Quando a toga autoriza a devassa

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A recente decisão do ministro da Suprema Corte brasileira determinando que um segurança examinasse o telefone celular de um advogado durante uma audiência, sob a justificativa de verificar se o ato estava sendo gravado, suscita grave preocupação.

Não se trata apenas de um incidente pontual, estamos diante de um ato que desafia frontalmente princípios estruturantes do Estado Democrático de Direito, violando prerrogativas profissionais da advocacia, direitos fundamentais à intimidade e à privacidade, bem como garantias processuais historicamente conquistadas contra o arbítrio.

O artigo 7º, II e III, da Lei 8.906/1994 (Estatuto da Advocacia), assegura a inviolabilidade dos instrumentos de trabalho do advogado, de suas comunicações e de seus arquivos, ressalvadas apenas hipóteses excepcionais com ordem judicial devidamente fundamentada.

O episódio é simples de descrever e grave de compreender: em plena audiência, o ministro do Supremo Tribunal Federal determinou que um segurança “checasse” o telefone de um advogado para verificar se ele gravava o ato. A cena é didática — não de civilidade, mas de um Estado que, por instantes, esqueceu-se de que é democrático e de direito. E quando o esquecimento parte do topo da jurisdição, o recado que ecoa nas instâncias inferiores é perigoso: vale tudo.

Tal conduta pode, inclusive, configurar hipótese prevista no artigo 30 da Lei 13.869/2019 (Lei de Abuso de Autoridade), que tipifica como crime “invadir ou acessar dispositivo informático alheio, violando a intimidade ou a vida privada do investigado, acusado, vítima ou testemunha”.

A gravação de audiência por quem dela participa é lícita. Isso decorre da publicidade dos atos (artigo 93, IX, da Constituição da República Federativa do Brasil), da ampla defesa e do contraditório (artigo 5º, LV, CRFB), bem como a interpretação da jurisprudência consolidada dos Tribunais Superiores sobre a licitude de gravações feitas por um dos interlocutores.

O Judiciário grava; as partes podem gravar. Ponto.

Tratar a gravação como ilícito em potência — a ponto de mandar alguém vasculhar um celular — é censura prévia e inversão do ônus argumentativo: presume-se fraude onde há exercício regular de direito.

Além disso, tal ação pode implicar violação ao artigo 154-A do Código Penal, que pune a invasão de dispositivo informático com o fim de obter, adulterar ou destruir dados sem autorização do titular, e contrariar princípios da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/2018), que exige base legal, finalidade específica e necessidade para o tratamento de dados pessoais.

Precedentes emanados do topo têm efeito pedagógico. O que hoje é um gesto “isolado” vira prática replicável em audiências pelo país. Segurança jurídica se constrói com regras claras e previsíveis, não com caprichos performáticos em sala de audiência.

E o pior: o advogado que nem mesmo gravava a audiência, acabou se submetendo ao absurdo abuso franqueando a senha do seu aparelho. Certamente para não escalar a situação.

A mensagem correta seria a oposta: respeitem-se as prerrogativas, a publicidade e a defesa; controvérsias sobre gravação resolvem-se por meios processuais, não por revista de celular. É justamente para evitar arbitrariedades que a Lei 13.869/2019 pune autoridades que determinam medidas invasivas sem amparo legal e sem estrita observância do devido processo legal.

Quando a autoridade humilha direitos para “manter a ordem”, ela humilha a própria ordem constitucional. Revistar o celular de um advogado em audiência não é zelo; é abuso. Não é cuidado; é censura. Não é garantia de regularidade; é precedente de exceção.

Se a Suprema Corte é a guardiã da Constituição, a primeira guarda que se impõe é contra nossos próprios arroubos. É daí que começa — ou desaba — um Estado de Direito.

*Antonio Carlos Fonseca – Advogado, Sócio do Miranda Fonseca Advocacia, membro da Lexum.

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