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Na porta da lei, havia uma “dama do tráfico” e um prisioneiro moribundo

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No penúltimo capítulo do romance O Processo, do escritor tcheco Franz Kafka, o protagonista Joseph K., “réu” em processo cujos fundamentos até os juízes desconheciam por completo, se viu encarregado de guiar um cliente estrangeiro em uma visita à catedral. No horário combinado para o tour, não havia cliente algum, senão apenas um sacerdote, que, após a pronúncia do nome completo de K., atribuiu-lhe a condição de “acusado” e informou que ele mesmo havia feito com que o rapaz fosse à igreja para uma conversa.

O sacerdote, autointitulado capelão do presídio, iniciou o diálogo com a apresentação, ao aterrorizado e exausto K., de um conto popular sobre o que chamou de “engano ao julgar a justiça”. Segundo narrado pelo padre, na porta da lei, havia um guarda, e a ele dirigiu-se um camponês, pedindo-lhe para entrar na lei. “Agora não”, retrucou o guarda, despertando ansiedade e angústia no pobre homem, que, a essa altura, já se inclinava, tentando olhar o interior através da porta. Ao que o guardião reagiu: “sou poderoso, e, contudo, não sou mais do que o guarda inferior; em cada uma das salas existem outros sentinelas, um mais poderoso que o outro. Não posso suportar sequer o olhar do terceiro.” E assim, nas palavras do sacerdote, se passaram os dias e até os anos, até que, nos últimos suspiros de vida, o já caquético camponês indagou como se explicaria que, por tanto tempo, ninguém além dele tivesse tentado entrar na lei. Foi então que o guardião revelou ao moribundo: “ninguém senão tu podia entrar aqui, pois esta entrada estava destinada apenas para ti. Agora eu me vou e a fecho.”

Antes de desistir do que você possa considerar um enfadonho ensaio literário, tenha em mente, caro leitor, que a “porta da lei” nada mais é que uma metáfora para uma situação que todos nós já experimentamos ou ainda poderemos vivenciar: o acesso ao judiciário. A porta representa o conjunto de ritos a serem seguidos para “adentrarmos a lei”, ou seja, para conseguirmos uma providência buscada ao amparo da legislação, enquanto os guardiões são os juízes, legítimos encarregados de decidir quem tem o melhor direito, e, por isso mesmo, quem merece o amparo da lei. Já a escala hierárquica, frisada em tom hiperbólico pelo guarda do conto kafkiano, corresponde às instâncias, cada uma mais poderosa que a outra, tanto que as superiores dispõem da faculdade de revogar decisões das inferiores.

Em democracias liberais, a “porta da lei” costuma ser rígida o suficiente para barrar demandas aventureiras – evitando o desperdício de dinheiro público com o exame de pretensões reconhecidamente estapafúrdias -, e flexível o bastante para permitir a submissão de conflitos aos árbitros estatais, com menor grau possível de formalismo. Por sua vez, o poder dos magistrados (guardiões) das diversas instâncias é restrito pelo consenso político maior (Constituição) e pelas próprias leis, sendo objeto constante de vigilância pelos demais poderes, pelo Ministério Público, pela mídia e por indivíduos mais conscientes do valor de suas liberdades.

Já na distopia kafkiana, tornada realidade em um país de instituições falidas como o nosso, as decisões sobre a abertura e o fechamento da “porta da lei” se baseiam tão somente no desejo do guardião de plantão. Nos últimos dias, testemunhamos dois casos diametralmente opostos, cada um deles trágico à sua maneira, em perfeita ilustração de que a própria expressão “porta da lei” poderia ser trocada, entre nós, por “porta de propriedade do guardião X ou Y”.

Após “reuniões” nos ministérios da justiça e dos direitos humanos, Luciane Barbosa Farias, condenada em segunda instância por associação ao tráfico e mulher de Clemilson Farias, chefe da facção Comando Vermelho, e conhecida como a “dama do tráfico amazonense”, visitou o CNJ, onde foi fotografada abrindo, com as próprias mãos, o gabinete do conselheiro ministro Luiz Phillippe Vieira de Mello Filho[1]. Sem maiores protocolos junto ao “exército” de assessores do togado, a dama adentrou o recinto sem bater, sob o pretexto pífio de “discutir a questão prisional no Amazonas”. Para ela, não há lei efetiva – tanto que, apesar de sua condenação, desfila solta e glamourosa pela alta roda brasiliense! -, e muito menos porta, pois, independentemente de petições de advogados ou de qualquer outro rito processual, seu acesso é franqueado a gabinetes de juízes de cúpula.

Enredo inteiramente diverso marcou os últimos dias do microempreendedor Cleriston Pereira da Cunha, um dos milhares de encarcerados pelos eventos do 08.01, e cujo passaporte para a cadeia foi carimbado por sua mera presença em acampamento de manifestantes diante do Quartel-General do Exército em Brasília. Como debatido à exaustão nesse espaço, Cleriston foi mais um dos réus trancafiados no âmbito de ações explicitamente inconstitucionais e ilegais, por envolverem pessoas sem foro privilegiado, mas, ainda assim, julgadas em “primeira e única instância” pelo Supremo Tribunal Federal, sem qualquer exame das condutas individuais ou de provas concretas da prática de crime de dano.

O processo de Cleriston era envolto por uma sordidez ainda maior, pois, diante das complicações cardíacas decorrentes da Covid-19, e atestadas por três laudos médicos distintos, sua segregação prisional equivaleria a verdadeira sentença de morte[2]. Em audiência virtual realizada em julho, pelo Supremo, o réu salientou todos os efeitos nefastos de sua saúde precária, tendo, inclusive, reportado episódios de desmaio e falta de ar no presídio[3]. Não à toa, ainda no final de agosto, a PGR, corroborando as alegações da defesa, havia recomendado a liberdade provisória, devido ao agravamento das comorbidades severas no ambiente insalubre do cárcere[4]. No entanto, apesar da situação limite na qual se encontrava um ser humano aprisionado por capricho despótico, nosso togado-censor, dito “relator” dos processos, sequer se deu ao trabalho de examinar as petições do advogado de Cleriston. Nesse caso, assim como tem ocorrido em tantos outros, o todo-poderoso “guardião da porta da lei” nem mesmo se dignou a ouvir os argumentos do suplicante, que deixou perecer como a mais insignificante das criaturas.

Tal omissão contradiz julgados anteriores do próprio tribunal, em que os supremos togados haviam colocado em prisão domiciliar, por problemas de saúde, figurões condenados por crimes graves do colarinho branco, como Paulo Maluf, Jorge Picciani, e até “braço-direito” de político, como Fabrício Queiroz[5], em prol dos quais os “guardiões”, sobretudo os de cima, estão sempre prontos a escancarar as “portas da lei”. Além de configurar crime de responsabilidade por patente desídia no exercício da magistratura[6], passível até de ensejar a remoção do togado, a recusa em apreciar pedido de soltura motivado por urgência clínica que resultou em evento fatal pode, sim, ser enxergada como omissão penalmente relevante por parte de julgador, ao qual teria cabido o dever funcional de zelar pela integridade dos detentos sob sua jurisdição. Para ser mais clara, não são apenas os autores de condutas ativas que nossa legislação criminal responsabiliza pela privação da vida humana; também respondem aqueles que deveriam ter feito algo para impedir a tragédia, e conscientemente não o fizeram[7].

No romance kafkiano, Joseph K., exaurido ao final de um ano inteiro de via crucis processual, se resignou diante da perspectiva do inevitável desenlace fatal. Como um cordeiro inerte durante o sacrifício, elevou as mãos, e, enquanto seus carrascos que o haviam buscado em casa, em alta noite, lhe enterravam uma faca no coração, ainda teve tempo de sussurrar: “como um cachorro!”.

Não se sabe o que Cleriston teria dito ou pensado em seus momentos finais. Ao perceber o esgotamento de sua energia vital, ali encarcerado e frágil, sem direito à ampla defesa ou a um julgamento minimamente justo, talvez tenha se sentido um pouco como K., reduzido por seus algozes à condição de animal irracional, mas, ainda assim, amadurecido por quase um ano de cárcere, e pronto a imaginar algo do tipo: “a única coisa que agora posso fazer é manter até o fim sereno e claro meu entendimento.”

Se, para a “dama do tráfico”, os “guardiões” se desdobraram em amabilidades, tanto K. quanto Cleriston tiveram a “porta da lei” sumariamente batida na cara, e deixaram a vida por ação e omissão de seus respectivos executores. Momento de luto pela vida ceifada e de coragem para uma discussão séria sobre as responsabilidades de todos os envolvidos.

[1] https://litoralhoje.com.br/noticias-do-brasil/politica/conselheiro-do-cnj-admite-ter-recebido-dama-do-trafico-e-esclarece-visita

[2] https://diariodopoder.com.br/brasil-e-regioes/ttc-brasil/defesa-apresentou-tres-laudos-sobre-saude-do-patriota-que-morreu-na-papuda

[3] https://twitter.com/estadaopolitica/status/1727060295976112586?s=61&t=uNbDoCnTx0iuRHR4QFFNrw

[4] https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/quem-e-o-reu-preso-por-moraes-que-morreu-na-papuda/

[5] https://blog.tnh1.com.br/contextualizando/2023/11/21/dois-pesos-duas-medidas-por-problemas-de-saude-o-stf-mandou-politicos-para-casa-nao-reu-doente-do-8-1/

[6] Lei do Impeachment (1079/50) – São crimes de responsabilidade dos Ministros do Supremo Tribunal Federal: (…) 4 – ser patentemente desidioso no cumprimento dos deveres do cargo.

[7] Código Penal: “Art. 13, Parágrafo 2 – § 2º – A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância.”

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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