Uma elite togada avessa à segurança pública
Durante a última corrida presidencial, o eleitorado norte-americano definiu o próximo ocupante da Casa Branca, mas não restringiu sua atividade cívica à mera escolha de um nome. Na maior democracia liberal do mundo, os cidadãos dispuseram de voz para deliberar sobre projetos legislativos, assim como para eleger e até destituir figuras atuantes na administração da justiça local.
A robustez da participação popular na tomada de decisões sobre temas relevantes à rotina da coletividade foi bem ilustrada por certas escolhas eleitorais feitas por uma maioria esmagadora de votantes na Califórnia. Após dez anos amargos de tolerância à criminalidade, após a aprovação popular da chamada Medida 47, responsável por uma onda inédita de autênticos saques “permitidos” a lojas – desde que os bens furtados não ultrapassassem certo valor -, os californianos optaram por uma guinada rumo ao endurecimento das políticas estaduais sobre segurança pública. A prova mais cabal dessa reviravolta na vontade popular consistiu na vitória da Medida 36, recheada de punições bem mais severas a crimes como furto e narcotráfico, e contendo previsão de tratamento compulsório a condenados adictos. Igualmente consideráveis foram os votos pela remoção, por recall, da advogada distrital do condado de Alameda, Pamela Price, e pela derrota da candidatura à reeleição do procurador distrital de Los Angeles, George Gáscon, ambos percebidos pelo eleitorado como adeptos do viés ideológico progressista. Arrependidos da própria chancela à permissividade penal, os eleitores da Califórnia retornaram às urnas para darem um basta aos furtos no varejo, à proliferação da população de rua e às overdoses por narcóticos pesados. Foram livres e empoderados o bastante para fazê-lo.
Abaixo da linha do Equador, na terra da Constituição dita “cidadã”, mas desdenhosa dos efetivos anseios da população, incontáveis seriam os entraves à aprovação e/ou à implementação de políticas como as contempladas pela Medida 36. O primeiro deles decorreria da nossa estrutura federativa perversa, concentradora de poderes nas mãos dos caciques de Brasília para a deliberação dos temas cruciais para o país (incluindo os dispositivos sobre direito penal) e impeditivas da escolha, por entes estaduais, de normas próprias sobre definições de condutas delitivas e sobre as sanções a elas aplicáveis. O segundo residiria no papel quase decorativo do eleitorado no debate público, restrito ao comparecimento às urnas, a cada biênio, tão somente para assinalar um nome em meio aos candidatos apresentados pelos partidos políticos. O último, mas não menos importante, consistiria na intervenção apriorística de nossos supremos juízes, que se mostrariam prontos a sustentarem, tanto nos bastidores quanto sob os holofotes midiáticos, uma pretensa inconstitucionalidade da medida, por supostamente tendente à abolição de garantias individuais e, nessa condição, atentatória às cláusulas pétreas da lei maior. Em se tratando de projeto destinado a conferir maior efetividade à aplicação da lei penal, nossos togados não poupariam esforços em suas objeções.
Acompanhamos o recente “julgamento da maconha”, onde aquela que deveria ser a nossa corte constitucional “driblou” a Constituição para assumir prerrogativas legislativas e, assim, descriminalizar o chamado consumo próprio da droga. Contudo, a atuação do Judiciário na área da segurança pública perpassa, em muito, a estipulação do teto de 40 gramas de cannabis por usuário brasileiro.
No âmbito do STF, não são poucas as decisões monocráticas, mediante as quais togados vêm reduzindo penas ou anulando provas contra traficantes flagrados com quantidades significativas de narcóticos. A título de exemplo dessa nova corrente jurisprudencial, vale recordar um recente julgado de autoria do ministro Edson Fachin, no qual o togado reduziu parcela considerável da pena imposta a um condenado flagrado com 3,6 quilos de maconha. Para tanto, Fachin lançou mão da figura do tráfico privilegiado, redutor de pena previsto na Lei de Drogas, mas cabível tão somente nos casos em que o envolvido seja primário, exiba bons antecedentes e não pertença a facções criminosas. Buscando defender o indefensável, ou seja, o fato de que alguém encontrado com elevada quantidade de drogas não possuísse elos com organizações delitivas, Fachin não hesitou em afirmar que “a quantidade de drogas não poderia, automaticamente, proporcionar o entendimento de que a paciente (ré) faria do tráfico seu meio de vida ou integraria uma organização criminosa.” Entendimento, no mínimo, desconectado da realidade fática, e porteira aberta à tolerância para com ilícitos penais de enorme gravidade.
Já o STJ tem se notabilizado por uma abundância de canetadas marcadas por artifícios retóricos benéficos a envolvidos no narcotráfico. A jurisprudência consolidada pela corte, segundo a qual a “quantidade de drogas não afasta a minorante do tráfico privilegiado”, tem levado a reduções drásticas no período de encarceramento de traficantes, independentemente da quantidade de narcóticos flagrados em sua posse. Graças a essa postura, portadores de volumes exorbitantes de maconha, cocaína, crack e até ecstasy têm sido devolvidos bem mais cedo ao convívio social; e, possivelmente, também às suas atividades no mercado paralelo.
Na mesma toada, integrantes da corte superior vêm anulando provas robustas obtidas por agentes policiais contra traficantes, ainda que, para tanto, tenham de empregar as mais criativas formas de retorsão da linguagem. Nos casos em que os policiais se dirijam a verdadeiros paióis de armas ilegais e depósitos de entorpecentes sem mandado judicial, os togados superiores se mostram sempre “inclinados” a anular as diligências sob as alegações de que meras suspeitas não seriam justificativas a “violações de domicílio” e/ou de que os meliantes não teriam autorizado a entrada dos agentes em seus “lares”. Em situações em que os policiais disponham de mandados, nossos “superiores” também apresentam prontidão na derrubada das provas, mediante argumentos nada convincentes de que as respectivas ordens judiciais teriam sido expedidas a partir de fundamentação “pobre e deficiente”.
Dias atrás, em assunto que chocou até mesmo a apassivada opinião pública brasileira, o ministro Sebastião Reis Jr., do STJ, colocou em liberdade um traficante que transportava 832 quilos de cocaína do Paraná a Diadema, carga ilícita que deveria render um valor aproximado de R$ 50 milhões ao “mercado” do narcotráfico. Para justificar a soltura do caminhoneiro-traficante, Reis Jr. sustentou que “a decisão deve ser balizada pela análise das particularidades do caso, buscando-se a proporcionalidade e a adequação da medida cautelar à situação específica do custodiado, em consonância com os princípios da dignidade da pessoa humana e do devido processo legal.” Contudo, o togado foi incapaz de indicar quais teriam sido as tão “inquietantes” violações à dignidade humana e ao devido processo legal, já que o envolvido foi encaminhado à audiência de custódia perante juíza competente (magistrada de primeira instância), onde dispôs das garantias ao contraditório e à ampla defesa, sem ter sido submetido a qualquer espécie de coação, fosse ela física ou psicológica.
Em tema tão sensível para um país como o nosso, que coleciona índices de violência comparáveis aos observados em zonas de conflito deflagrado, togados de cúpula vêm desempenhando um papel nada desprezível na agudização da nossa insegurança pública. Por tratar-se de decisões proferidas pela elite judiciária, sob a chancela do tribunal de cúpula, não há sequer instâncias às quais recorrer. Outrossim, em nosso atual cenário de apagão institucional, nem o CNJ averigua as razões para canetadas um tanto “anômalas” nem os senadores se mostram interessados na apuração de crimes de responsabilidade por parte de ministros ensejadores de toda uma onda de permissividade criminal. Muito menos se tem notícia de iniciativas da PGR em torno da investigação de eventuais delitos de autoria de figurões togados.
Quanto a nós, pagadores de impostos em um sistema que não se “digna” a nos ouvir sobre assuntos cruciais à nossa rotina, nada podemos fazer de muito eficaz. Não votamos em plebiscitos e referendos, pois esses mecanismos de consulta popular, embora citados na Constituição, teriam de ser convocados pelo congresso (na forma do artigo 3º da Lei 9709/98), e não o são. Não opinamos sobre os perfis de profissionais a serem incorporados ao judiciário, pois, no Brasil, o ingresso na magistratura é condicionado apenas à aprovação em concurso público (em primeira instância) e, nas esferas superiores, a formas de indicação política, tais como o quinto constitucional (nos tribunais estaduais e regionais), o sexto constitucional (no STJ) e a nomeação presidencial, sujeita à sabatina no senado (STF). Tampouco podemos destituir mandatários eleitos e, muito menos, procuradores e/ou juízes, pois, entre nós, inexiste o instituto do recall.
No momento, além de tentar resistir ao “faroeste” protagonizado por criminosos soltos pelo aparato togado, nos resta insistir na premência de uma ampla reforma constitucional. Somente modificações profundas na atual estrutura tacanha nos permitirão passar da mera condição de indivíduos sobrecarregados por tributos à de cidadãos providos de voz – inclusive, e sobretudo, de voz “audível” o bastante para exigir de nossos mandatários a repressão ao império da força das gangues e a restauração do império da lei.