Não existe autoritarismo cirúrgico, somente autoritarismo
“Para prevenir que os membros mais fracos da comunidade fossem presas de inúmeros abutres, era necessário que houvesse um predador mais forte do que o resto, encarregado de mantê-los sob controle.” (MILL, 1869)
É assim que Stuart Mill compreende a necessidade do estado como forma de controle da sociedade. O estado, entretanto, não é composto por anjos, mas por seres humanos tão imperfeitos quanto aqueles que se deseja controlar. Uma das mais patentes imperfeições do ser humano — e, paradoxalmente, a mais extraordinária de suas capacidades — é a de pensar dentro da caixa.
Deixe-me explicar.
A expressão “pensar dentro da caixa” é usada normalmente de forma depreciativa para sugerir que alguém está limitado no seu poder criativo e cego a novas ideias. Nesse sentido, a expressão “pensar fora da caixa” é usada para sugerir que alguém liberte sua mente de algum framework mental para expandir as possibilidades de solução de um problema.
Eu nunca gostei dessa recomendação de “pensar fora da caixa”. Uma estrutura de pensamento clara é o que nos possibilita explorar as possibilidades internas de um sistema de pensamento. Por isso, compreendo que pensar fora da caixa é, na verdade, tentar funcionar em um estado de caos e desorganização mental.
Intuitivamente, tendemos a achar que pensar dentro dos limites impostos por uma caixa mental não irá nos levar muito longe, que sistemas de pensamento simples não podem capturar toda a complexidade da realidade. Não é isso o que a prática nos mostra. De fato, “a melhor maneira de lidar com a complexidade é manter as coisas o mais simples possível e seguir alguns princípios básicos. A simplicidade da estrutura (de pensamento) permite que a complexidade cresça onde queremos: no nível do conteúdo.” (AHRENS, 2017).
Exemplos de complexidade que surge a partir de estruturas mentais simples e altamente restritivas incluem:
- a poesia, que impõe restrições formais de ritmo, contagem de sílabas e rimas;
- a escrita, altamente padronizada e limitada a somente 26 letras;
- o código binário utilizado em computadores, radicalmente mais restritivo que as linguagens naturais, incrivelmente poderoso a ponto de permitir construir máquinas que conseguem se passar por seres humanos em diversas situações. Acredito que hoje em dia ninguém desafie o poder expressivo desses sistemas baseados em regras simples que implicam grandes restrições à forma de pensar.
O problema não é ter uma caixa mental para pensar, o problema é ter somente uma caixa mental para pensar. O problema não é ter somente uma ferramenta, o problema é achar que todos os problemas da sociedade podem ser resolvidos somente com uma ferramenta.
O governo só tem um ferramenta: a violência.
Violência esta que se manifesta de diferentes formas:
- impostos, uma forma de violência contra a propriedade;
- regulação, uma forma de violência contra a liberdade de agir;
- subsídios, uma forma de violência contra a liberdade de organização econômica.
Atualmente, a violência do estado tem se voltado para a liberdade de expressão, mascarada como a defesa da democracia. Desde decisões judiciais baseadas nos bordões “Liberdade de expressão não é liberdade de agressão! Liberdade de expressão não é liberdade de destruição da Democracia, das Instituições e da dignidade e honra alheias! Liberdade de expressão não é liberdade de propagação de discursos de ódio e preconceituosos!” (STF, 2023a, 2023b) até recentes declarações como “Respeito as críticas, mas manterei a mesma linha de atuação. Quem minimizou os riscos antidemocráticos, há 100 anos, na Alemanha ou na Itália, alimentou um monstro. Busco não pecar por omissão” (Flávio Dino em entrevista), ao apresentar uma proposta que, na prática, coloca em risco qualquer possibilidade de manifestação de insatisfação dos cidadãos com relação ao governo.
É fácil abusar de uma ferramenta poderosa uma vez que aprendemos como utilizá-la. Não é um privilégio dos políticos, mas algo da natureza humana. Nesse sentido, gosto da ilustração trazida por E. S. Dallas em 1868:
“Dê a um menino um martelo e um cinzel; mostre a ele como usá-los; imediatamente ele começa a cortar os batentes das portas, a remover os cantos das persianas e dos caixilhos das janelas, até que você lhe ensine um uso melhor para eles e como manter sua atividade dentro dos limites. Ofereça-lhe uma faca; com que rapidez ele deseja moldar sua pequena embarcação e lançá-la no oceano da piscina mais próxima; como ele mutilará sua carteira escolar e a esculpirá com letras ou caricaturas, até cortar os dedos e descobrir que há perigo no deleite. Dê-lhe um chicote e ele se tornará descuidado e cruel – o terror de crianças inofensivas ao seu redor – o flagelo de sua pequena esfera”. (DALLAS, 1868)
O poder é uma ferramenta que pode ser facilmente abusada, por isso ele precisa ser limitado. Nas palavras de Stuart Mill:
“Mas, uma vez que o rei dos abutres estaria tão determinado a predar o rebanho quanto qualquer uma das harpias menores, era indispensável estar em uma constante atitude de defesa contra seu bico e garras. O objetivo, portanto, dos patriotas era estabelecer limites ao poder que o governante poderia exercer sobre a comunidade; e essa limitação era o que eles entendiam por liberdade.” (MILL, 1869)
A autoridade é constituída no estado liberal moderno para proteger os cidadãos de ameaças à suas vidas e às suas propriedades. Como observam Stuart Mill e, posteriormente, os teóricos da Escola da Escolha Pública, a burocracia que exercerá essa autoridade tenderá ela mesma a tornar-se um grupo de interesse na sociedade, com suas próprias ambições e culturas internas, uma vez dotada dos meios necessários para a consecução dos seus objetivos. Esse grupo de interesse tenderá a empregar seus recursos tanto para aumentar seu poder como para enfraquecer a sua oposição.
Ao contrário da crença popular (ou do que insistem aqueles que procuram “democratizar” todos os aspectos da vida), a democracia não é “um sistema para tomada de decisões coletivas que se justifica porque promove deliberações rumo a um país melhor” (MAULTASCH, 2022). A democracia é justamente a ferramenta de limitação do poder.
A democracia é uma estrutura formal de decisões que serve, sobretudo, para garantir a transição pacífica de poder. Ela não é um fim em si, mas uma ferramenta que entendemos útil para a preservação da liberdade e do governo da lei. A liberdade não é consequência da democracia, pelo contrário, é a democracia que deve servir à liberdade. Por isso, restringir a liberdade para garantir a democracia é uma estapafúrdia inversão de valores: o objetivo não é a democracia, mas a liberdade. “É como matar o paciente recalcitrante para que se possa aplicar-lhe mais facilmente o remédio” (MAULTASCH, 2022). O compromisso deve ser com a cura, com a vida, e não com o tratamento.
O problema do mundo é que as pessoas brilhantes são cheias de síndrome de impostor e as pessoas estúpidas são cheias de confiança. Atualmente, a estupidez está voltada para a defesa da democracia por meio da tirania do governo. A liberdade é a medida da qualidade da sociedade. Não existe autoritarismo cirúrgico, somente autoritarismo.
Referências
MILL, J. S. On Liberty. 4th Ed. ed. London: Longmans, Green, Reader and Dyer, 1869, p. 8-9
AHRENS, S. How to Take Smart Notes. 1. ed., 2017.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INQ 4781/DF, Julgamento 02/05/2023, Relator(a): Min. Alexandre de Moraes. , 2 maio 2023a. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/despacho1400902/false. Acesso em: 20 jul. 2023
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INQ 4781/DF, Julgamento 10/05/2023, Relator(a): Min. Alexandre de Moraes. , 10 maio 2023b. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/Decisa771oTelegramAssinada1.pdf. Acesso em: 20 jul. 2023
DALLAS, E. S. (ED.). Toys. London: Bradbury, Evans & Company, 1868. v. 16, p. 344-345
MAULTASCH, G. Contra Toda Censura. 1. ed. São Paulo: Avis Rara, 2022.