‘Massalama’, Mubarak!
LIGIA FILGUEIRAS*
Trinta anos é um ‘bom’ tempo. É tempo demais para alguém ficar no Poder. Por melhor que seja um déspota esclarecido, o alerta de Lord Acton é absolutamente aplicável.
Do ponto de vista de quem está de fora do país, não se pode dizer que o Egito tenha sido tão mal governado. Ao contrário, o progresso é inegável. Essa juventude blogueira / twitteira seria impensável trinta / quarenta anos atrás, ainda que a tecnologia estivesse disponível. O Egito não tinha, praticamente, uma classe média. Se tinha, era estatisticamente desprezível. A massa de pessoas pobres era imensa. Anwar Sadat começou o processo de mudança e Mubarak continuou.
Se considerarmos o tempo de Nasser, “os militares” estão no poder no Egito há 56 anos [16 sob Nasser, 11 sob Sadat e 29 sob Mubarak]. No Brasil ficaram 21 anos [3 sob Castelo, 2 sob Costa e Silva, três meses com uma Junta Provisória, 5 anos sob Médici, 5 sob Geisel e 6 sob João Figueiredo]. Antes de 64 não se via classe média em grandes cidades do nordeste como Recife, por exemplo. Se havia, também era desprezível estatisticamente. Vinte anos depois, ela se espalhava pelos grandes centros do norte e nordeste, para falar das regiões mais pobres do país na ocasião.
O Brasil conheceu o progresso no regime militar. O Egito também, especialmente sob os dois últimos governantes. Houve desenvolvimento econômico, com restrição de liberdade. História do Brasil à parte, qual a história futura do Egito?
Pelo que se viu nas entrevistas da CNN na Praça Tahrir, ninguém sabe para onde o país está indo, nem sob quem, mas as pessoas estão felizes com a retirada do ditador do poder. Corre o risco, o Egito, de uma virada à la Irã? A junta militar no governo conduzirá a um processo democrático? Quem pode assumir o poder daqui a alguns meses, após as eleições?
O Ocidente olha, perplexo, e dá seus palpites. A Casa Branca, ainda que repita que o povo é quem vai decidir livremente os rumos do país, internamente cruza os dedos para não vir o pior – Israel incluído no cenário.
Do ponto de vista da Comunicação, o momento não podia ser mais fascinante porque o Egito mostra o que a liberdade de expressão pode fazer para o bem de um povo. A mídia convencional e a informal eletrônica tiveram importante participação nas manifestações públicas.
E pensar que tudo começou com uma página no Facebook, lançada por Wael Ghonim, um executivo do Google para a África do Norte e Oriente Médio. **
A página ganhou o título “Somos todos Khaled Said”, em homenagem a uma vítima da violência do regime em Alexandria. Havia sido criada para lançar uma campanha contra a tortura e a brutalidade policial. Nela, Wael Ghonim apelava a um protesto contra o regime no dia 25 de Janeiro, Dia da Polícia no Egito.
Dias antes da data agendada para o protesto, o jovem de 37 anos deixou o Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, onde reside com a mulher e os dois filhos pequenos, para se deslocar para o Cairo. Justificou a saída a seus superiores dizendo tratar-se de viagem por razões pessoais. Na realidade, queria ver como respondia o povo ao apelo que havia lançado. Esteve na Praça Tahrir, passeou pela cidade, viu a polícia reagir e, na segunda noite do movimento, foi raptado pela polícia secreta. Ficou 12 dias algemado, de olhos vendados, sob interrogatório da polícia, que acreditava ter em mãos um agente de uma potência estrangeira interessada na desestabilização do Egito.
Finalmente solto, foi aclamado como herói pela população, mas, chorando pelas mortes que o movimento acabou provocando, pediu desculpas às mães das vítimas. Disse que os heróis são os que ficaram dia e noite na Praça Tahrir, não ele.
Wael Ghonim voltará para casa, confiando na democratização de seu país. Ele viu de perto como se ajuda o próprio povo a buscar força, facilitando a comunicação entre as pessoas pela internet.
No artigo ‘O que os egípcios estão nos ensinando’ [What Egyptians are teaching the World”], Sheldon Richman, editor da publicação The Freeman, ressalta a importância das ideias sobre a força do poder “porque, como diz Jeffrey Rogers Hummel, as ideias determinam em que direção o povo irá apontar seus canhões.” E relembra a lição de um filósofo do século XVI, Étienne de La Boétie, que escreveu que, para governar, os tiranos precisam da cooperação de seus comandados. Richman acrescenta: “é duvidoso que muitos egípcios tenham lido Boétie, mas ao encher a Praça Tahrir (Libertação) desarmados parecem ter compreendido sua tese.”
Para os que estão participando do VIII Prêmio Donald Stewart Jr., a chance não poderia ser melhor: contrastar o que o governo brasileiro vem tentando fazer desde a era Lula para “regular” a imprensa, evitando “abusos”, etc, com o que houve no Egito. Lá os jornalistas apanhavam e continuavam a cobertura, o povo apanhava e voltava à rua, a internet banda larga cessou e surgiram os meios alternativos de comunicação, inclusive o velho fax.
Fundamental nesse processo, diz a comentarista do Washington Post, Kathlen Parker***, “é a liberdade de se unir e de se expressar. Todos os dias toleramos [na mídia] exibicionistas, ‘especialistas’ e pornografia, junto com extremistas, palhaços e bobos da corte para o bem maior de uma sociedade livre na qual ninguém é esmagado por falar a verdade aos poderosos.”
E continua a comentarista:
“A mesma sorte não têm as centenas de milhares de egípcios [ela escreveu antes da saída de Mubarak] que sofreram agressões (ou a morte) ao buscarem seu próprio caminho para a liberdade. Em reportagem diretamente do Cairo, o colunista do New York Times Nicholas D. Kristol conta sobre o carpinteiro Mahmud que havia sido medicado sete vezes em 24 horas. O braço dele estava numa tipóia, a perna engessada e a cabeça enfaixada. E estava pronto para mais.”
De acordo com autoridades egípcias, o ex-presidente Mubarak e família deixaram o Cairo em direção ao sofisticado balneário de Sharm el-Sheikh, no Mar Vermelho.
Massalama, Mubarak!, Vaya com Dios!
*JORNALISTA
** De Executivo do Google a herói da revolução . DN / Gente, 11.02.2011
*** In Egypt, the ‘lamestream media’ shows its courage and value . Washington Post / Opinions, February 6, 2011
Fonte das imagens: Wikipédia; Facebook [Wael Ghonim]; site da ‘The Freeman’, publicação da FEE [manifestação no Egito].