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O STF e o polêmico “passaporte sanitário” no município do Rio de Janeiro

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Como observado em reiteradas ocasiões ao longo do período pandêmico, a adoção de medidas restritivas às liberdades individuais tem ensejado controvérsias entre o Estado e membros da sociedade civil, assim como entre entes estatais e as diversas instâncias do Judiciário. O mais recente Pomo da Discórdia girou em torno do Decreto Municipal no. 49.335 da Prefeitura do Rio, editado a partir da alegada necessidade de evitar a disseminação do vírus da COVID-19, e que estipulou a obrigatoriedade da apresentação do comprovante de vacinação – o chamado “passaporte sanitário” –, tornado, assim, requisito ao ingresso e à permanência em determinados estabelecimentos.

Questionado em juízo, o Decreto teve seus efeitos suspensos pela decisão liminar de um desembargador do Tribunal de Justiça do Rio (TJ/RJ). Em seguida, o município ingressou com uma medida no Supremo Tribunal Federal (STF), onde obteve uma decisão liminar do ministro Luís Fux, revogando a decisão do TJ/RJ e mantendo em vigor a obrigatoriedade de apresentação do comprovante vacinal.

Antes que você, caro leitor, desista deste texto, por achá-lo enfadonho e confuso, peço uma chance para tentar debater até que ponto toda essa confusão – sim, um emaranhado de decisões contrárias, em curto espaço de tempo! – deriva de certos vícios no tecido social, na atuação recente das nossas Cortes de Justiça e nos mecanismos de controle das nossas liberdades.

No tocante ao primeiro tópico, a situação ora comentada expõe uma elevada litigiosidade em nossas relações sociais, pois não parecemos capazes de compor nossos conflitos sem a presença de um juiz togado, ou seja, sem o braço judicial estatal. Segundo dados apresentados pelo Prof. Joaquim Falcão[1], um em cada quatro Brasileiros figura como parte ou interessado em processos judiciais, o que redunda em um volume crescente de processos que, em muitas situações, poderiam ter sido evitados, ou dirimidos por vias alternativas de resolução de litígios, tais como a mediação e a arbitragem.

Ora, será que, antes da edição do Decreto, um amplo debate entre representantes da sociedade e os dirigentes municipais não poderia ter rendido bons frutos, dentre os quais a desistência da medida, ou até o ajuste de seus dispositivos às necessidades mais prementes dos setores afetados? Porém, a recusa em dialogar, dentro de parâmetros de objetividade e impessoalidade, agravou as tensões entre as partes, que acabaram por avolumar ainda mais as pilhas de processos à espera de uma solução final.

No âmbito do Judiciário, o caso desnuda um dos vícios mais graves incorridos pelo Poder, a saber, o “monocratismo”, ou abuso de decisões monocráticas, que consistem em deliberações tomadas por um único juiz, sem ouvir seus pares no colegiado. Segundo a pesquisa intitulada “Supremo em números”, realizada pela FGV/RJ[2], é cada vez maior o número de decisões monocráticas na nossa Suprema Corte, sobretudo em matéria criminal, que sofrem reversão em Plenário.

Desse modo, o monocratismo transforma cada juiz em um “tribunal autônomo” e acarreta o risco de decisões conflitantes até no seio de uma mesma corte, o que deixa as partes profundamente ansiosas e inseguras, ao se sentirem impossibilitadas de prever como será o seu amanhã. No caso do passaporte sanitário, já vimos a suspensão da obrigatoriedade por um integrante do Tribunal Fluminense, o restabelecimento da obrigatoriedade por decisão isolada do ministro Fux, e, mais cedo ou mais tarde, poderemos deparar com um julgado de uma Turma, ou até do Pleno do STF, que restaure a decisão da corte local, que mantenha a obrigatoriedade, ou até que adote alguma postura salomônica, um verdadeiro meio-termo entre as duas opções, como também vem ocorrendo nos últimos anos.

Em resumo, eis aí um grau de insegurança incompatível com a previsibilidade inerente a qualquer Estado de Direito.

Outrossim, a liminar do ministro Fux no caso em apreço descortina uma (má) prática recorrente em várias cortes país afora, que tem sido a omissão em apreciar todos os tópicos relevantes suscitados pelas partes. Com efeito, embora as associações afetadas pelo Decreto tenham baseado sua argumentação em duas linhas principais, a saber, a ausência de poderes (incompetência) de um Executivo Municipal para impor a obrigatoriedade do passaporte e o conteúdo abusivo do Decreto em si, o ministro examinou apenas a primeira.

No entanto, ainda que todos os entes da Federação (União, Estados e Municípios) possam legislar sobre medidas de contenção e mitigação da pandemia, como entendeu o ministro, teria sido indispensável analisar os argumentos da parte sobre a violação ao princípio constitucional da igualdade, por ter sido a exigência imposta a um rol limitado de estabelecimentos, com exclusão de outros. De fato, o mero poder de legislar não autoriza o ente público a emitir normas que impliquem eventuais abusos e infrinjam dispositivos da nossa Constituição Federal (CF), cuja guarda cabe ao STF.

Portanto, o silêncio de Fux sobre a alegada abusividade do Decreto cerceou direitos de partes envolvidas no litígio, impedindo-as de saber se, na visão do ministro, a norma seria abusiva ou não, e por quais razões. Em síntese, faltou transparência em torno de uma das espinhas dorsais da controvérsia, o que pode ser enxergado como mais um fruto venenoso da massificação das decisões judiciais, que acabam comprometidas em sua qualidade técnica.

Por fim, e não menos importante, não posso deixar de registrar meu desapontamento diante da chancela – e ainda pela via do monocratismo! – da Suprema Corte, guardiã da CF e, portanto, das nossas liberdades individuais, a dispositivos emanados de um ente federativo que nos tutela como se fôssemos meros incapazes. Longe do que imagina boa parte de nossos governantes, somos autônomos, dotados de razão, e plenamente conscientes dos riscos das nossas escolhas, inclusive de frequentar este ou aquele estabelecimento.

Aliás, se o Estado não se imiscuísse tanto na nossa esfera privada, talvez diversos comerciantes tomassem a iniciativa de exigir o comprovante vacinal em seus estabelecimentos, para transmitir à clientela uma sensação de maior segurança e confiabilidade, até mesmo no âmbito de exitosas estratégias de marketing. Porém, no nosso país, os entes estatais, em seu paternalismo e dirigismo, não nos deixam sequer margem à criatividade, antes substituindo-se às nossas vontades e escolhas.

Seguimos, então, por força de uma liminar, sujeitos à obrigatoriedade imposta pelo Decreto carioca. Até quando, não se sabe. Lançados no mar das incertezas, só nos resta aguardar os próximos capítulos de mais essa saga judiciária.

Referências:

[1] in “Quem é o dono da justiça no Brasil?”, artigo publicado no Jornal Valor Econômico, em 06.08.21

[2] FALCÃO, Joaquim et. al. VI Relatório Supremo em Números: A realidade do Supremo Criminal. Rio de Janeiro: FGV Direito Rio, 2019, p. 31-38.

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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