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“Legalidade”: uma homenagem à democracia flertando com tiranos

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Ossos do ofício, fiz uso de duas horas do meu fim de semana para conferir o mais recente filme sobre o carismático e desastroso ex-governador do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro, Leonel Brizola: Legalidade, dirigido por Zeca Brito. O filme tem a pretensão de registrar a história dos emblemáticos acontecimentos de 1961, quando Brizola, no palácio de Piratini, liderou uma mobilização para defender a posse de João Goulart como presidente após a renúncia de Jânio Quadros, deixando o país por cerca de dez dias na expectativa por uma guerra civil.

Sendo a história contada do ponto de vista do governador gaúcho (interpretado pelo ator Leonardo Machado, que faleceu sem ver a produção completa), era de se esperar que a narrativa exaltaria seu suposto heroísmo e fervor patriótico para resistir à iniciativa dos ministros militares, em especial o marechal Odylio Dennys, que comunicaram ao Parlamento seu desejo de vetar a posse de Jango como presidente por entender que ele representava uma ameaça à segurança nacional – e, por óbvio, também seu cunhado, o próprio Brizola. Nenhum grande problema com isso, na verdade; é positivo que a História seja mesmo contada de diversos lados, por diferentes perspectivas.

Em meu livro Lacerda: A Virtude da Polêmica, comento brevemente esse episódio, opinando que de fato carecia de boa lógica os ministros militares terem tolerado Jango na posição de vice-presidente, tanto de Juscelino Kubitschek quanto de Jânio, sabendo que o cargo inclui a virtualidade de assumir a presidência na ausência do presidente, e acharem por bem dar um golpe para impedir a posse apenas quando a situação se apresenta. No entanto, por outro lado, penso que os fatos comprovaram que Jango e Brizola eram mesmo uma ameaça à segurança nacional e o filme, ao reproduzir as relações de Brizola com os comunistas, em tempos de Revolução Cubana e Guerra Fria, acaba, sem querer, demonstrando isso aos mais atentos.

Tanto Jango quanto Brizola, este muito mais radical e intransigente que o primeiro, mas capaz de cavalgá-lo na fase final de seu governo tresloucado, eram filhotes do trabalhismo varguista, a ala mais à esquerda da versão brasileira do Justicialismo argentino, do populismo latino-americano, um sincretismo caudilhista de todas as doutrinas coletivistas e socializantes do século XX. Entretendo relações com as correntes de extrema esquerda, cada vez mais unidas na reta final de 1964, eram tudo, exceto grandes líderes democratas. É risível que os herdeiros do maior ditador que o Brasil já conheceu sejam tidos por nobres e grandes defensores da “legalidade” – paradoxo tupiniquim que poderíamos chamar de “paradoxo varguista”, pronto a taxar de tirânicos os adversários do ditador e não os seus defensores e herdeiros. Poucos anos depois dos acontecimentos de 1961, o grande herói legalista Brizola estava no Comício da Central e nas rádios pregando a formação de Grupos dos Onze para a sublevação social e a dissolução do Congresso para a formação de uma Assembleia Constituinte sindicalista (!).

A intenção do filme é, portanto, fazer uma homenagem à democracia e ao legalismo através de um Brizola heroico que, na verdade, é uma farsa. Não me incomodaria, porém, se fosse apenas isso. Repito: contar a História pela lente brizolista é válido e faz parte, assim como tomei para mim a tarefa de olhar o Brasil e a política nacional pela lente lacerdista em meu modesto trabalho editorial. O problema é que, se o filme se ativesse a isso, provavelmente teria uma duração muito menor.

Em vez disso, o cineasta preferiu encher linguiça alternando três tramas na película: a trama de Brizola diretamente, a única que não é inteiramente ficcional; uma trama folhetinesca sobre um romance entre um antropólogo militante comunista (interpretado por Fernando Alves Pinto) e uma agente da CIA disfarçada de jornalista (interpretada por Cleo Pires), que se conhecem durante o discurso do guerrilheiro Che Guevara (!!) na reunião do Conselho Interamericano Econômico e Social em Punta Del Este (onde Brizola também marca presença); e, finalmente, uma trama – insuportável – com a filha do casal, interpretada por Letícia Sabatella, pesquisando sobre a mãe nos arquivos da ditadura militar e depondo à Comissão da Verdade (tinha que ser!), indo inclusive ao encontro de um Brizola já idoso em 2004.

Foi a coisa mais panfletária e irritante que Zeca Brito poderia ter feito. As tramas acrescentadas não servem para nada além de enaltecer a guerrilha comunista! O filme ainda tem a pachorra de inserir um maligno representante da CIA, dando ordens através de chantagem à personagem de Cleo Pires, como um típico vilão de quadrinhos e tramas de espionagem, inclusive insinuando seu envolvimento na famigerada Operação Mosquito, que teria sido uma tentativa de assassinar Jango em pleno voo antes que chegasse ao Brasil.

A KGB ou a STB, naturalmente, nem dão as caras, mas os comunistas são retratados como idealistas de nobre coração, dispostos a ir às últimas consequências pela beleza da causa em que acreditam. Há uma cena em que Che Guevara fala sobre as dificuldades da guerrilha e todos o escutam admirados. O que isso tem a ver com a “Legalidade” de 1961, eu não sei, mas certamente vai fazer chorarem os espectadores esquerdistas que ficam com a voz embargada ao ouvir falar de socialistas de farda.

Tudo isso vem coroado com uns sete ou oito minutos de sexo gratuito com Cleo Pires, como não poderia deixar de ser – é como costuma fazer o cinema nacional. O problema central do filme, porém, é mesmo o de que ele tem a alma e a essência dos personagens que homenageia: é tão paradoxal e contraditório quanto eles. Louva o heroísmo da luta para defender a Constituição e prega contra os “golpistas”, mas romantiza os adeptos de uma doutrina totalitária, que pegaram em armas para ajudar ditadores maquiavélicos a alcançar vidas nababescas enquanto mergulham o grosso da população na miséria e na fome.

Legalidade poderia ser apenas um interessante registro histórico, mas, lamentavelmente, preferiu ser um monumento à incoerência e ao absurdo, mais um exemplo de como é preciso ainda produzir alternativas na cena cultural brasileira.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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