Fazer proselitismo com tragédias pode, ser criticado por isso não
A decisão da Justiça de São Paulo que condenou o influenciador Bruno Monteiro Ayub, conhecido como Monark, a 1 ano, 1 mês e 11 dias de cadeia, por ofensas ao ministro do STF Flávio Dino (na época do fato que ocasionou a ação, ele ainda era ministro da Justiça), seria até cômica, ainda que abusiva, se tivesse se dado tão somente por ter chamado Dino de “gordola”, xingamento que a maior parte das manchetes destacou. Mas basta uma análise mais atenta à fala de Monark, e temos que a comicidade inicial desaparece e nos resta, mais uma vez, o sentimento de que esta é mais uma decisão abusiva de uma Justiça cada vez mais disposta a perseguir críticos de certos figurões da República.
O contexto da fala de Monark era uma crítica a Flávio Dino, por sua defesa, enquanto ministro de Estado, da censura e da aprovação de leis nesse sentido pelo parlamento. Para ser mais específico, criticava-se o uso de atentados em escolas como uma desculpa para aumentar o cerco à liberdade de expressão. Na época, eu escrevi um artigo intitulado “O medo como ferramenta política”, analisando minuciosamente essa intenção de Dino de a) usar a tragédia para justificar censura, b) usar a tragédia para atacar seus inimigos políticos.
A crítica que eu tecia era no mesmo espírito da de Monark, embora ele a apresentasse, como é de seu costume, de uma forma mais crua: “Olha o que esse Dino faz, olha o quão perverso é a mente de um homem, o quão malicioso e maldito é a mente desse cara. O cara está pegando crimes que aconteceram em escolas, envolvendo crianças, e tá usando a morte dessas crianças para justificar tirar a liberdade da população. (…) É um ato político para justificar a retirada das liberdades da população. Isso é maracutaia política que ele tá fazendo. Ele fica fazendo marabalismo [sic] lógico ali. Mas é muito perverso o que ele tá fazendo (…). Esse é um cara que tem nenhum escrúpulo. Se ele precisar usar a morte de uma criança para ganhar um ponto político, e ainda mais um ponto político nefasto e perverso, que visa a censurar você, ele vai usar, porque ele não se importa com a vida humana de nenhuma forma.”
De acordo com a juíza, expressões como “perverso”, “malicioso”, “maldito”, “sem escrúpulos”, “autoritário”, entre outras encontradas no trecho supracitado, tiveram intenção clara de ofender a pessoa do ministro e não estariam abarcadas na liberdade de expressão e na crítica legítima.
Ora, vivemos em um país em que, um dia após um lunático invadir uma creche e matar quatro crianças, o ministro da Justiça da ocasião acha oportuno publicar: “O acervo de causas que leva à ampliação de tragédias está bem visível: proliferação de ódio na sociedade, inclusive por uma internet desregulada e com empresas irresponsáveis; incentivos ao armamentismo e à ideologia da morte; agrupamentos nazistas e neonazistas”. É a mesma pessoa que dias após declararia: “A questão hoje remanescente é a responsabilização das pessoas que engendraram esse planejamento golpista durante meses, e os ecos, as reverberações da violência que permanecem. Por exemplo, estamos agora às voltas com essas ameaças relativas a escolas. Nós temos uma ligação entre uma coisa e outra”. Temos, portanto, o fato de que, nem bem os cadáveres daquelas crianças haviam esfriado, estava o ministro da Justiça usando suas mortes para justificar medidas de censura preferenciais — ainda que a lógica não nos permita fazer nexo de causalidade algum entre uma coisa e outra. Temos também que, explorando ainda mais a tragédia e sofrimento das famílias, ele produziu uma ilação repugnante entre os vândalos do 8 de janeiro e os atentados em escolas. Diante disso, o fato escandaloso é que um youtuber o xingou em uma live? Seriam “sem escrúpulos”, “malicioso”, ou mesmo “perverso” adjetivos realmente despropositados aqui?
Em outro artigo, cujo título não poderia ser menos claro em relação ao quanto prezo o ministro — “O Senado tem a obrigação moral de barrar Dino no STF” —, eu volto ao tema nestes termos: “Dino, cujo desempenho na segurança pública tem sido pífio, usou os atentados em escolas para proselitismo político e efetivamente fez politicagem em cima de cadáveres de crianças, chegando ao ponto de buscar uma associação “filosófica” lunática entre os perpetradores dos atentados e os vândalos do dia 8 de janeiro”. Repito, pois os fatos são insofismáveis: Dino “efetivamente fez politicagem em cima de cadáveres de crianças”. Em um país sério, a juíza estaria mandando Dino tomar vergonha na cara ao invés de condenar à prisão um cidadão que expressou sua indignação diante de fatos flagrantemente obscenos. Mas como esperar que aqueles que sequer conhecem o Brasil real se importem minimamente com o que seria um país sério? Se saíssem de sua redoma, perceberiam que essas palavras, aparentemente tão “terríveis”, que Monark expressou contra alguém pago com nosso dinheiro, não são nada em comparação com o que o cidadão comum expressa, na sua mais fina franqueza, contra muitos dos que, investidos em cargos públicos, traem sua confiança ou sequer chegam a ser dignos dela. “Gordola” não é nada perto do que o povo expressa, sejamos francos. São, contudo, palavras ainda assim. Palavras não têm pólvora nem o fio da navalha. Palavras não matam, não dão golpe de Estado, não invadem escolas, não chacinam crianças, como querem nos fazer crer. No máximo, elas podem ferir a sensibilidade de alguns, mas penso que homens públicos não podem se dar ao luxo de ter uma sensibilidade frágil; e, nesse caso, não é nem nunca foi a sensibilidade a questão, e sim o desejo de calar e encarcerar um crítico e, por extensão, pelo amedrontamento, a quem se aventure em críticas futuras.
Fontes: