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O “Leviatã”: Thomas Hobbes e o papel do soberano

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Uma das obras clássicas do pensamento político, Leviatã – ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil, de Thomas Hobbes (1588-1679), segue ensejando reflexões díspares, por vezes conducentes a conclusões completamente distintas.

Há quem, curiosamente, situe sua obra como um marco importante para o posterior desenvolvimento do liberalismo como o entendemos hoje. Ao mesmo tempo, há quem a rechace como um monumento à tirania e ao Estado supremo. Devassar suas quase 570 páginas, na edição da Martin Claret, leva a pensar que a verdade está no meio.

A compreensão de Hobbes ganha contornos se apreciarmos a sua localização histórica. Vivendo na Inglaterra do século XVII, um pouco antes e, por algumas décadas, contemporaneamente a John Locke (1632-1704), ele foi influenciado pela Reforma Anglicana, pelo auge do absolutismo monárquico e pela revolução científica, adotando referências mecanicistas e inspirando-se em nomes como Francis Bacon (1561-1626) e Galileu Galilei (1564-1642).

Não obstante fosse defensor do Cristianismo, particularmente do Protestantismo, com uma série de observações críticas aos papas e à Igreja Católica em sua obra, Hobbes se revela moderno precisamente porque constrói seus argumentos sobre a natureza humana e a lógica por detrás da organização do Estado e da sociedade civil sobre essa base de teor material e mecânico, sem a necessidade de recursos teológicos, tampouco metafísicos. Apesar de as duas últimas partes do livro se concentrarem amplamente em temáticas religiosas e interpretações bíblicas, ele não se fundamenta, como outrora, na tese antiga do direito divino dos reis para delinear o coração de sua concepção política.

A importância de Hobbes estaria em que, partindo dessas bases modernas, ele formulou uma exposição pioneira de uma teoria contratualista, que apresenta nesses alicerces a origem da sociedade civil e organizada em torno de um Estado – uma espécie de “homem artificial”, uma instituição que decorreria, nos indivíduos da espécie humana, da “preocupação com a sua própria conservação e a garantia de uma vida mais feliz”, elementos ameaçados pelo que seria, sem o Estado, em um hipotético “estado de natureza”, “a mísera condição de guerra, consequência necessária das paixões naturais dos homens, se não houver um poder visível que os mantenha em atitude de respeito”.

Em consequência dessa realidade dramática que sem isso imperaria, para ele, o único meio de permitir que os indivíduos, chamados cidadãos ou súditos, tivessem acesso a direitos e a instrumentos de proteção de suas vidas e atividades seria “conferir toda a força e o poder a um homem ou a uma assembleia de homens”. Pela expressão “soberano”, que seria o portador desse poder, portanto, Hobbes não se referia exclusivamente a monarcas, mas também a governos aristocráticos e democracias, empregando aí as palavras com acepções similares às que adquirem na Política de Aristóteles – a quem, aliás, Hobbes faz os mais lamentáveis ataques ao final de seu livro, tratando a filosofia grega como se fora um poço de ignorância.

Ainda que aplique seus conceitos a essas três formas de governo, enxergando no “soberano” a quem o poder deve ser concedido o próprio Estado, independentemente de qual seja a forma de que se revista, é interessante constatar que Hobbes enuncia alguns argumentos em favor da monarquia absoluta em detrimento dos demais regimes, que em muito se assemelham aos argumentos utilizados pelo libertário anarcocapitalista Hermann Hoppe em seu Democracia: o Deus que Falhou para alegar que a monarquia antiga era superior ao regime democrático.

Tal como Hoppe, Hobbes já ressaltava que o monarca se identificaria mais com a sorte de seu reino, porque, ao fim das contas, seria sua própria fortuna pessoal que estaria em jogo, o que em assembleias aristocráticas e democráticas teria menos impacto, bem como indicava que a monarquia favoreceria apenas alguns poucos membros da Corte, entre os parentes e conselheiros do rei, enquanto a democracia e a aristocracia aumentariam a quantidade potencial de privilegiados inseridos na máquina do Estado.

O livro é muito explícito e recorrente em sustentar que os mais diversos assuntos, das penalidades aplicadas, da Justiça, das doutrinas e teorias que podem ser livremente expressas até as sanções religiosas, tudo, por natureza, deve estar subordinado à determinação do “soberano”, isto é, do Estado. A liberdade dos súditos, para ele, está “somente naquelas coisas permitidas pelo soberano ao regular suas ações, como a liberdade de comprar e vender ou realizar contratos mútuos, de cada um escolher sua residência, sua alimentação, sua profissão, e instruir seus filhos como achar melhor”. Não obstante essa bela enumeração, se o soberano quisesse negar ao súdito todas essas franquias de liberdade, mesmo negar-lhe a própria vida, como no caso de uma execução injusta, ele teria esse direito, ao menos perante o juízo dos demais, reconhecido por Hobbes, porque “a liberdade (…) não é a liberdade particular de um homem, mas a liberdade do Estado”.

O “contrato social” em Hobbes é filosoficamente tratado como o ato simbólico dessa cessão de prerrogativas e poderes basicamente absolutos ao soberano, cessão mediante a qual as decisões e atitudes do soberano representante passam a equivaler às decisões e atitudes de todos que supostamente lhe cederam a autoridade. “Um Estado é considerado instituído quando uma multidão de homens concorda e pactua que a um homem qualquer ou a uma qualquer assembleia de homens seja atribuído, pela maioria, o direito de representar a pessoa de todos eles (ou seja, de ser seu representante), todos sem exceção, tanto os que votaram a favor desse homem ou dessa assembleia de homens como os que votaram contra, devendo autorizar todos os atos e decisões desse homem ou dessa assembleia de homens, como se fossem seus próprios atos e decisões, a fim de poderem conviver pacificamente e serem protegidos dos restantes homens”, ele define. Por isso, por absurda que seja, a decisão do Estado deve ser respeitada e acatada como decisão própria dos cidadãos, mesmo pelas minorias que passarem a rejeitar seus posicionamentos e sua autoridade.

Salvo a de não confessar crimes e de não cumprir a ordem de cometer suicídio, mesmo que venha do soberano, porque não comete um crime aquele que procura defender a própria vida (cometeriam, no entanto, aqueles que, mesmo ele sendo condenado injustamente, procurassem defendê-lo e questionar o julgamento do soberano) -, todas as outras liberdades estão subordinadas, em seu pensamento, “à inexistência de leis a respeito. Quando o soberano não estabeleceu regras, o súdito tem a liberdade de fazer ou de omitir, de acordo com seu discernimento”. Do contrário, todos devem se curvar aos seus ditames. Enquanto o soberano, o Leviatã, o glorioso Estado, proteger os súditos, eles lhe deverão obediência. Hobbes é hostil a qualquer poder organizado que contrabalance o do soberano, bem como proclama a justiça da repressão a organizações e reuniões, porque a ameaça à autoridade do “soberano” é uma ameaça à paz e à tranquilidade buscadas na organização política.

Não consigo conceber, pois, como se poderia dizer que Hobbes era um “liberal”, quando suas ideias transparecem claramente autoritárias, alérgicas a qualquer organização política das minorias de interesse ou opinião e contenção ou contrapeso de poderes. Por que razão, então, pontuei que a verdade estaria no meio?

Podem-se tecer inúmeras críticas ao pensamento contratualista, a começar pelo fato de que, concretamente falando, como seus próprios defensores admitiriam, não há sinal de que tenha havido em algum momento, na aurora dos tempos, essa mítica reunião em que o “contrato social” teria sido selado. Trata-se de uma construção filosófica. Graças ao trabalho do libertário Adriano Gianturco, tem sido difundida entre os brasileiros a teoria do “bandido estacionário”, que explicaria a origem concreta do Estado de outra forma, mais objetiva e realista. O pensamento de Aristóteles, do direito natural clássico, acerca da origem e destino dos governos, ainda me parece pessoalmente mais interessante, ao mesmo tempo, do que as teses libertárias e do que as consequências deduzidas por Hobbes.

Mesmo assim, ainda que “apenas” como instrumento teórico, o contratualismo estimularia, a partir de Locke e outros autores, sobretudo na própria Inglaterra, a concepção do liberalismo, do constitucionalismo, da limitação dos poderes, na medida em que deslocou diretamente para os interesses dos indivíduos, de cada cidadão, a organização da sociedade civil e do Estado, em vez de apelar, já de início, à “comunidade”. Se admite a diluição da maior parte das franquias individuais na tirania “necessária” do Estado, ao mesmo tempo Hobbes constrói filosoficamente a ideia de que isso se daria no interesse de cada indivíduo, para proteger sua vida e materializar seus direitos naturais.

Pode ser esse um lugar positivo de Hobbes na história do pensamento liberal: o da introdução de um estímulo filosófico-metodológico, por assim dizer, que serviu para melhores desenvolvimentos posteriores, convivendo, em seu elaborador, com postulações autoritárias das quais o cidadão do século XXI deve, naturalmente, passar longe.

 

 

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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