O texto que protege você
Vivemos em um tempo curioso. As leis continuam escritas, os códigos continuam publicados, a Constituição permanece em vigor. Mas, ainda assim, muita gente sente que o Direito escorregou por entre os dedos. Como se a clareza das palavras tivesse sido vencida pela esperteza das interpretações. Como se, de um dia para o outro, juízes pudessem transformar o “não pode” em “pode sim”, e o “pode” em “pode, mas não agora”. E quando isso acontece, algo de precioso se rompe: a confiança.
Essa confiança não nasce da autoridade dos tribunais, nem da reputação de quem julga. Ela nasce do texto. É ele quem permite que você, cidadão comum, saiba o que esperar do Estado. Que você organize sua vida, seus negócios, seus afetos e seus medos sabendo que existe um limite — e que esse limite vale também para quem tem o poder de julgar. Quando esse texto é dobrado ao gosto do intérprete, o que se rompe não é apenas a regra. É o pacto.
Por isso, é preciso dizer, com todas as letras: o texto jurídico é mais do que um conjunto de palavras. Ele é uma arquitetura de proteção. Cada vírgula que está na Constituição foi colocada ali para conter o poder. Cada palavra que se escolheu tem peso, tem história, tem consequência. E quando se permite que essas palavras sejam reinterpretadas conforme o espírito do tempo ou a intenção moral do julgador, abrimos caminho para que o Direito deixe de ser uma defesa da liberdade e passe a ser uma ferramenta de dominação. Basta ver como a cláusula da função social da propriedade — legítima e textual — tem sido deformada por interpretações que a transformam em autorização implícita para supressão de garantias fundamentais. A função social não revoga o direito de propriedade: ela o estrutura. O que a Constituição afirma com equilíbrio, o intérprete deformador converte em licença para expropriação sem processo, sem texto, sem limite.
A minha proposta é devolver à Constituição sua função original: ser um limite. Ser um escudo. Ser uma cerca moral e institucional em torno do cidadão. Isso só é possível quando o intérprete assume a humildade de reconhecer que não está acima do texto. Que sua tarefa não é reinventar o Direito, mas compreendê-lo como foi promulgado. Isso é o que defendo com o nome técnico de public meaning originalism — um modo de interpretar a Constituição a partir do significado público das palavras no momento em que as leis foram aprovadas.
Essa proposta não vem sozinha. Ela caminha ao lado da presunção de liberdade. Porque em um país livre, é o Estado que deve justificar cada poder que exerce — e não o cidadão que deve implorar por permissão para existir. Onde a Constituição não autoriza, o Estado se cala. Onde a liberdade não é limitada expressamente, ela é garantida. Esse princípio tão simples tem sido esquecido por muitos julgadores, que preferem buscar “valores” ou “finalidades” imaginadas, em vez de se prenderem ao que está dito, preto no branco, no texto constitucional.
Mas eu sei: há quem diga que o texto é insuficiente. Que a letra mata e o espírito vivifica. Que o juiz precisa adaptar a Constituição à nova realidade. E é aí que mora o perigo. Quando um juiz se sente autorizado a ‘atualizar’ o texto conforme sua visão de mundo, cada cidadão perde algo real — o limite que o protege hoje pode ser o mesmo que faltará amanhã. O pacto constitucional não autoriza virtudes inventadas nem moralidades de ocasião. E isso quebra o equilíbrio. Rompe a separação dos Poderes. Coloca o cidadão à mercê da subjetividade alheia — e da instabilidade permanente que ela traz.
Não se trata de negar que a realidade muda. Trata-se de afirmar que a mudança deve ocorrer por quem tem o poder legítimo de mudar: o Legislativo. O juiz não é o futuro da Constituição. Ele é o seu guardião. E todo guardião que ama o que guarda sabe: não se protege a Constituição traindo o seu texto.
A Constituição pertence ao povo — não aos especialistas, nem aos tribunais. E esse povo não é uma abstração coletiva, difusa, que justifique qualquer vontade majoritária ou decisão de cima para baixo. É o destinatário direto do texto, não um especialista hermenêutico. As palavras da Constituição foram escritas para serem compreendidas pelo cidadão comum — não reinventadas por elites togadas. O povo, aqui, é cada um de nós. Cada indivíduo, com sua dignidade, sua liberdade, seus direitos. É você, que paga impostos, que assina contratos, que educa seus filhos e precisa saber, com segurança, até onde o Estado pode ir. Interpretar a Constituição com fidelidade ao texto é, acima de tudo, reconhecer que ela foi escrita para proteger pessoas reais, de carne e osso, contra abusos do poder. Quando o Estado interpreta a Constituição contra o indivíduo, ele trai o sentido do pacto. Quando o texto é respeitado, cada pessoa recupera aquilo que é seu por origem: a soberania sobre a própria vida.
É por isso que defendo uma técnica de contenção interpretativa — que proponho chamar de Doutrina da Contenção Interpretativa —, fundada em três forças combinadas: o texto como limite, a liberdade como presunção e a lógica como critério. O texto impede abusos, a liberdade orienta as escolhas e a lógica barra os atalhos retóricos. Esses três elementos, quando bem combinados, constroem uma doutrina constitucional sólida, responsável e comprometida com o cidadão — não com o poder.
A clareza das normas jurídicas é uma forma de justiça. Porque onde há clareza, há segurança. E onde há segurança, há liberdade. O cidadão pode planejar sua vida, defender seus direitos e contestar abusos sabendo que existe um padrão estável, acessível, público — e que nem mesmo os tribunais podem ultrapassá-lo impunemente. O contrário disso é o império da incerteza, onde o mais forte, o mais influente ou o mais convincente no tribunal acaba vencendo, não por estar certo, mas por saber jogar o jogo da retórica.
E é isso que precisamos mudar. Precisamos de um novo compromisso: um compromisso com a Constituição como ela é, e não como gostaríamos que fosse. Um compromisso com a contenção, com o método, com o dever de obedecer ao texto mesmo quando ele contraria nossas preferências pessoais. Esse é o único caminho honesto para um país em que o Direito proteja a todos igualmente — e não apenas os que estão do lado certo do discurso dominante. Não precisamos de juízes visionários, mas de juízes leais. Não de intérpretes com missão, mas de leitores com método.
A ideia pode parecer técnica, mas sua força é profundamente humana. Porque no fim das contas, tudo isso diz respeito a você. À sua liberdade. À sua proteção contra o arbítrio. À sua expectativa de que o juiz cumpra a lei, e não a reinvente em nome de algum bem maior que só ele enxerga.
Digo, portanto, com convicção: o texto é o antídoto. Ele cura o excesso, freia o ímpeto, denuncia o abuso e devolve ao cidadão a soberania sobre o seu próprio destino. Quando respeitado, o texto faz do juiz um servidor da norma, e não seu dono. Faz da Constituição um pacto, e não uma desculpa. E transforma o Direito, novamente, em um limite — e não em um palco. O Brasil não precisa de mais intérpretes criativos. Precisa de leitores fiéis.
*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, Sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum.