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O crepúsculo dos deuses de 88

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Diversos são os filtros sob os quais se pode analisar um fenômeno, e, quanto maior a complexidade deste, mais numerosas as camadas a serem percorridas até a chegada ao seu cerne. Entre nós, poucos eventos conseguem ser mais “intrigantes” que a nomeação de ministros à suprema corte, talvez por tratar-se da representação mais crua do imbricamento desordenado dos universos político e jurídico, ou, melhor dizendo, da promiscuidade entre os poderes. Nas discussões de mesas de bar ou de redes sociais, a superficialidade reinante dá espaço à travessia do filtro interpretativo mais óbvio – e, de preferência, mais caricaturesco! -, cingindo o bate-boca inflamado a traições, covardias e trocas de favores espúrios. Em que pese a constatação de todos esses aspectos, proponho aqui, sempre em respeito à sua inteligência, caro leitor, algo mais aprofundado.

A chancela do Senado à indicação de Flávio Dino ao STF representou a morte da ordem constitucional vigente desde 88 – e trago a público essa afirmação ousada, sem receio de incorrer em hipérbole ou em qualquer ofensa pessoal contra o recém-nomeado. Na qualidade de comunista autodeclarado, até há pouco tempo filiado ao PC do B, Dino é incontestavelmente adepto do regime responsável pela aniquilação do maior número de vidas em toda a história humana e construído, pelo menos na prática, sobre os pilares da supressão das liberdades individuais e da propriedade privada, além do funcionamento de um partido único. Ora, a partir dessas premissas fáticas irrefutáveis até para os atuais militantes mais aguerridos, basta ler o artigo inaugural da nossa Constituição para perceber que o comunismo parece a antítese da República Federativa do Brasil, descrita, em nossa carta política, como um estado de direito constituído sobre os princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana, da livre iniciativa e do pluralismo político[1].

Ao longo dos infindáveis dispositivos constitucionais, a abundância das garantias às liberdades, em particular no icônico artigo 5º, que, de tão extenso, contém “um verdadeiro Maracanã”, à vida e à propriedade transmite, à vasta maioria da população, a confiança na construção de uma autêntica democracia liberal, equiparável a sistemas sólidos e maduros como o norte-americano. Será mesmo?

Se esmiuçarmos o texto, já no âmbito das liberdades, teremos surpresas nada agradáveis. Na rotina de nossos negócios privados, existe a sombra constante de um estado-tutor, que nos embarreira a livre negociação de contratos de trabalho e serviços, tudo mediante a justificativa eufemística de proteção aos ditos “direitos sociais”; que, no plano da ordem econômica, cerceia a nossa livre iniciativa, sujeitando-a aos “ditames da justiça social”, seja lá o que isso signifique; e que monitora, de perto, até a educação de crianças e jovens, descrevendo-a, antes de mais nada, como “dever do estado”, ou seja, posicionando a família como verdadeira coadjuvante de atividades estatais na formação das próximas gerações. Se não corresse o risco de exaurir a sua paciência, bem poderia estender este parágrafo por algumas páginas.

Na seara das liberdades públicas, o desastre é retumbante. Por incrível que pareça, nossa Constituição “cidadã” não confere a nós, cidadãos comuns, a possibilidade de tomada de decisões relevantíssimas para a vida em coletividade, tais como a remoção de mandatários eleitos que tiverem traído suas promessas de campanha (“recall”) ou o questionamento direto, junto ao Supremo, de normas que nos pareçam inconstitucionais. Aliás, sequer fazemos jus a uma representatividade política minimamente fiel, pois não podemos submeter candidaturas avulsas (fora de estruturas partidárias) a cargos eletivos, e, muito menos, nos sentir representados nas casas legislativas país afora, devido às distorções do chamado sistema proporcional de votação. Nas palavras do jurista Modesto Carvalhosa, vivemos uma “partidocracia ao invés de democracia”, onde “somente os políticos profissionais, agregados nos partidos “tradicionais” podem apresentar-se ao eleitorado, elegendo-se através do voto proporcional – que é uma fraude[2].”

No plano das vidas humanas, nossa CF, dita tão “igualitária e democrática”, gera uma visível desigualdade formal entre as duas categorias de brasileiros contemplados por seu texto: de um lado, a imensa maioria (setor privado), que trabalha e assume todos os riscos da atividade produtiva, e, do outro, o segmento minoritário composto por todo o estamento estatal, imune aos riscos ou sequer a avaliações criteriosas de desempenho, estável no cargo e ainda investido de um cipoal de benesses que, muitas vezes, se prolongam para além da própria vida do servidor, irrigando os cofres de cônjuges sobreviventes e até de filhas solteiras ou viúvas. Portanto, a atual ordem constitucional não confere o mesmo valor às vidas dos atores privados e dos agentes públicos, cujos privilégios de toda natureza – inclusive a prerrogativa de foro! – são criados e assegurados pela Carta.

Quanto à propriedade, cumpre salientar, pela enésima vez neste espaço, que, segundo a Constituição, o objeto da propriedade é assegurado, desde que atenda à “sua função social”. Em mais um de seus incontáveis conceitos nebulosos, sujeita a uma condicionante o exercício de um direito que, em sociedades livres, deve ser absoluto, oponível a qualquer terceiro, inatingível e insuscetível de ser exposto a restrições ou limitações criadas artificialmente por um braço estatal, seja ele administrador, legislador ou julgador.

Não à toa, a atual CF, desde o seu nascedouro, vem ensejando críticas contundentes por parte dos nossos pensadores liberais. Em suas memórias, Roberto Campos, parlamentar constituinte, descreveu a ordem constitucional de 88 como “a vitória do nacional obscurantismo”, em um documento que, “no econômico e social, (…) reduziu a liberdade de opções do indivíduo, praticando mais democratice que democracia.” Também no plano político, o arguto Campos, por ocasião dos trabalhos na constituinte, já antevia a perspectiva de promiscuidade entre os poderes, inclusive com o surgimento de um judiciário abusivamente legislador. O trecho suscita reflexões a cada vírgula: “a Constituição dos miseráveis, como diz o dr. Ulysses, é uma favela jurídica onde os três poderes viverão em desconfortável promiscuidade. O Congresso invade a área do Executivo (…) e o Judiciário é convidado para participar dessa partouse. É que se criaram as figuras do mandado de injunção e da inconstitucionalidade por omissão. Através de uma ou outra dessas figuras, o cidadão comum poderá, na falta de norma regulamentativa, pleitear no Judiciário os direitos, liberdades, e prerrogativas constitucionais. O Judiciário deixará, assim, de ser o intérprete e executor das normas para ser o feitor das normas, confundindo-se a função judiciária com a legislativa[3].”

Como ainda narrado por Campos, grandes juristas do período constituinte proferiram comentários ácidos sobre a Carta. Para citarmos apenas alguns dos epítetos, frise-se que ela foi referida por Miguel Reale como um “ensaio de totalitarismo normativo”, por Yves Gandra como “constituição da hiperinflação” e, por Diogo de Figueiredo, como “interventiva e providencial[4].”

Sem mais delongas, quem tivesse analisado a transição democrática com olhos de ver teria percebido como retrocesso o que, sob a ótica de tolos e imaturos, parecia um avanço – e assim, unindo as duas pontas da linha do tempo, é possível hipotetizar que o ranço dirigista e coletivista, presente na CF desde o berço, tenha constituído solo fértil para a proliferação dos abusos togados tão debatidos aqui, incluindo a pressão exercida por supremos para a nomeação de Dino ao STF, o último “ato” da nossa tragédia constitucional. Ou seja, talvez o texto constitucional já contivesse, desde os primórdios, o embrião da destruição da nova ordem de democracia e liberdade que se pretendia supostamente implementar. Seria a nossa Constituição um ente “autofágico”?

Nem mesmo o melhor dos historiadores pode profetizar o amanhã. Se prevalecer o mínimo de sensatez, aproveitaremos a ruptura culminada na sabatina de Dino para a discussão de uma nova ordem, ou, pelo menos, de um “emendão” constitucional, que, sob a forma proposta pelo Prof. Carvalhosa, transforme o atual Brasil dos privilégios em uma nação de oportunidades. Caso não se chegue a esse novo consenso político, as vidas de gerações inteiras serão desperdiçadas em ambiente tenebroso de insegurança jurídica, arbítrios e devastação econômica.

Que possamos todos, no ano que se aproxima, lutar pelo desfecho razoável.

[1] Art. 1º da CF – A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (…) III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo politico.

[2]Uma nova constituição para o Brasil – De um país de privilégios para uma nação de oportunidades”, LVM editora, 2021, página 85.

[3]A Lanterna na Popa – Memórias”, volume II, 2ª edição revista, Topbooks, página 1210

[4] Idem, página 1213.

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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