O princípio da liberdade contratual no Direito brasileiro
A discussão em torno da liberdade contratual tem ganhado notável destaque recentemente em diversos cenários políticos e econômicos ao redor do mundo. Um exemplo recente desse debate é a iniciativa do presidente argentino, Javier Milei, que apresentou um conjunto abrangente de medidas conhecido como “decretazo“. Entre as propostas, destacou-se a alteração do Código Civil e Comercial argentino visando a fortalecer o princípio da liberdade contratual entre as partes. Essa medida reflete a busca por uma maior desregulamentação econômica, removendo obstáculos percebidos pelo presidente Milei como limitadores da atividade econômica. Tal contexto ressalta a relevância do tema na atualidade.
No Brasil, a temática da liberdade contratual também tem sido objeto de intensos debates. O interesse e a busca por compreender como a liberdade contratual opera no contexto brasileiro têm crescido, especialmente diante das discussões sobre a necessidade de reformas legais e desregulamentação.
O direito dos contratos, em sua forma evolutiva final, está fundamentado em três princípios essenciais: o princípio da autonomia da vontade – e, dentro dele, a liberdade contratual -, o princípio da supremacia da ordem pública e o princípio da obrigatoriedade das convenções, limitada pela escusa de força maior. Este princípio se manifesta, primeiramente, na liberdade conferida às partes para estipularem o que desejarem, transformando sua convenção em uma norma jurídica que, entre elas, opera como lei.
No período do Estado Liberal, o princípio da autonomia da vontade refletia uma liberdade absoluta, conferindo total arbítrio aos indivíduos para contratar quem desejassem e da maneira que melhor lhes conviesse. Contudo, nos tempos atuais, a vontade individual está sujeita a restrições tanto em relação aos contratantes quanto ao conteúdo dos contratos. A liberdade de contratar, atualmente, está intrinsecamente ligada ao direito de celebrar contratos, emergindo da capacidade civil dos envolvidos.
A autonomia da vontade se opõe à tipicidade do contrato, observada em fases históricas anteriores, pois o conteúdo dos contratos depende exclusivamente dos interesses das partes, podendo abrigar diversas combinações, desde que não violem a ordem pública e os bons costumes.
Essa autonomia também se traduz na liberdade de contratar, ou seja, na possibilidade de decidir se estabelecerão ou não um vínculo contratual. Esse conceito conecta a doutrina do contrato à da propriedade, refletindo a liberdade irrestrita do proprietário em comprometer ou não seu patrimônio de acordo com seus interesses. Contudo, é importante destacar que o princípio da autonomia da vontade, hoje, não é entendido como absoluto, estando sujeito a contrastes e limitações.
O Art. 421 do Código Civil brasileiro de 2002 estabelece que “a liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato”. Cada vez mais, no Brasil, observa-se a doutrina propondo a substituição do princípio da autonomia da vontade pelo princípio da autonomia privada, o que leva ao caminho sem volta da adoção do princípio da função social dos contratos. Dessa forma, alguns juristas consideram desatualizadas normas recentes que utilizam o termo “autonomia da vontade”, como a Lei de Mediação (Lei 13.140/2015, art. 2.º, inc. V) e da Reforma Trabalhista (Lei 13.467/2017).
Entretanto, mesmo a legislação brasileira colocando como limitada a liberdade contratual, é preciso deixar claro que a função social não elimina totalmente a autonomia privada ou a liberdade contratual, mas apenas atenua ou reduz o alcance desse princípio, reforçado na recente Lei da Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019). Isso é corroborado pelo Enunciado n. 23 CJF/STJ, aprovado na I Jornada de Direito Civil em 2002, um dos mais importantes enunciados doutrinários entre todos os aprovados nas Jornadas de Direito Civil: “A função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio, quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana”.
Em todo caso, o princípio da liberdade contratual permanece evidente na legislação brasileira. Contudo, é possível que as alterações na legislação argentina sinalizem uma nova tendência no cenário jurídico global, conferindo maior peso a esse princípio.
Referências Bibliográficas:
BBC. Terapia de choque’ de Milei: o que muda com ‘decretaço’ que alterou e revogou centenas de leis na Argentina. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cq510jj8wlro. Acesso em: 16 de janeiro de 2024.
DANTAS, San Tiago. Evolução contemporânea do direito contratual. Dirigismo – Imprevisão. Revista de Direito Civil Contemporâneo, São Paulo, ano 3, v. 6, p. 261-276, jan./mar. 2016.
Direito Civil Brasileiro – Contratos e Atos Unilaterais v. 3 / Carlos Roberto Gonçalves. – 20. ed. – São Paulo : SaraivaJur, 2023.
Direito civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie / Flávio Tartuce. – 18. ed. – [2. Reimp.] – Rio de Janeiro: Forense, 2023.
*Pedro Henrique Engler Urso, pós-graduando em Direito da União Europeia pela Universidade de Coimbra, associado do IFL Jovem SP. E-mail para contato: pedroheurso17@gmail.com