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O Caso Dilma e a Justiça eleitoral

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por TULIO CAIBAN*

dilmatemerO recente debate travado na Justiça Eleitoral a propósito das eleições presidenciais convoca, de alguma forma, a opinião pública a refletir sobre o papel dessa importante instituição no atual contexto democrático brasileiro. Sob as lentes da historiografia nacional, os procedimentos eleitorais, desde a Primeira República, vêm marcados por incontáveis casos de abusos e fraudes, podendo a corrupção eleitoral ser considerada um dos mais notórios e enraizados flagelos do regime representativo no Brasil. É verdade que a história das eleições no país pode ser dividida em um período antes e outro depois da inauguração da Justiça Eleitoral no ano de 1932.

Mas, ainda permanece como um desafio a sua capacidade institucional a tarefa de controlar e punir, efetivamente, a prática de ilícitos relativos ao financiamento irregular de campanhas e ao uso indevido da máquina estatal. Talvez, grande parte da dificuldade resida em interpretações jurídicas restritivas da atuação da Justiça Eleitoral, impostas por ela própria, muitas vezes aferrada a questões formais de organização dos pleitos diante do vocabulário legal, em prejuízo da sua vocação imanente que é a de assegurar de forma constante as liberdades políticas iguais. Um bom exemplo do problema, hoje, ocupa a agenda política no país, versando sobre a impugnação do mandato da chapa presidencial Dilma/Temer. O principal argumento contra a abertura do processo baseia-se no seguinte silogismo lingüístico: a Constituição somente permite a medida nas hipóteses de “abuso de poder econômico, corrupção ou fraude” (art. 14, §11º, CR); como não está escrita, expressamente, a locução “abuso de poder político”, logo, a questão não pode ser avaliada e deve ser arquivada. Apesar do claro emprego da metonímia no texto constitucional – pois o vocábulo corrupção substitui o gênero a que pertence do “abuso de poder político ou autoridade”-, por uma restrição semântica, inviabiliza-se a formulação do juízo que pode constatar ou não a responsabilidade, evidentemente, após o devido processo legal e consideradas todas as circunstâncias.

Esse tipo de raciocínio ipsis litteris é muito comum na Justiça Eleitoral, ocorrendo em outros casos, como por exemplo, da declaração de inconstitucionalidade do recurso contra a expedição de diploma, da proibição de investigação judicial de causas abusivas anteriormente ao processo formal de registro de candidatura, etc. Aliás, no mesmo contexto processual a respeito de irregularidades encontradas nas contas de campanha da chapa vitoriosa para a Presidência da República, a recente decisão de arquivamento pela Procuradoria-Geral da República girou sobre eixo argumentativo comum, ao fundamentar-se no fato de que “não interessa à sociedade que as controvérsias se perpetuem; os eleitos devem poder usufruir das prerrogativas de seus cargos e do ônus que lhes sobrevêm, os derrotados devem conhecer sua situação e se preparar para o próximo pleito”, sustentando o papel de pacificação social da Justiça Eleitoral. O receio judiciário de perpetuação da disputa eleitoral perante juízes não eleitos, ou a ameaça que penderia sobre o representante popular, ao desafiar permanente do mandato conquistado, na verdade, são ideias de fundo sedimentadas na cultura da Corte ao longo da história, que reconduzem a questão ao componente da legitimidade democrática.

Assim, o discurso judicial formalista revela implicitamente um recuo baseado na deferência à vontade popular democrática tal como expressada nas urnas a bom termo. E a possibilidade de revisão judicial constante do mandato representativo, nessa visão, pode inserir um elemento de instabilidade nas relações eleitorais, ensejando, ao extremo, um quadro de ingovernabilidade. Mas, isso é sempre certo? Ao contrário, a tendência formalista da Justiça Eleitoral parece reduzir os níveis de cidadania livre e igual ao não se permitir, de modo mais extenso, avaliar e coibir o fato de alguém utilizar as estruturas governamentais ou o curso abusivo do dinheiro em favor próprio ou de outrem, o que gera um desvio na formação inicial da vontade democrática, a partir do aliciamento de eleitores por quem já detém parcela de poder político ou demasiados recursos econômicos.

Não podemos jamais perder de vista que, quando um agente político põe a máquina estatal a seu serviço, não se pode mais dizer que todos os cidadãos têm direitos iguais de acesso a cargos eletivos; e o mesmo se diga com relação ao emprego ilícito de recursos econômicos em larga escala no financiamento de campanhas eleitorais. Por outro lado, os votos não livres, porque resultantes de barganhas envolvendo o aparelho estatal, não retratam a vontade autêntica dos votantes, criando um descompasso entre as decisões futuras tomadas pelo agente na vida política e as possíveis “instruções” do eleitorado, da mesma forma que a formação de caixas para o financiamento clandestino de campanha, longe da filantropia, representa um alto custo para a democracia, comprometendo o eleito com os interesses econômicos particulares do grupo que o levou ao poder. A representação constituída dessa maneira, ao atingir grande parte do corpo de representantes, produz despreocupação por parte das instituições governamentais quanto ao destino e a sorte dos cidadãos como um todo e, por círculo vicioso, reduz a capacidade das pessoas de participarem corretamente das decisões coletivas às quais estão submetidas.

Nesse cenário, a comunidade já não elege mais os seus representantes em eleições frequentes com a participação de todos os cidadãos, a rotatividade nos cargos eletivos só existe em aparência, não se atribui igual impacto ao voto de cada um e apresenta-se uma variante desvirtuada de igualdade política, pondo em xeque o regime democrático constitucional. Portanto, nas democracias constitucionais, a ideia de governo justo também está relacionada com a de acesso do governante ao poder por um procedimento político-jurídico escoimado de fraudes e vícios, e esta integridade depende da não constrição das liberdades políticas pelas instituições encarregadas das eleições em razão de algum argumento que permita a degradação dos valores equitativos por influência abusiva econômica ou política. A preocupação de justiça eleitoral relativa à integridade do procedimento político, assecuratório das liberdades políticas iguais, não pode ser restringida pela necessidade de estabilização de um estado de coisas defeituoso, na verdade, uma deformação das vontades convergentes na configuração inicial do processo decisório coletivo.

E qual é o papel da Justiça Eleitoral? Em meio às alternativas oferecidas pelo texto legal e aos mares revoltos da vida política, deve preferir a interpretação que conduza ao seu melhor significado à luz de valores e princípios constitucionais substantivos. A moralidade institucional da Justiça Eleitoral depende de como ela pode moderar a disputa e estabelecer, por lemes imparciais, uma rivalidade equitativa em relação às autoridades e cargos políticos, garantindo sempre – e antes de tudo – as liberdades políticas fundamentais.

*Tulio Caiban Bruno é Promotor de Justiça/RJ e Mestre em Direito pela UFRJ.

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