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O “patriotismo racional” de Olavo de Carvalho como alternativa

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Uma das melhores surpresas do final deste ano foi um debate realizado pelo Brasil Paralelo entre o filósofo e jornalista Olavo de Carvalho e o diplomata Paulo Roberto de Almeida. O tema era o internacionalmente polêmico conceito de “Globalismo”. O termo diz respeito à interpretação de que determinados agentes e forças políticas estão agindo no sentido de ampliar a autoridade de instituições supranacionais e erodir a relevância dos Estados-nações. Gostaríamos de dedicar alguns comentários a esse debate.

As posições dos dois intelectuais foram em direções opostas. Para Paulo Roberto, organizações como a ONU são muito inofensivas e o conceito de que existiriam forças agindo nessa direção centralizadora é obra de ficção, criada para sustentar a teoria “paranoica” de um “fantasmagórico governo mundial”, derivada de um “nacionalismo estreito” e um “soberanismo introspectivo”. O “globalismo” seria, portanto, apenas uma desculpa de movimentos nacionalistas e protecionistas para atacar a globalização.

Olavo discorda. Para ele, o que existe é um movimento de centralização de poder burocrático – inclusive, sem nada de essencialmente liberal na economia; as milhares de páginas de regulamentos da União Europeia já deveriam deixar os liberais desconfiados – que patrocina agendas com vistas à dissolução das culturas nacionais e que também “dissolve as identidades individuais”, construídas “sobre uma base cultural e histórica”. A consequência seria a oferta de oportunidades para projetos políticos de homogeneização de viés “racionalista” dogmático.

Avaliemos esses argumentos por partes. Em primeiro lugar, com todos os respeitos que o professor Paulo Roberto de Almeida merece, afirmar que não existe nenhuma “ideologia globalista” é, isto sim, sem base; a expressão, como pontuamos e repetimos, é usada para conceituar encaminhamentos ideológicos que sustentam a cessão de autoridade a instituições supranacionais de modo a esvaziar ao máximo possível a relevância da ideia de Estado-nação. Ora, basta consultar a obra clássica do socialista fabiano H. G. Wells, A Conspiração Aberta, de 1928, para constatar que toda essa agenda já estava sendo apresentada naquela época, e de maneira deliberada. Não se trata de nenhum clã secreto que trama a dominação mundial com a ajuda de Satanás, alienígenas reptilianos ou qualquer bizarrice do gênero; é uma agenda objetiva, que faz parte do repertório simbólico e intelectual de muitos atores sociais. A afirmação de que nenhuma força política jamais propôs a orquestração dessa estratégia e desse plano, por utópico que seja, é comprovada pelo fabianismo como objetivamente falsa.

Há quem acredite pura e simplesmente na falência da nacionalidade e do localismo, com base em uma argumentação tecnológica. Alguns liberais de mentalidade muito respeitável e razoável, sob o adorno de um cosmopolitismo fluido e plástico, defendem certa crença exagerada em que as redes, a Internet como um todo, estariam dissolvendo a importância das concretudes, diluindo as fronteiras, aniquilando as identidades nacionais, na medida em que estabelecem uma interação muito mais ágil e intensa entre todas as partes do mundo, o compartilhamento de imagens, áudios e vídeos que as fronteiras de qualquer natureza não podem obstar a que se processem e espalhem. Esse “apocalipse revolucionário e transgressor” parece estar, em alguns círculos, assumindo uma retórica voltada a pontificar o que será o futuro, muito semelhante às certezas destroçadas do Positivismo oitocentista. Estaremos cometendo o mesmo erro?

As redes terão diluído as identidades calcadas no que se elabora no processo histórico, o nosso ethos? Será que os brasileiros, bem como o caldo cultural que os constitui como sendo o que são, são rigorosamente iguais aos franceses, ingleses, russos ou americanos? Parece-nos claro que não. Será que faz sentido dizer a um israelense que a Internet diluiu a razão de ser de suas fronteiras e do que torna seu povo uma comunidade com identidade histórica e política? Ou será essa absoluta “cidadania mundial” uma fantasia útil a teses globalistas, próprias de um intervencionismo invasivo às particularidades locais, que querem exatamente transportar essa identificação para um centro supranacional? Será essa fluidez das redes suficiente para aglutinar o povo e negar raízes calcadas na língua, nas interações e negociações culturais e políticas dos séculos, como diria o filósofo britânico Roger Scruton?

Irá esse cosmopolitismo virtual absorver e destruir as identidades, criando outras, com base em associações, que as substituam? Terá ele esse poder? Não nos parece. Não nos parece que ele tenha dado, mais do que a Ciência aos positivistas, as provas de que vai jogar ao lixo tudo que somos e construímos até hoje. Não nos parece que irá deslegitimar o apelo de uma sabedoria de séculos e de milênios que ainda nos fala tão ao íntimo, e que o poder da máquina não soa capaz de suplantar. Não nos parece que o forte e construtivo apelo ao nosso lugar no mundo e à nossa identidade concretamente desenvolvida, alicerçada em fenômenos e fatos do mundo real, tenha perdido sua utilidade de integração sob os apelos imperativos do virtual.

Daqui a um tempo na escala histórica, poderemos voltar a conversar. Ideias como Brasil, América, União Europeia, NAFTA, não faziam sentido há 500 anos. As nações e fronteiras modernas não existiam na Antiguidade ou na Idade Média – mas havia realidades, tais como as Coroas e as terras dos senhores feudais, ou as instituições religiosas, que tomavam seu lugar na experiência de pertencimento. Levando em consideração até uma escala astronômica, todos os países cessarão de existir e com eles as identidades que os constituem, já que o próprio planeta um dia sumirá. Tudo que conversamos existe em uma escala de transitoriedade no cosmos.

Por isso, significa que está superado? Que já não nos serve? É essa a discussão. O entendimento que sustentamos, pessoalmente, é de que não. O tempo dirá quem está certo. O que não se pode admitir como premissa é que uma grande transformação seja sinônimo de uma ruptura dilaceradora do edifício do passado; tal quebra do senso de continuidade é um erro que custou muito caro às arrogâncias filosóficas e políticas dos últimos séculos, erro esse que não devemos atualizar, à busca de um agente “refundante” que, num sentido total, fabrique um novo mundo.

Hoje, parece mais razoável ouvir o que diz Olavo sobre o sentimento patriótico. Diz ele que no Brasil, criou raízes um “nacionalismo estatizante” baseado em três principais inspirações: o ambiente militar (que pode desembocar no puro militarismo), o viés fascistoide-varguista ou uma perversão socialista, que manipula o sentimento popular contra reformas econômicas e capitaliza politicamente a ideia da “privatização” como ato de um “inimigo entreguista” ou “imperialista americano”. Em seu lugar, para Olavo, deveríamos cultivar um “patriotismo racional”, “economicamente esclarecido”, que não precisasse abdicar da racionalidade das teses econômicas liberais e que não se transformasse em protecionismo econômico e culto ao Estado-Leviatã.

O conselho de Olavo nos toca fundo, mas não é novo. O liberal Roberto Campos já diferenciava o “nacionalismo de fins” do “nacionalismo de meios”, dizendo-se adepto do primeiro. O intelectual católico Gustavo Corção já distinguia “nacionalismo” de “patriotismo”, atribuindo caráter positivo ao segundo. O intrépido tribuno da antiga UDN, Carlos Lacerda, já era antifascista, anticomunista e antipático à ideia de regimes militares, mas entusiasmado defensor do patriotismo. Olavo, portanto, não está inventando nada. Trata-se antes de resgatar algo e qualificar que de inventar.

Em defesa dessa plataforma de um patriotismo de vocação econômica e institucional liberal, parece válido recuperar algo que dissemos em artigo sobre a retórica de Donald Trump e seu slogan “America First”. Lembramo-nos ali de que o filósofo britânico Roger Scruton, novamente ele, em seu livro Como ser um conservador, abordou o conceito de nacionalismo como algo que pode ser encarado e vivido como uma ideologia totalizante, transcendendo em relevância a religião, a filosofia, os direitos individuais e o sentimento humanitário, com o que se pode tornar um dogma fanático, autoritário e relativista moral tão terrível quanto os adversários que se propuser a combater – razão pela qual argumentos nacionalistas e socialistas já andaram juntos em diversas ocasiões.

Porém, Scruton destaca, “para as pessoas comuns, (…) ‘nação’ significa simplesmente a identidade histórica e a lealdade que as une no corpo político”. Para ele, “é porque somos capazes de definir a nossa condição de membro de uma sociedade em termos territoriais que, nos países ocidentais, desfrutamos das liberdades elementares que são, para nós, o fundamento da ordem política”, afinal, “nos países baseados em obediência religiosa e não secular, a liberdade de consciência é um ativo escasso e ameaçado”.

Em analogia interessante, Scruton recorda que as diferenças de opinião só não dilaceram completamente as boas famílias porque elas entendem haver algo que as deve manter unidas em um conjunto; da mesma forma, “tem de haver uma primeira pessoa do plural, um ‘nós’, se os muitos indivíduos existem para ficar juntos, aceitando as opiniões e os desejos dos demais, independentemente das divergências”. Um “nós” nacional, cuja “liga” é mantida pela sensibilidade patriótica, é importante, porque, melhor do que um “nós” religioso, étnico ou baseado em segmentos fragmentados, serve à acomodação das divergências. Seriam “um Estado de Direito secular, uma jurisdição territorial e um idioma comum em um lugar em que as pessoas reivindicavam como sendo a sua pátria (lar)” justamente o substrato do sucesso dos Estados Unidos, ainda que a religião e demais aspectos da cultura popular tenham influência prática sobre ele – o que não é contraditório.

A reação às medidas centralizadoras da União Europeia apenas sugere que as nacionalidades ali presentes são, de algum modo, forças vivas que não permanecem caladas perante uma intromissão artificial. Não professamos um completo atomismo moral e, por isso, consideramos a “nação” e a “pátria” conceitos afetivos que, bem compreendidos e conceituados, não precisam se expressar em termos estatizantes.

O apreço ao Brasil não precisa ser o apreço a monopólios estatais ou empresas públicas. Pode ser também pela iniciativa privada, fruto do labor e dos valores dos filhos da pátria, fazendo florescer em seu seio mais prosperidade e riqueza. Pode ser também um apreço às nossas boas referências históricas, a um futuro como coletividade e à comunidade política a que pertencemos – cujo legado cultural, sucessos e até problemas são nossos, são conhecidos e próximos, em vez de uma identificação com autoridades anônimas em uma organização internacional desconhecida.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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