O código do silêncio: quando o debate ameaça o poder

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A decisão da OAB do Rio de Janeiro de cancelar, de última hora, um seminário sobre o novo Código Civil – mesmo após ampla divulgação – gerou indignação e expôs um problema mais profundo: o receio das críticas. O episódio revela que o Projeto de Lei nº 4, de 2025, não é apenas um esforço de atualização normativa, mas também um movimento político cuidadosamente blindado contra o dissenso qualificado. O temor de enfrentamento técnico levou ao silêncio institucional.

Apresentado como uma “reforma moderna”, o projeto altera 1.122 dos 2.046 artigos do Código em vigor, sob o pretexto de adequar o Direito Civil às transformações sociais. Mas, por trás da narrativa de atualização, o que se vê é um retorno disfarçado ao velho modelo de juridicidade indeterminada. A linguagem usada – exaltada como “técnica” pelos autores – não facilita o debate público, mas o inibe. Não por acaso, entidades como a União Brasileira de Juristas Católicos denunciaram a ausência de diálogo efetivo e o simulacro de participação jurídica: apenas três audiências públicas para uma das maiores reformas legislativas desde a Constituição de 1988.

A retórica da modernização sustenta-se em justificativas como a engenharia genética, os novos arranjos familiares e a comunicação digital, mas ignora que o Direito, para ser justo, deve ser claro, previsível e limitado. A proposta, ao contrário, dissolve as fronteiras normativas e amplia categorias subjetivas como “função social”, “solidariedade” e “dignidade”, transformando-as em critérios centrais de decisão. O juiz, antes vinculado à lei, passa a ter carta branca para julgar por impressões, não por comandos normativos.

O projeto não moderniza: canoniza a indeterminação. Ao eliminar critérios objetivos de responsabilidade civil e permitir que o dever de indenizar só exista se houver prova de intenção dolosa (“provar que quiseram fazer o mal”), cria-se um privilégio processual de casta. Em casos como esse, o Direito deixa de proteger o vulnerável para blindar o poderoso. Transforma-se em escudo para grupos específicos, como os próprios advogados, em detrimento da isonomia legal.

Essa nova codificação não parte da liberdade. Parte da desconfiança. O cidadão é tratado como alguém a ser tutelado; seus contratos, como ameaças; sua autonomia, como risco. O Direito vira ferramenta de controle social, e não de emancipação. Ao substituir a legalidade pela ponderação subjetiva, instaura-se um “Direito penal do civil”, onde o simples dissabor alheio pode levar à sanção judicial.

Sob a ótica econômica, o impacto é igualmente deletério: normas vagas elevam os custos de conformidade, desestimulam o cumprimento espontâneo dos contratos e incentivam a litigância oportunista. A jurisprudência torna-se moeda de barganha, e a lei, um elemento decorativo. A insegurança jurídica, já crônica, passa a ser estrutural.

Mas talvez o maior vício do PL nº 4/2025 seja epistemológico. Supõe que a Constituição autoriza – ou até exige – esse tipo de codificação abstrata e principiológica. Não autoriza. A Constituição de 1988 protege os direitos fundamentais como cláusulas pétreas, exige separação rígida entre os Poderes e só obriga o cidadão ao cumprimento da lei, jamais à moral de gabinete. A dignidade da pessoa humana, interpretada conforme seu sentido público original, deve ser instrumento de proteção dos direitos fundamentais do artigo 5º da Constituição — não fundamento para negá-los ou relativizá-los. Ela não justifica o ativismo judicial. Ela o limita.

Ao romper com o texto constitucional e ignorar os direitos naturais que o inspiraram, a proposta dissolve a previsibilidade que sustenta a liberdade, a confiança e a segurança institucional. É uma codificação sem contenção – um novo Código entregue à discricionariedade e ao subjetivismo judicial.

A boa notícia, no entanto, veio da Professora Gisela Sampaio da Cruz: o evento será realizado na PUC-Rio, que abriu imediatamente suas portas para acolher o debate. A universidade – onde me formei – honra, assim, sua vocação democrática e republicana, ao garantir espaço para a crítica técnica e o livre intercâmbio de ideias. Num ambiente cada vez mais fechado à divergência, esse gesto é, por si só, um ato de coragem institucional.

Em vez de restaurar o Direito como linguagem de limites, o projeto o reconfigura como plataforma de vontades. A OAB, ao silenciar o debate, endossa a lógica do monólogo institucional. Contra essa lógica, é preciso reafirmar: o texto ainda importa. A liberdade ainda importa. E um Código Civil que não respeita nem um nem outro não é progresso. É retrocesso com cara de virtude.

*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, Sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum. 

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