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“Marighella: de inimigo público a herói nacional” – Entre fatos e versões

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marighella2Conhecer o que se passa nos meios de elaboração intelectual e cultural, como as universidades, que estão entre os principais laboratórios de construção e solidificação de memórias pelas iniciativas que inspiram nas artes ou na comunicação, é importante para entender o cenário com que estamos lidando. Para discutir as narrativas que pretendemos estruturar – e, gostemos ou não, narrativas, em política, são fundamentais -, precisamos conhecer as que já estão sendo contadas, e como elas prevaleceram. Nesse sentido, é útil o pequeno livro Marighella: de inimigo público a herói nacional, do professor e graduado em História Wagner dos Santos Soares, publicado pela Editora PRISMAS.

O livro é uma adaptação da pesquisa de mestrado do autor, que tinha por objetivo justamente estabelecer uma comparação entre a memória construída pela sociedade, através dos meios de comunicação e das vozes predominantes, a respeito do polêmico ex-deputado baiano Carlos Marighella (1911-1969), líder da Ação Libertadora Nacional, um dos grupos que enfrentaram o regime militar pela via da luta armada, originalmente ligado ao Partido Comunista Brasileiro. Depois de expor a biografia do personagem, o autor constrói uma análise das reportagens e relatórios publicados pelos órgãos militares e pelas publicações da época – em especial a revista Veja e o Jornal do Brasil -, mostrando que estes últimos tratavam a morte de Marighella como um golpe no terrorismo e na subversão comunista que ameaçavam o país, e endossando quase por completo a versão do governo de então, do presidente militar recém-eleito indiretamente, o general Médici. Em seguida, expõe os estudos de comissões posteriores, que estabeleceram que Marighella, independente de seu caráter ou virtudes, foi executado pelos militares sem chance de defesa, assumindo então o Estado responsabilidade direta por sua morte. Por fim, e essa parte foi a que mais nos chamou atenção, Wagner Soares expõe a ressignificação do personagem depois do advento da Nova República.

O interesse do autor era se manter o mais possível neutro, expondo o material analisado como uma documentação que daria voz às versões construídas. Não sei quais são exatamente os contornos e predileções políticas do autor e acredito que, em linhas gerais, ele obteve sucesso, e os documentos que relaciona serão úteis a qualquer outro pesquisador do tema. Um grande mérito que apresentou foi o de ter admitido a existência, em todos os períodos estudados, de memórias e narrativas subterrâneas, que confrontam a narrativa mais plenamente estabelecida. Em seu desfavor, acredito que uma menção em nota de rodapé a um artigo do colunista de VEJA, Reinaldo Azevedo, é muito pouco para mostrar a memória “alternativa” de uma “direita” brasileira de hoje acerca de Marighella, enfrentando a idealização que se faz dele e de outras figuras por parte do establishment, da elite cultural e política da atualidade. Caberia, creio, trazer um pouco mais de referências.

Se o autor quis ser minimamente neutro, eu, que aqui escrevo, não me vejo obrigado a isso. Sendo franco e direto: uma “direita”, ou um pensamento liberal e conservador, não equivale, em qualquer lugar do mundo, à defesa do autoritarismo militar como modelo ideal de governo. À exaustão, já está demonstrado que o regime estabelecido pela elite civil e militar dos anos 60, 70 e 80 no Brasil, a despeito de suas origens de intenções anticomunistas e antipopulistas, assumiu contornos estatizantes, e que um Médici, um Costa e Silva ou um Geisel nada teriam a ver com uma Thatcher ou um Reagan. Não negamos que atitudes incompatíveis com o Estado de Direito tenham sido cometidas àquele tempo por forças repressoras do Estado, quer isso tenha ocorrido com conhecimento e anuência dos governos centrais (de todos ou de alguns), quer tenha ocorrido apenas nos porões, por ação de trogloditas subalternos. Métodos similares já vinham sendo empregados no país há tempos, ao menos desde os anos do idolatrado tirano Getúlio Vargas, que trouxe inspirações da Alemanha nazista, com seu chefe de polícia política Filinto Müller.

No entanto, se a morte de Marighella ter sido fruto de uma reação dele e de uma suposta equipe de seguranças pode ser considerada uma versão idealizada e construída pela propaganda do regime, sua qualificação de líder terrorista e inimigo da democracia liberal não é, em qualquer sentido por que se considere o problema, uma mera versão. É um fato, confessado por ele próprio. Seu Mini-Manual do Guerrilheiro Urbano não está aberto a tergiversações e manipulações. Literalmente e explicitamente, Marighella ali define sua proposta como a do uso de todo tipo de mecanismo violento, incluindo o terror, emboscadas, execuções (diga-se de passagem, como a que ele mesmo sofreu, o que tiraria dele e de seu bando muito da autoridade moral para reclamar disso, por si mesmos) e sequestros. Diz com clareza que seu intento é aniquilar o capitalismo e estabelecer “um sistema totalmente novo e uma estrutura revolucionária social e política, com as massas armadas no poder”. Era um comunista e, como tal, seu apelo à democracia é apenas ilusório, tem um viés coletivista rousseauniano que invariavelmente termina por anular o indivíduo e estabelecer o totalitarismo, em um esquema muito pior que aquele contra o qual Marighella morreu lutando.

No último capítulo, encontramos a menção a documentários e trabalhos feitos para honrar a memória desse “grande mártir e herói da democracia” que enfrentou a ditadura assassina. Em 2009, por exemplo, Ítalo Cardoso, do PT/SP, é citado como dizendo que “Carlos Marighella colocou sua vida a serviço da cidade de São Paulo e do nosso país”, defendendo a condecoração do líder da ALN como Cidadão Paulistano.  O filho de Marighella, todos os respeitos a ele, fala do pai como “pessoa digna, que lutou e devotou sua vida a uma bandeira política muito importante”. O professor Antônio Cândido fala dele como alguém que abdicou de sua vida e se tornou um “herói nacional”. Paulo Abrão, então presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, viaja na maionese do paradoxo ao dizer que ao matar Marighella tentaram matar também “o socialismo, a crença na justiça social e na igualdade”, quando todos sabemos que socialismo é o pior tipo de escravidão moderna; finalmente, temos a iniciativa de alguns parlamentares petistas de tentar inscrever o nome de Marighella e do lendário líder comunista Luís Carlos Prestes no Livro dos Heróis da Pátria, alegando que “até o fim da vida se dedicaram à luta democrática”.

O livro está cumprindo seu papel de testemunhar, em suas páginas finais, a formação de uma concepção dominante, fato que nós, os leitores liberais e conservadores, temos instrumentação para afirmar que se deve a um grande esforço das lideranças esquerdistas, construtoras da atual fase republicana, de fazer prevalecerem determinadas leituras dos fatos. Como também o tiveram os regimes antecessores, entre eles o militar, embora com bem menor coesão, profundidade e sucesso. Não percamos de vista, no entanto, que há fatos que sobrepujam versões. Se a versão do próprio Marighella sobre o quanto ele valia como ser humano, explícita nas páginas de seu Mini-Manual, vale tanto quanto qualquer outra, então deveremos concluir que simplesmente não há fatos – o que, perdoem-me os pós-modernos, estou bem indisposto a aceitar.

 

 

 

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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