O julgamento da liberdade de expressão: o dia em que ela morrerá?
Durante décadas, Antonin Scalia foi a voz solitária que se erguia contra o espírito do tempo. Quando a Suprema Corte decidia com base em princípios vagos, ele respondia com texto. Quando os colegas buscavam aplausos da opinião pública, ele buscava fidelidade à lei. Seus votos vencidos — irônicos, implacáveis, devastadores — não perseguiam o consenso, mas a coerência normativa. Nem sua melhor amiga, Ruth Bader Ginsburg, escapava ao rigor. Scalia compreendia que a integridade do Direito exige coragem: aplicar a norma mesmo quando a maioria a repele. Hoje, o Brasil carece — desesperadamente — de juristas com esse espírito.
Está em julgamento no Supremo Tribunal Federal a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet. Trata-se da cláusula que exige decisão judicial específica para que plataformas digitais sejam obrigadas a remover conteúdo de terceiros. Em termos simples: é o dispositivo que impede a censura privada automatizada. Que obriga os acusadores a buscarem o Judiciário. Que assegura ao acusado o direito de defesa. E que, sobretudo, impede que a exclusão de conteúdos se torne um instrumento de poder unilateral nas mãos do Estado, das empresas ou de grupos organizados.
Esse artigo é, hoje, a última trincheira da liberdade de expressão no Brasil. E o STF ameaça demoli-la.
Três ministros — Luís Roberto Barroso, Luiz Fux e Dias Toffoli — já votaram para relativizar a regra, propondo que certas situações autorizariam a remoção de conteúdo sem ordem judicial prévia. Trata-se de uma ruptura grave com o modelo original do Marco Civil, que, ao exigir decisão judicial para responsabilização, pretendia justamente evitar abusos, garantir a previsibilidade legal e preservar a neutralidade da rede.
Abandonar essa exigência é, na prática, transformar o sistema em terra de ninguém: onde as decisões passarão a ser tomadas por algoritmos, por departamentos opacos ou por pressões políticas. Um ambiente em que a verdade será frequentemente silenciada pela conveniência.
O voto de Dias Toffoli representa uma ruptura frontal com a lógica constitucional da liberdade de expressão. Em vez de aplicar o texto claro do artigo 19, ele o relativiza com base em categorias sociológicas e tecnológicas imprecisas — como “arquitetura da internet” e “código como lei” — que não constam da legislação e tampouco da Constituição. Mas o ponto mais grave é outro: o relator confunde discurso com conduta, expressão com ação. Chega a sugerir que conteúdos “que estimulem agressões” poderiam justificar remoção sem ordem judicial, como se um vídeo, uma frase ou um post fossem equivalentes a um soco, uma ameaça ou uma lesão. Trata-se de um erro conceitual elementar: a palavra, mesmo incômoda, continua sendo palavra. E, como tal, está sob o escudo da liberdade constitucional. A censura preventiva que se pretende justificar em nome da “proteção futura” é a antítese do Estado de Direito — onde o poder só pode agir quando a lei o autoriza, não quando o medo o impulsiona.
A retórica do voto é marcada por analogias forçadas, premissas empíricas não comprovadas e um desprezo quase sistemático pelo princípio da legalidade. O relator ignora a distinção fundamental entre conteúdo ilícito e conteúdo lícito com efeitos indesejados. Parte de uma série de suposições jamais demonstradas nos autos — como a alegada lentidão judicial ou o suposto descaso das plataformas. Amontoa precedentes estrangeiros fora de contexto e dilui a exigência de ordem judicial em nome de uma “efetividade regulatória” criada no próprio voto. Um verdadeiro manifesto voluntarista apresentado como interpretação jurídica.
Espera-se de André Mendonça nada menos que a verve implacável de Nino Scalia — aquele que, mesmo conservador, defendeu o direito de queimar a bandeira americana como forma legítima de protesto. Espera-se, agora, um juiz que, com a clareza didática que o momento exige, revele ao povo o teor exato dos dispositivos constitucionais que protegem a liberdade de expressão. Que resgate o sentido original dessas palavras, escritas em 1988 como antídoto contra os abusos de um regime autoritário. Que invoque, com firmeza, a força do artigo 5º, blindado pela cláusula pétrea do artigo 60. E que diga, sem rodeios, que o poder tem limites — e que esses limites estão gravados no texto constitucional que assegura nossos direitos e garantias fundamentais: nossos direitos naturais, já reconhecidos desde a Constituição do Império. Que reafirme, com a lucidez de Randy Barnett, que a Constituição é “a lei que governa aqueles que nos governam”. E que, com serenidade, mas sem concessões, lembre aos demais que não lhes cabe mudar o significado das palavras — sobretudo as do artigo 5º. Porque princípios vagos não podem se sobrepor à solidez republicana dos direitos fundamentais negativos.
Resta aguardar. Com o ânimo combalido e os olhos bem abertos — como quem assiste, impotente, ao apagar das luzes de uma república exaurida. Já no clima de “bye, bye Miss American Pie”, à espera do fim de um dia triste e sombrio em que, não a música, mas a liberdade — aquela de dizer, discordar, resistir — será enterrada sob os escombros de boas intenções mal dirigidas. Quando o silêncio não nascerá da persuasão, mas da intimidação. Quando a palavra será punida como ofensa, e a dúvida, tratada como crime. Porque se o Supremo Tribunal Federal decidir sacrificar o artigo 19 em nome de um amanhã supostamente mais seguro, entregará o hoje às mãos dos que mais temem a verdade. E então se revelará o paradoxo trágico do nosso tempo: não foi a internet que matou a democracia — foi o poder que recusou seus próprios limites.
*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum.