O tribunal político e sua omissão na reforma tributária

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É curioso preencher estas linhas com críticas alheias às estridentes condutas ativas de togados, que, você bem sabe, têm se especializado na imposição de mordaça a línguas indesejáveis, no exercício de uma legislatura oficiosa e carente de lastro no voto popular, na abertura de inquéritos intermináveis para a investigação de pseudo-crimes, e até em prisões efetuadas sem o devido processo legal. Contudo, na semana passada, o pecado – capital, diga-se de passagem! – foi cometido por meio de um “não agir” em matéria sobre a qual nossa cúpula judiciária jamais poderia ter se omitido.

Às vésperas da votação açodada da reforma tributária, o deputado Luiz Philippe de Orléans (PL/SP) havia ingressado com um mandado de segurança junto ao STF, pleiteando uma decisão liminar que impedisse a Câmara dos Deputados de pautar a matéria, sem a observância aos ritos tidos como indispensáveis para tanto[1]. E, antes de torcer o nariz diante do que possa considerar meras firulas em meio ao nosso “manicômio tributário” de décadas, tenha em mente, caro leitor, que a espinha dorsal de todo o nosso sistema de tributação reside na Constituição Federal, e que dispositivos previstos na lei maior de um país não podem ser modificados de um dia para o outro, sob pena de criação de níveis de incerteza intoleráveis para qualquer sociedade organizada. Não à toa, o Regimento Interno da Câmara, com amparo na própria CF, prevê normas específicas para a tramitação de propostas de emendas constitucionais (PECs), que têm, grosso modo, de ser submetidas ao crivo da comissão de constituição e justiça (CCJ) e de uma comissão especial, para somente então poderem ser deliberadas no plenário da casa.

No entanto, nenhuma dessas exigências legais foi cumprida, e, após a passagem “relâmpago” por um simples grupo de trabalho, o projeto foi encaminhado para votação em plenário, em uma pressa desrespeitosa a um dos princípios fundamentais do próprio Estado de Direito, a saber, a necessidade de análise cuidadosa, transparente e criteriosa daquele que poderia vir a ser mais um remendo à nossa Constituição. Assim, não seria de se esperar que, diante do risco concreto de violação ao disposto na CF, nossos supremos togados, na qualidade de guardiães desta, se debruçassem na análise dos argumentos do deputado, ainda que para rechaçá-los? O que se viu, porém, foi o mais aterrador silêncio, em uma escancarada negligência não apenas ao pedido de um parlamentar, mas também, e sobretudo, às normas sobre o curso do processo legislativo em si.

Ora, como pode um corpo técnico omitir-se em seu dever funcional e contemplar, impassível, a possibilidade de rasgão na lei maior por cuja aplicação deveria zelar? Pode, desde que abandone de vez o tecnicismo para se metamorfosear em poder político! Aliás, foi esta a declaração do ministro Barroso, em evento realizado após a aprovação da reforma tributária na Câmara, e durante o qual o togado explicitou que, após um “processo de ascensão”, o judiciário teria deixado de ser um “departamento técnico especializado” para se tornar um “poder político”[2].

Imagino que poucas afirmações prestadas nos últimos anos tenham sido tão sinceras quanto a do supremo magistrado e futuro presidente da nossa corte maior. De fato, ao longo de sua metamorfose gradual, nosso judiciário, sobretudo em suas instâncias superiores, vem abandonando, um a um, todos os aspectos inerentes à jurisdição, ou seja, à atribuição de “dizer o Direito”, para incorporar a linguagem, as ferramentas e até o modus operandi das relações de poder.

A característica mais óbvia diz respeito à configuração dos tribunais como árbitros imparciais em conflitos entre partes com as quais os juízes não mantenham vínculos de apego ou desafeto. Traço já bastante esmaecido na conduta de magistrados que, muitas vezes, exibem elos próximos com seus jurisdicionados e até chegam a participar de convescotes na intimidade destes. No país onde a nomeação, ao STF, do advogado amigo do assentado no Planalto foi um previsível “rito de passagem”, a imparcialidade togada caminha a passos largos para tornar-se uma ficção.

Outro feitio do judiciário consiste em sua atribuição de se pronunciar tão somente sobre litígios específicos e jamais sobre casos gerais. Aí se insere a impossibilidade de legislar, ou seja, de dispor sobre assuntos futuros e genéricos, vedação esta que, em seu processo de metamorfose, as “lagartas” de toga têm desconsiderado sem hesitação, como vimos em casos icônicos como o da criação, pelo STF, de uma excludente para a ilicitude do crime de aborto (fetos anencéfalos).

Um terceiro aspecto inerente a qualquer jurisdição reside na inércia do órgão julgador, que somente pode agir mediante provocação das partes interessadas e/ou do Ministério Público. Outro bastião que já tombou há tempos, em meio à multiplicidade de casos instaurados de ofício, e sempre sob a nobre escusa de pretensa defesa da ordem democrática.

Em substituição aos princípios basilares de qualquer atuação judicial, nossas “lagartas” togadas, já quase transformadas em borboletas, passaram a adotar valores próprios à política, como, por exemplo, a lógica do trato com figuras por elas enxergadas como aliadas e opositoras, favorecendo aquelas e prejudicando estas em juízos que, de tão apriorísticos, chegam a ser previsíveis. A título de exemplos, todos debatidos aqui, podemos citar o recente caso de uma decisão benéfica a Artur Lira[3], desprovida de argumentos jurídicos plausíveis, e, em sentido oposto, a cassação do deputado Deltan Dallagnol[4] e a suspensão dos direitos políticos de Bolsonaro[5], igualmente desprovidas de fundamentos minimamente críveis.

Ainda no terreno das atividades políticas ostensivas, não se poderia silenciar sobre a recente iniciativa do TSE de veicular uma propaganda, em rede nacional, sob o slogan “Na hora da verdade, a democracia fala mais alto”. Tudo com direito a um rap composto especialmente para a cena protagonizada por personagens cujo figurino próprio parece verdadeira exaltação à democracia[6]. Vista de longe, sem o logo do tribunal, alguém ousaria duvidar de que se tratasse de material de campanha de algum partido político?

No clássico Da Democracia na América, A. de Tocqueville, após discorrer sobre os traços fundamentais à atividade judicante, já aludidos acima, constata que o próprio Direito impõe ao juiz, no âmbito da resolução de litígios, o dever de tomar por parâmetro a Constituição, por tratar-se do estatuto mais elevado na hierarquia das normas. Desse modo, ainda que cingido às suas atribuições judiciárias, o juiz americano, mesmo “contra sua vontade”, não pode deixar, em certa medida, de fazer política, pois a boa administração da justiça o conduz a controlar a atuação dos legisladores e a fazer prevalecer a lei maior sobre outras normas que a contrariem.

Contudo, ao abordar a atividade do magistrado no que designamos hoje como controle da constitucionalidade da legislação, Tocqueville observa que “o magistrado não julga a lei senão por ter de julgar um processo, que não pode deixar de decidir. A questão política que ele deve solucionar se prende ao interesse dos litigantes, e o magistrado não poderia recusar-se a enfrentá-la sem incorrer em uma negação da justiça. É no exercício dos restritos deveres impostos à profissão do magistrado que ele desempenha sua cidadania[7].”

Parece gritante a diferença entre os juízes aludidos por Tocqueville, presos ao recato de seu ofício de decidir casos específicos, e nossos rumorosos togados nacionais, ávidos por ditarem as ações e até os pensamentos de toda uma coletividade!

Em países mais avançados, há uma nítida oposição entre a discrição no controle de constitucionalidade implementado por togados sem votos, e a soberania legislativa exercida por mandatários eleitos. Enquanto os primeiros atuam mediante as normas do Direito, premidos pela necessidade de uma resolução rápida de conflitos à luz de parâmetros de objetividade, os segundos são movidos pelos símbolos da política, em terreno fértil para a subjetividade e a autopromoção.

Entre nós, perdemos a capacidade de apreciação dessas diferenças tão acentuadas e, em boa medida, até mesmo a reatividade contra a promiscuidade entre poderes que se recusam a ater-se aos seus deveres institucionais. Uma realidade caótica e rota, que causaria calafrios a um pensador do naipe de Tocqueville.

[1] https://www.folhapolitica.org/2023/07/deputado-luiz-philippe-entra-com.html?m=1

[2] https://revistaoeste.com/politica/barroso-diz-que-poder-judiciario-passou-a-ser-politico/

[3] https://www.institutoliberal.org.br/blog/justica/os-togados-voluveis-e-sua-lira-magica/

[4] https://www.institutoliberal.org.br/blog/justica/a-republica-de-curitiba-bombardeada-pelo-exercito-togado/

[5] https://www.institutoliberal.org.br/blog/justica/entre-cacadas-e-mordacas-a-agonia-das-liberdades/

[6] https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2023/07/10/interna_politica,1518548/tse-usa-rap-para-lancar-companha-sobre-democracia-e-liberdade-de-expressao.shtml

[7] Tradução livre de minha autoria

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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