como identificou Sérgio Buarque de Holanda, e entusiastas do poder pessoal, desde que do lado “que pode”.

Apesar das implicações, claras a qualquer um com bom senso, recebemos atônitos a notícia de que Pazuello não sofrerá punição alguma. Nem uma mera advertência para aquele cuja transgressão é reconhecida por todos. Neste ponto, é preciso chamar as coisas pelo nome. Em dois anos e meio de governo, abuso após abuso, acinte após acinte, não há mais como se limitar a notas lacônicas falando de ameaças potenciais e preocupantes. A desmoralização das Forças não é hipótese, é fato consumado. O comandante do Exército, Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, revelou falta de hombridade e de patriotismo. Desonrou a farda e a bandeira. Era de se esperar que, tendo sido alçado ao cargo no episódio da demissão coletiva do ministro da Defesa e dos três comandantes, oferecesse resistência ao uso político da instituição que comanda. Ledo engano. Ter figurado ao lado de Bolsonaro na inauguração de uma ponte, em momento em que o país aguardava a sua decisão sobre a punição – ocasião que Bolsonaro usou para interceder em prol de Pazuello junto ao comandante –, poderia ser encarado como falta de tato, mas a absolvição revela cumplicidade.

Desde a redemocratização, entrou governo, saiu governo, e a unidade militar foi mantida. Os 21 anos de ditadura que impuseram ao país também não bastaram para macular a boa imagem das Forças. Isso devido talvez a nunca nenhum militar ter sentado no banco de réus pelos crimes de Estado do período. A anistia, afinal, foi geral justamente para autopreservação. O quão irônico é que as Forças sejam desmoralizadas justamente no governo de um ex-militar, entusiasta da ditadura e populista –  pecado do qual nenhum dos presidentes militares pode ser acusado? Pode ser irônico, mas não é surpresa. Não faltaram avisos para o que agora se consuma. A leniência com Pazuello soa como um recado claro: aos militares, é lícito fazer política e apoiar abertamente Bolsonaro. Isso, poucos dias após policiais militares prenderem um professor que plotou seu carro com um adesivo pouco lisonjeiro ao presidente, em mais um abuso em nome da execrável Lei de Segurança Nacional. Pode-se discordar do que dizia o adesivo, mas não se pode atentar contra a livre-expressão.

Basta somar dois mais dois e o que temos, com cidadãos sendo aterrorizados por criticarem o governo e com os guardiões das armas sendo flagrantemente cooptados, é um país que se parece cada vez mais como uma republiqueta e que se aproxima de uma Venezuela, pelas mãos de quem alegava ser o antídoto contra esse destino. Nenhum liberal ou conservador que se preze apoia esse estado de coisas. Isso é produto de reacionários, de agitadores, de jacobinos de direita da pior espécie. Aqui resisto da forma que posso, com palavras, mas precisamos de ações concretas. Urge a revogação da LSN, herança da ditadura. Urge a vedação de militares da ativa em cargos de natureza política. Que o governo Bolsonaro sirva para ao menos demonstrar nossos pontos de fragilidade institucional e as arestas que precisam ser aparadas para que sejamos uma nação respeitável aos olhos do mundo, e não a piada que nos tornamos nas mãos de Bolsonaro. Se isso não for feito, os mesmos instrumentos poderão ser usados por outros populistas, de outras colorações ideológicas. Para isso precisamos de um ativo que, infelizmente, encontra-se em escassez por aqui, inclusive onde muitos pensavam pulular: coragem.

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Gabriel Wilhelms

Gabriel Wilhelms

Graduado em Música e Economia, atua como articulista político nas horas vagas. Atuou como colunista do Jornal em Foco de 2017 a meados de 2019. Colunista do Instituto Liberal desde agosto de 2019.

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