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Lições da Revolta da Vacina

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Em 1904, o Brasil era bastante diferente do que é em 2020. Trata-se, entretanto, de uma diferença que vai até a página dois. Confiarei na inteligência do leitor e passarei a relatar os episódios que se deram naquele conturbado ano do início do século XX. Deixo que avaliem as semelhanças com o cenário presentemente vivido nesta terra verde e amarela.

O presidente do Brasil era Rodrigues Alves, ex-conselheiro do Império, oriundo do Partido Conservador monárquico, que havia permanecido como um dos estadistas centrais da República Oligárquica, uma espécie de esteio para o regime oriundo da situação anterior. A Constituição de 1891 e o sistema político se baseavam retoricamente em preceitos liberais, mas na prática a República havia perdido os esforços teórico-práticos pela representação dos interesses e partidos no Parlamento, existente no Império, e os governos se formavam a partir de pactos desavergonhadamente costurados pelas oligarquias estaduais, sendo a paulista e a mineira as mais poderosas.

Rodrigues Alves até havia se esforçado por garantir a representação da minoria no Legislativo, porém o liberalismo dos governos da República Velha era entremeado de autoritarismo, com direito a amplos poderes para promover reformas urbanas e sanitárias sem muitas garantias à população, especialmente a mais pobre. É preciso levar em consideração que não havia meios de comunicação de massa e os principais jornais estavam tomados pela oposição, então eram escassos os mecanismos por que o governo poderia dialogar com a sociedade.

Nesse contexto complicado, felizmente distinto do atual, é que o brilhante Oswaldo Cruz foi empossado no comando da Saúde Pública, especialmente para mudar a imagem da capital do país, o Rio de Janeiro, como a cidade das doenças e das epidemias. Constatou-se a importância, com respaldo científico internacional, da vacinação contra a varíola. O combate à doença, no entanto, se tornou o estopim para a explosão de uma série de fatores sociais e políticos que já formigavam na República.

Relata Afonso Arinos em sua brilhante biografia de Rodrigues Alves, quase uma biografia dos primeiros governos da República Velha, Rodrigues Alves: apogeu e declínio do presidencialismo: “Desde o tempo da Colônia, a varíola havia sido um pesadelo no nosso país, como em outros, na mesma época. A descoberta da vacina, na Inglaterra, em fins do século XVIII, logo repercutiu em Portugal, onde médicos progressistas, como o mineiro Francisco de Melo Franco, tornaram-se seus defensores públicos, embora rudemente atacados pelos ignorantes. Aquele médico brasileiro, que residiu em Lisboa, até 1817, foi apresentado na sátira Os Burros, do iracundo e temível polemista Padre José Agostinho de Macedo, como assassino, pela sua confiança na profilaxia pela vacina. Foi mais ou menos essa mentalidade refratária ao progresso que se manifestou, no Brasil, espantosamente, em princípios do século XX, quando a segurança científica da vacina não mais podia ser discutida.”

Naquele tempo, tal como em outros tempos não tão distantes, o combate à doença se transformou em pauta política e alvo de deformações e distorções de todos os tipos. Interesses e narrativas subversivos, saudosistas da República da Espada e do militarismo de Floriano Peixoto – aquele pessoal que acha que atos institucionais e golpes militares instauram eras de ordem, paz e amor – e até liberais movidos pelas circunstâncias e avessos aos comandantes da política pública de saúde se permitiram imiscuir nessa confusão, criando o clima da bagunça e da anomia, bem como estimulando o divórcio definitivo entre a sociedade e a sensatez.

Havia já inúmeras vítimas da varíola naquele ano no Rio de Janeiro, sendo impossível saber os números exatos. A população não procurava os postos de vacinação. O governo quis decretar a obrigatoriedade da vacina, alegando não ver outra saída. Julgou que medidas de caráter compulsório eram emergencialmente necessárias e usou como exemplo o sucesso da mesma providência tomada na Europa. A vacinação obrigatória na Alemanha, relata Afonso Arinos, havia eliminado a doença no país em 1875.

O governo tomou medidas mais severas à proporção que a situação se agravava, incapaz de conversar com o povo a contento. Por outro lado, em vez de discutir, ponderar, de se organizar para provar a base sólida de quaisquer objeções, as lideranças da oposição incrementavam os protestos contra a vacina maldita e acusavam o autoritarismo da providência sanitária – mas, ao mesmo tempo, por vezes diziam muitas delas que a solução contra esses “tiranos civis” era uma quartelada, era colocar os militares no poder novamente.

Barata Ribeiro pregava contra a obrigatoriedade, uma invasão à liberdade de consciência. Para ele, “resistir aos agentes da Saúde Pública era defender o lar invadido e a tranquilidade doméstica conspurcada. Chegou a declarar que, como chefe de família, far-se-ia matar, antes de permitir que os vacinadores entrassem em sua casa”.  Florianistas como Alfredo Varela bradavam pela revolução contra o autoritarismo do governo do presidente paulista, aproveitando a crise de saúde para incrementar o caos social: “O povo brasileiro, no qual noto maravilhosa disposição para a luta, espera que surja um elemento coordenador. E ele há de surgir fatalmente. E no dia da procela, serão inúteis todos os esforços e precauções do governo, porque, mais que o espírito de revolta que domina todo o país, os seus próprios erros despenharão no abismo.” Na mesma linha, bradava Lauro Sodré que o povo seria libertado das mentiras da lei que o violentava e aquela podre República civil despencaria para surgir uma nova de suas cinzas.

“Os postos de vacinação da Saúde Pública registraram 23.021 pacientes em julho e só 6.036 em agosto. A massa ignorante, explorada pelos demagogos, acreditava nos exploradores. A 5 de novembro foi convocada, por meio de boletins lançados ao povo, uma reunião no Centro das Classes Operárias, a qual foi presidida por Lauro Sodré. No violento discurso que pronunciou, o senador carioca apelou claramente para a revolução, destinada a defender a liberdade do povo, ao que dizia, mas preparada para fazê-lo ditador, segundo ele esperava”, relata Afonso Arinos. A isso sucedeu-se toda sorte de destruições, vandalismos e caos, num ambiente pré-revolucionário.

O célebre liberal Rui Barbosa, insuspeito de qualquer apoio aos “jacobinos” militaristas e florianistas, aos defensores de uma revolução, pregava, porém, no âmago da crise, que a vacinação era inimiga da ordem e da lei. A lei da vacinação obrigatória era, para ele, uma “lei morta”, posto que, “assim como o direito veda ao poder humano invadir-nos a consciência, assim lhe veda transpor-nos a epiderme”. Deturpando totalmente as informações científicas acerca da vacina, mas abraçando um discurso embebido de princípios filosóficos liberais, bradou: “Logo não tem nome, na categoria dos crimes do poder, a temeridade, a violência, a tirania, a que ele se aventura, expondo-se, voluntariamente, obstinadamente, a me envenenar, com a introdução, no meu sangue, de um vírus, em cuja influência existem os mais fundados receios de que seja condutor da moléstia, ou da morte. (…) O Estado mata, em nome da lei, os grandes criminosos. Mas não pode, em nome da Saúde Pública, impor o suicídio aos inocentes.” O mesmo Rui, em seguida, se veria obrigado a apoiar o estado de sítio para conter a revolta e o caos que tais entrechoques no pior momento possível ajudaram a criar e faria anos depois um necrológio elogioso de Oswaldo Cruz.

A revolta foi contida e o golpe impedido. A vacinação obrigatória foi suspensa. Em 1908, o Rio enfrentou uma epidemia ainda mais poderosa de varíola, com ao menos quase 6400 mortos.

Antes que me acusem de anacronismo, como fizeram em outras oportunidades, as analogias a que convido não têm por meta equiparar fatos históricos e épocas distintas. Semelhança não é igualdade. Creio, entretanto, que não nos é possível negar a utilidade de aprender com os erros e acertos do passado.

Parece-me impossível negar paralelos com o que vivemos hoje, diante de mais um grande problema de saúde que se faz acompanhar de agitação no jogo político. Não pretendo com isso fechar qualquer questão ou condenar quem quer que seja. Como diria Hayek, somos falíveis e limitados no domínio de que dispomos acerca das informações. Talvez amanhã, olhando para trás, acabemos por nos reconhecer em alguns dos personagens aqui mencionados, relativamente à forma como lidamos com as polêmicas oriundas da pandemia do coronavírus. Talvez não.

O que com certeza o passado nos ensina é que nunca é saudável atravessar estes momentos investindo na cizânia, na guerra política provinciana e no alastramento da mentira e da desinformação. Serenidade e honestidade, em respeito às vidas humanas e, ao menos, por preocupação com o modo por que as luzes da História nos julgarão, são o mínimo de que devemos nos procurar imbuir no enfrentamento das questões contemporâneas.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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