Responsabilidade demais cansa: o Estado agradece
O voto do Ministro Luís Roberto Barroso no Recurso Extraordinário 1.380.216, que busca redefinir a responsabilidade civil do Estado em casos de omissão, suscita um debate importante sobre os limites do poder estatal e a proteção dos direitos dos cidadãos. Ao afirmar que a responsabilidade do Estado por omissões é subjetiva e exige comprovação de culpa, Barroso contrariou uma visão consolidada na jurisprudência brasileira, abrindo espaço para uma crítica que se alinha aos princípios do public meaning originalism, da presunção de liberdade e da análise econômica do direito. Este posicionamento não apenas fere o texto da Constituição, mas também enfraquece a proteção do cidadão contra um Estado que, muitas vezes, se mostra negligente ou ineficiente.
Barroso não apenas diverge da jurisprudência consolidada — ele se orgulha disso. Assume, com franqueza desarmante, que sustenta uma tese “antiga” e “contrária à doutrina dominante”, como se o papel do juiz fosse confrontar o consenso jurídico com a própria biografia. No mundo jurídico de Barroso, tradição doutrinária e texto constitucional perdem para o “meu ponto de vista antigo”.
O artigo 37, § 6º, da Constituição Federal, ao prever a responsabilidade objetiva do Estado, não faz distinção entre ações ou omissões, apenas exige a comprovação do dano e do nexo causal com a atuação do agente público. A adoção desta teoria transfere o debate sobre culpa ou dolo para a ação regressiva a ser intentada pelo Estado contra o agente público, após a condenação estatal na ação indenizatória. Foi o que aconteceu no Brasil após a Constituição Federal de 1946. Afasta a necessidade de comprovação de culpa ou dolo do agente público e fundamenta o dever de indenizar na noção de risco administrativo. O objetivo desse dispositivo é claro: assegurar a reparação para o cidadão independentemente da culpa, especialmente após um período de autoritarismo em que o Estado frequentemente abusava de seu poder sem a devida responsabilidade. A posição de Barroso, ao sugerir que a responsabilidade objetiva do Estado só se aplicaria a condutas comissivas, distorce o texto constitucional, ignorando o seu significado público original. Em sua defesa, ele argumenta que a responsabilidade objetiva em omissões tornaria o Estado um “segurador universal”, sobrecarregando o erário público. No entanto, tal visão desconsidera a função protetiva da Constituição, que é precisamente conter os abusos do Estado e garantir que ele atue em favor da liberdade e da dignidade dos indivíduos.
Segundo o public meaning originalism, a interpretação constitucional deve respeitar o sentido das palavras no momento da promulgação da Constituição. O artigo 37, § 6º, como foi redigido em 1988, garante que o Estado seja responsabilizado pelos danos causados, independentemente de culpa, e isso deve incluir as omissões. Ignorar essa premissa é, no mínimo, um afastamento da fidelidade ao texto, uma falha interpretativa que ameaça a segurança jurídica e a estabilidade das normas. No mundo jurídico de Barroso, a Constituição é um livro interativo: cada ministro colore como quiser, desde que fique bonito para a Corte. Ao se apropriar de uma leitura que não encontra respaldo no texto claro da Constituição, o Judiciário deixa de exercer sua função de executor da norma para assumir, indevidamente, o papel de seu autor.
Em sua tentativa de justificar a tese da responsabilidade subjetiva como regra, Barroso recorre a exemplos que, ironicamente, apenas reforçam a lógica da responsabilidade objetiva: morte por falha hospitalar e acidente causado por viatura oficial. Em ambos os casos, não se exige a comprovação da culpa individual do agente — exige-se apenas o nexo com o serviço público. Ou seja, os exemplos de Barroso servem melhor à doutrina que ele tenta contrariar do que à sua própria tese. E quando afirma que “as pessoas só respondem por culpa, por ato ilícito”, confunde conceitos para dissolver responsabilidades. A responsabilidade objetiva não elimina o dano nem a ilicitude — apenas dispensa a prova de culpa. A confusão é útil ao argumento, mas nociva ao Direito.
A exigência de comprovação de culpa imposta por Barroso também enfraquece a presunção de liberdade. Em termos simples, o Estado deve ser responsabilizado quando falha em proteger direitos fundamentais, como a vida, e a responsabilidade objetiva fortalece essa proteção ao eliminar a necessidade de provar a culpa ou a negligência estatal. É verdade que, mesmo em modelos subjetivos, pode haver presunções de culpa ou inversões do ônus da prova — mas justamente por reconhecer que a estrutura de poder favorece o Estado. A Constituição resolveu esse desequilíbrio impondo a responsabilidade objetiva como regra. Ao sustentar que essa regra é, na verdade, exceção, Barroso não distingue entre comissões e omissões, nem invoca limitações constitucionais específicas: apenas declara, de forma quase programática, que a responsabilidade do Estado deve ser subjetiva. Sua proposta, portanto, não é apenas restritiva — é revisionista. O resultado é uma inversão da lógica constitucional: o cidadão vira suspeito, e o Estado, presumidamente inocente.
A adoção de uma responsabilidade subjetiva como regra geral certamente dificultaria o acesso dos cidadãos à reparação de danos causados pela atuação estatal, exigindo a comprovação de culpa ou dolo do agente público. Isso representaria um retrocesso na proteção dos direitos fundamentais e na efetividade do controle sobre a atuação do Estado.
A tese de Barroso, ao propor a responsabilidade subjetiva para omissões, também contraria o princípio do Judicial Engagement, defendido por Randy Barnett como uma abordagem que exige dos tribunais um escrutínio rigoroso das ações e omissões estatais, presumindo a proteção dos direitos individuais. Em vez de deferir ao governo, como faz Barroso ao impor à vítima o ônus de provar a culpa estatal, o Judicial Engagement demanda que o Estado justifique suas falhas, especialmente quando violam direitos fundamentais como a vida ou a segurança. A responsabilidade objetiva do artigo 37, § 6º, da Constituição Federal, é a expressão desse compromisso, garantindo a accountability do Estado sem barreiras probatórias ao cidadão. Ao adotar a responsabilidade subjetiva, Barroso não apenas desrespeita o texto constitucional, mas também frustra o papel dos tribunais em uma Constituição republicana, que é conter o poder estatal em favor da liberdade.
Essa mudança também tem um impacto econômico significativo. A insegurança jurídica gerada pela incerteza sobre a responsabilidade do Estado aumenta os custos para as vítimas, que agora enfrentam a dificuldade de provar a culpa, além de sobrecarregar o sistema judiciário com litígios mais complexos e demorados. A eficiência institucional coincide com a liberdade: ambos exigem previsibilidade — e a decisão de Barroso cria um cenário de instabilidade que contradiz esse princípio. O sistema passa a ser menos confiável e mais oneroso, o que mina a confiança nas instituições e favorece a litigiosidade estratégica. Regras claras reduzem o custo da deliberação judicial e da conformidade individual, como bem demonstram Epstein e Mankiw.
Mas há algo ainda mais grave: a lógica dos incentivos. O Estado, ao deter o monopólio da força, precisa estar submetido a mecanismos que o contenham — e a responsabilidade objetiva é um desses freios. Ela inverte o vetor da desconfiança e o coloca sobre quem exerce o poder, não sobre quem sofre suas consequências. Como advertia Lord Acton, “o poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente”. Quando se exige da vítima o ônus de provar a culpa estatal, o que se oferece, na prática, é um salvo-conduto para a inação. E onde não há consequências, vicejam os abusos. A proposta subjetiva, nesse sentido, não é prudência: é licença. É um retrocesso institucional disfarçado de racionalidade fiscal, que reduz incentivos à boa administração e premia a omissão com imunidade jurídica.
A tese do ministro também levanta questões sobre a separação de poderes, um dos alicerces da nossa Constituição. Ao criar uma distinção entre omissões e comissões, Barroso se apropria de um poder interpretativo que, em última instância, seria tarefa do Legislativo. Essa postura reflete um quadro de hipertrofia judicial, onde o Judiciário não se limita a aplicar a Constituição, mas passa a reescrevê-la conforme suas próprias convicções. Essa distorção compromete a legitimidade democrática do sistema jurídico e põe em risco o equilíbrio entre os poderes — algo que, frise-se, deve ser mantido a todo custo.
Em suma, a interpretação de Barroso sobre a responsabilidade subjetiva do Estado por omissões é uma proposta que fere a Constituição, enfraquece a proteção dos direitos individuais, ignora os incentivos corretos ao exercício do poder público e aumenta a insegurança jurídica. Sua crítica ao “segurador universal” parece menos uma defesa da racionalidade orçamentária e mais um gesto de leniência com a omissão institucional. O sistema jurídico não deve ser moldado pela conveniência do Estado, mas pela proteção de vida, liberdade e propriedade. Sem limite, não há Direito. E quando a Constituição é reinterpretada à imagem e semelhança do julgador, o cidadão deixa de ser protegido para se tornar apenas tolerado. A posição de Barroso não corrige o sistema — apenas autoriza o colapso sob um verniz de jurisprudência.
Leonardo Corrêa — Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, Sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, Fundador e Presidente da Lexum.
Christianne Stroppa — Professora Doutora e Mestre na PUC-SP e membro da Lexum.