Juristocracia no Brasil: da mentalidade revolucionária ao colapso da soberania
Especialmente a partir de 2019, o Brasil tem vivenciado uma grave transformação institucional: o advento de uma juristocracia, sistema no qual o poder decisório é progressivamente monopolizado pelo Judiciário, com ênfase por seu órgão de cúpula. Sob o discurso da defesa da democracia e da ordem constitucional, o STF tem assumido um protagonismo político que revela não apenas um desequilíbrio entre os poderes da República, mas também a aplicação prática e perigosa da “mentalidade revolucionária” — aquela que, nas palavras de Olavo de Carvalho, atua como “força desapiedada que se crê moralmente autorizada a destruir tudo em nome de um ideal inalcançável” (Cf. O imbecil coletivo, 2008).
O termo “juristocracia”, cunhado por Ran Hirschl, descreve o arranjo institucional em que juízes e tribunais ocupam o lugar central da política nacional, substituindo o papel do Legislativo e relativizando a soberania popular. Diferentemente da democracia representativa – que se baseia na vontade expressa do povo por meio do voto, na alternância de poder e na responsabilidade pública –, a juristocracia concentra decisões fundamentais em agentes não eleitos, frequentemente inacessíveis à crítica popular e praticamente imunes à prestação de contas.
No Brasil, esse fenômeno tem assumido contornos inquietantes. A partir da assunção de um governo assumidamente conservador em 2018, eleito com forte respaldo popular, o Judiciário intensificou sua interferência político-institucional, inviabilizando propostas do Executivo, restringindo a liberdade de expressão de seus apoiadores e se colocando como “guardião da democracia” acima dos demais poderes.
Essa tendência consolidou-se com a abertura, em 2019, do chamado “Inquérito das Fake News”, ou melhor, “Inquérito do Fim do Mundo” (termo criado pelo então ministro do STF Marco Aurélio Melo), uma investigação sem provocação do Ministério Público, aberta de ofício pelo STF, conduzida pelos mesmos ministros que se entendiam ofendidos por críticas jornalísticas. A justificativa era impedir “ataques às instituições democráticas”. Os métodos, entretanto, têm se revelado excepcionais e juridicamente questionáveis: censura prévia a veículos de imprensa, bloqueio de contas em redes sociais, congelamentos de contas bancárias dos envolvidos, cancelamentos de passaportes de brasileiros natos, sigilo processual, conduções coercitivas sem contraditório etc.
Trata-se claramente da aplicação da lógica revolucionária: os meios passam a ser legitimados por seu suposto fim. O que importa não é sua legalidade ou moralidade, mas seu efeito “salvador”. Aqui, reencontramos também a descrição de Maquiavel do chamado “governante ideal” como aquele que, para manter o Estado, precisa aprender “a não ser bom, quando necessário” (Cf. O Príncipe).
Porém, como advertiu Aldous Huxley, “os meios preparam inevitavelmente o fim… meios violentos produzem sociedades violentas” (Cf. Ends and Means). É justamente isso que se observa: o STF tenta preservar a democracia abandonando os próprios fundamentos de um Estado democrático de direito: liberdade de expressão, de imprensa, contraditório, soberania eleitoral e outros mais.
Para além do aspecto destrutivo dos cânones constitucionais, há também uma lesão profunda no tecido social. A crítica de Hannah Arendt, ao analisar regimes autoritários no século XX, é assustadoramente atual: “o mais alarmante é que o mal pode ser cometido por pessoas comuns, cumprindo ordens, sem malícia, mas também sem julgamento moral” (Cf. Eichmann em Jerusalém). No sistema juristocrático brasileiro, a mídia tradicional, a burocracia estatal, a OAB e a academia, em sua conivência passiva ou ativa, legitimam decisões judiciais que restringem a política legítima e criminalizam o dissenso, especialmente de cunho conservador. A interpretação da lei, frequentemente adaptada ao adversário, é respaldada por essas instituições, que, ao seguirem rotinas e interesses estabelecidos, renunciam à crítica e ao compromisso com princípios universais de justiça.
A consequência é clara: queda da confiança pública no Judiciário, aprofundamento da inviabilidade do diálogo entre correntes políticas, esvaziamento das instituições representativas e ruptura do Estado de Direito. A lógica do “mal menor”, que seria aceitável para conter ameaças à democracia, torna-se justamente o agente do colapso institucional e da repressão política contra uma fatia significativa e legítima da população.
O ataque sistemático à legitimidade de um governo conservador eleito democraticamente em 2018 e de seus apoiadores (até depois do mandato) é o sintoma mais visível da juristocracia como manifestação autoritária da mentalidade revolucionária. Mesmo quando sustentado pelo voto da maioria, o conservadorismo foi tratado como ameaça interna, anulando o princípio basilar de que o governo emana do povo.
Olavo de Carvalho alertava para isso ao dizer que a revolução moderna “não derruba a ordem diretamente, mas a dissolve por dentro, legalizando sua própria destruição por meio das instituições” (Cf. O jardim das aflições). A juristocracia judicializa tudo o que é politicamente inconveniente, converte o Judiciário em instrumento regulador do discurso e posiciona-se como força contra o mandato popular e não como seu mediador, o que seria sua função constitucional.
O conservadorismo, enquanto força política com respaldo legítimo no voto e aliado da ética pública tradicional, encontra-se hoje cerceado por uma elite jurídica que se vê moralmente superior ao povo, aos partidos e à Constituição. A juristocracia brasileira, ao justificar meios excepcionais para conter “ameaças à democracia”, encarna perfeitamente a mentalidade revolucionária que diz combater.
O desafio é, então, resistir pacificamente a essa inversão histórica, restaurando o princípio da soberania popular, exigindo a submissão do Judiciário à legalidade estrita e defendendo a separação de poderes como fundamento da liberdade. Não há bem maior que justifique a corrosão do próprio sistema que dizem proteger!
Como advertiu Huxley, “não se pode construir um mundo bom com fundamentos corruptos”. Que o Brasil desperte antes que o ciclo autoritário se complete e não haja mais volta para uma ditadura travestida de defesa da democracia!
Zizi Martins (Alzemeri Martins Ribeiro de Britto) – é membro fundadora e Diretora Secretária da Lexum, Advogada, Procuradora do Estado da Bahia, Especialista em Direito Administrativo (UFBA), Especialista em Direito Religioso (Unievangélica), Mestre em Direito (UFPE), Doutora em Educação (UFBA), Pós-Doutora em Política, Comportamento e Mídia (PUC/SP). Atua também como consultora e pesquisadora na área de liderança e gestão pública, além de comentarista política. (Instagram: @zizimartinsoficial; Facebook: Zizi Martins; LinkedIn: Alzemeri Martins; X: @zizimartinss).
*Artigo publicado originalmente em Lexum.