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O estranho caso do capitão: entre Dr. Jekyll e Mr. Hide.

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Que a grande e velha mídia e boa parte dos analistas políticos não foram capazes nem de prever, nem de compreender a eleição de Bolsonaro é evidente; no entanto, que o próprio presidente seja incapaz de compreender as forças que o alçaram ao Poder é de uma burrice assombrosamente colossal.

Afinal, o que e quem elegeu Bolsonaro? Essa é uma questão que só pode ser explicada por uma soma de fatores. Aqui não pretendo exaurir o assunto, mas fazer um diagnóstico razoavelmente preciso de como Jair foi eleito. Os fatores determinantes para sua eleição podem ser divididos por quatro grandes “forças”.

O primeiro é, sem dúvida, seu carisma. Gostemos ou não do sujeito, é inegável que Bolsonaro alçou-se como um líder carismático e popular, capaz de levar multidões aonde quer que fosse. Fenômeno que no Brasil só foi igualado por Lula e Getúlio (não importa aqui discutir a artificialidade ou naturalidade do fenômeno, apenas o fato).

A segunda força é composta pela insatisfação geral e difusa da população com o petismo e suas políticas, ou aquilo que poderia ser identificado direta e indiretamente com suas políticas. Essa questão engloba dezenas de fatores: economia, cultura, tradição, religiosidade, centralização política, corrupção, pobreza, falta de representatividade, desvalorização da figura do produtor/empresário, ou seja, é uma insatisfação geral com o estado de coisas. Essa reação partiu do que podemos chamar de Brasil profundo, aquele que foi deixado de lado pelos intelectuais de esquerda e pela grande mídia. É a tia do zap, o Manuel da padaria e o Sr. João dono da quitanda do bairro. Aqui temos o antipetismo somado a um sentimento difuso de insatisfação generalizada com a política, um verdadeiro sentimento anti-establisment.

A terceira força é daqueles insatisfeitos com a criminalidade e com a bandidolatria geral. As relativizações morais, o laxismo penal, os absurdos índices de criminalidade e homicídio e a corrupção epidêmica vem formando uma população muito menos tendente a tolerar desvios éticos e posturas penais fracas contra a criminalidade. Essa ala se serve daquilo que podemos chamar de “lavajatismo”. Esse grupo também é composto pelas Forças Armadas e forças de segurança, elementos importantíssimos e decisivos em diversos momentos da história nacional – para o bem e para o mal –  e que normalmente tendem a representar a ordem contra elementos insurgentes.

A quarta força é ideológica, representada por duas áreas distintas: de um lado os conservadores e de outro os liberais. Os primeiros buscavam por meio de Jair resgatar a ordem do Estado, reduzir a criminalidade e a corrupção, resgatar a soberania na área internacional, sanear tanto quanto possível a política e a cultura em um projeto de longo prazo. Os segundos, representados por Paulo Guedes e seu projeto, buscavam a reforma das instituições e reformas estruturais: privatizações, descentralização política e econômica, liberdade econômica, reforma da Previdência, reforma tributária e abertura para o comércio mundial. Os projetos ideológicos se confundem e se misturam em seus limites, mas não são exatamente a mesma coisa.

A montagem do governo foi bem pensada, de forma equilibrada e se pensarmos bem acabou por refletir – seja de forma voluntária ou apenas acidental – a formação da própria “onda” que alçou Jair ao Poder.

Guedes e sua equipe representavam a ala ideológica dos liberais. O chanceler Ernesto Araujo, a Ministra Damares, Ricardo Velez Rodriguez, Felipe G. Martins (assessor especial da presidência) e outros representavam alguns anseios conservadores. Moro encarnava a luta contra a corrupção e o “lavajatismo”. Heleno representa a adesão da força militar e garantia da ordem. E Bolsonaro unificava tudo sob seu carisma, agradando as forças antipetistas e anti-establisment com suas indicações. O problema é que o carisma como forma de governo é um elemento altamente instável e de difícil mensuração e manutenção.

Após dois anos, de governo o presidente parece sofrer de algum transtorno, como um indivíduo divido em duas personalidades opostas, tal como o Dr. Jekyll do famoso romance de Robert Louis Stevenson. No conto, o Dr. Jekyll é um médico de fama e fortuna, bem quisto por seus amigos, um bom profissional e anfitrião, um sujeito controlado, prudente e virtuoso. Cansado das amarras morais que a sociedade lhe impõe, o Dr. Jekyll cria uma fórmula que lhe permite transmutar seu corpo e sua mente, deixando livres apenas os aspectos mais vis, hedonistas e egoístas de sua personalidade – essa personalidade chama-se Mr. Hide. Enquanto permanece no estado de transformação, o médico não pode ser identificado, o que lhe permite agir sem consequências. No entanto, depois de algum tempo, a personalidade autodestrutiva de Mr. Hide começa a se tornar dominante, sobrepujando as características boas de Jekyll.

Enquanto alguns acólitos minoritários e mais fanáticos acreditam que o capitão seja um supremo estrategista capaz de jogar xadrez em seis dimensões, eu, como um cético pessimista, dava-me por satisfeito pelo fato de que pelo menos no início do governo o presidente parecia ser capaz de jogar damas em um nível primário. A organização de um governo de técnicos, com políticos apenas em postos estratégicos, com Paulo Guedes e sua excepcional equipe na Economia, Moro na Segurança e Ricardo Velez Rodriguez na Educação, a boa ministra da Agricultura Tereza Cristina e General Heleno no GSI – além das boas surpresas de Tarcísio no Planejamento e Damares no MFDH.

Parecia que caminhávamos no sentido correto. É normal que ocorram divergências e problemas no início de qualquer gestão. É necessário que centenas de profissionais tomem ciência da máquina, organizem equipes, tomem pé das regras de organização interna e procedimentos burocráticos de cada ministério. Alguns, como o professor Velez – por mais competente que seja- foram engolidos pela máquina e por suas dificuldades.

Some-se a isso a herança de dívidas, recessão, criminalidade explosiva, ideologização da máquina, parasitismo crônico e uma mídia em boa parte desonesta e inflexivelmente contrária a qualquer pauta do governo.

Reorganizar o Leviatã é moroso, demanda muito trabalho e requer tempo. Por isso era complicado fazer um julgamento dos erros e acertos do governo e sua gestão, pelo menos no curto prazo. Algumas boas reformas andaram, tais como a Previdência e a lei de liberdade econômica; outras ficaram travadas devido a inabilidade política de Bolsonaro e a uma má vontade do Centrão e da oposição, acostumados aos “mimos” e loteamento de cargos dos governos anteriores. Ótimos tratados de comércio internacional foram assinados, o Brasil reordenou seu eixo de influência e participação na geopolítica mundial.

Os resultados da economia, embora pequenos, foram obtidos com prudência, boa gestão, controle do gasto público, reformas, privatizações, desburocratização. Um bom caminho, curto e tímido, é verdade, mas correto e bom.

Os melhores resultados apresentados foram, sem sombra de dúvida, os de Sergio Moro na Justiça e Segurança Pública. Queda expressiva da criminalidade, apreensões recordes de drogas, prisão de líderes de facção, endurecimento contra o tráfico de pessoas e pornografia infantil, aumento de efetivo e de integração policial.

O capitão, portanto, havia sido capaz de montar essa equipe e teve a virtude de deixá-la trabalhar com liberdade: é a face “Dr. Jekyll” de Bolsonaro, a face prudente e humilde, que sabe que não sabe de tudo e que é capaz de delegar poderes àqueles mais competentes que ele. É também a face do estadista possível que ele poderia representar.

No entanto, essa não é a única faceta apresentada por Jair; há sempre nas sombras seu Mr. Hide. Um sujeito intemperante, agressivo, prepotente, desastroso e principalmente autodestrutivo, dotado de pulsão de morte irresistível. A cada dia que passa, Dr. Jekyll vai dando lugar definitivamente a Mr. Hide.

O Jair Mr. Hide é aquele que indicou Augusto Aras, para a PGR, contra todas as objeções de conservadores e liberais. É aquele que se fecha com seus filhos aloprados e deixa de escutar vozes prudentes como Moro, Guedes e Heleno. É aquele que implode o seu partido quando tem o maior partido da Câmara. É aquele que por sua prepotência e incapacidade de gestão consegue divergir de seu ministro da Saúde e perde-lo no meio de uma pandemia. Esse é aquele que permite que seu novo ministro da Casa Civil apresente um plano dilmista/desenvolvimentista de recuperação econômica, de forma absolutamente contrária a tudo que o Ministério da Economia vinha propondo. Esse é aquele que dá entrevistas desastrosas, que faz pronunciamentos irresponsáveis e obtusos. Esse é o Jair que passa a interferir politicamente na Polícia Federal, primeiramente para proteger seu filho. E que hoje toma a decisão desastrada de demitir Valeixo, e que o faz perder Sergio Moro, o melhor quadro de seu governo (ao lado de Tarcísio e Guedes). Imperdoável.

Bolsonaro vem minando de forma voluntária as forças que o alçaram ao poder. Como uma rainha de copas ensandecida, vem cortando os melhores quadros de seu governo. Só um tolo, ou um louco, não veria que está colocando fogo na própria casa.

Na obra de Louis Stevenson, o bom Dr. Jekyll acaba por ser subjugado por Mr. Hide e, incapaz de voltar à forma original, isolado e sozinho, sem amigos e desesperado, comete suicídio. É isso que Bolsonaro tem feito: tecido lentamente a corda com a qual se enforcará.

Aqueles que ainda detém alguma esperança, torçam para que Dr. Jekyll retome o controle, ou, aguardem, o próximo será Paulo Guedes, e então o maldito projeto positivista e desenvolvimentista dos militares voltará a todo vapor. E teremos não uma década, mas duas décadas perdidas.

*João Paulo Seixas é advogado, mestrando em Direito, pós graduado em Direito Público e Privado pela Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, pós-graduado em Direito Tributário pela IBMEC/SP. Interessado em Direito, Economia, Política, História, Literatura e Mitologia.

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