Diante do inquisidor-mor, baixe os olhos e engula as críticas!

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Em um passado quase esmaecido de tão remoto, um inquisidor-mor reinava absoluto, impondo seus desejos a todos indistintamente, quer fossem membros da nobreza, do estamento burocrático de funcionários, das ligas de periodistas, de comerciantes e agricultores ou da plebe. Naquela terra singular, o rei, conhecido saqueador do tesouro, e outrora retirado da prisão e restituído ao trono por inquisidores por ele mesmo nomeados, dedicava seu tempo ao gozo dos luxos, aos arranjos espúrios e à estipulação de corveias impagáveis. A última palavra sobre todos os assuntos relevantes, porém, cabia ao inquisidor-mor, cujos decretos irregulares de prisões e mordaça inspiravam o temor reverencial àqueles indivíduos à míngua de liberdades, que não ousavam questionar suas determinações, seus métodos e muito menos suas alardeadas boas intenções de pacificar o reino mediante punições impiedosas aos ditos inimigos da coroa.

Afeito a viagens nababescas custeadas pelos cofres reais, certa vez o inquisidor-mor protagonizou uma façanha particularmente horripilante, talvez tão ou mais sórdida que as séries de detenções e censura. Eis que, pouco antes de deixar um país estrangeiro, o potentado, já na fila para pegar a embarcação de volta ao reino, encontrou uma família cujos membros, seus conterrâneos, o teriam chamado de “bandido” e “ladrão”. Xingamentos, note-se bem, não retratados pelos pintores da época, não registrados, como tais, pelas autoridades do porto, e nem mesmo testemunhados pelos demais viajantes. A única prova residia na palavra do inquisidor-mor, que, de regresso aos seus domínios, logo deu início a um procedimento contra seus próprios ofensores e ordenou a realização de buscas nas casas dos acusados, à cata de outras evidências.

Naquele sistema inquisitorial, era possível conceber a abertura de inquérito por iniciativa do julgador, assim como o desempenho de todas as funções processuais pela única pessoa do inquisidor, capaz de figurar como vítima, acusador e juiz a um só tempo. Na vigência daquela ordem político-social, o protagonismo cabia tão somente ao inquisidor sempre que tomasse ciência de fatos graves o suficiente para serem tidos como transtornos à ordem pública. Integrante de um autêntico tribunal de exceção, embora permanente, o inquisidor dispunha de plenos poderes para sair à procura das provas de culpabilidade do acusado e, mesmo na ausência de evidências, para pronunciar uma pena em nome da sociedade. Ora, sob essa ótica arcaica, poderia haver atentado mais gravoso à ordem pública que a manifestação de eventuais ofensas ao inquisidor-mor?

Como reportado pelos pouquíssimos periodistas questionadores das práticas banalizadas na época, o inquisidor-mor usurpou a jurisdição alheia para manter em curso no supremo tribunal inquisitorial um assunto cujo exame teria cabido a um colegiado de instância inferior, já que os supostos ofensores não ocupavam cargos políticos. Tratava-se de medida bem talhada ao sistema inquisitorial, onde indivíduos eram desprovidos de garantias e a única finalidade da justiça dos inquisidores consistia na aniquilação de seres endemoniados, que pusessem em dúvida a fé coletiva. Sob tais circunstâncias, a ritualística não passava de firula, que poderia e deveria ceder ao interesse público do resguardo das instituições do reino e da inatacabilidade das pessoas de seus representantes.

Ao longo de outros episódios daquele caso, os guardiães do reino – que, apesar do título, atuavam mesmo como guarda pretoriana dos inquisidores e do círculo palaciano – se debruçaram na feitura de relatórios. Em consonância com os pilares do sistema inquisitorial, os documentos elaborados possuíam teor meramente especulativo, já que ninguém havia sido capaz de colher outras provas contra a família que não a própria palavra do inquisidor-mor. Para ser ainda mais fiel aos relatos sobre aqueles tempos sombrios, havia supostas evidências produzidas no país estrangeiro, mas guardadas sob sigilo e mantidas inacessíveis a todos, inclusive aos acusados. Afinal, sob a égide daquele regime, seria necessária alguma outra evidência além do depoimento do figurão ungido, senhor das verdades e investido da sacrossanta missão de trazer paz a reinóis até então insuflados por hordas de extremistas e golpistas?

Nas palavras dos poucos periodistas indignados diante dos modos inquisitoriais de proceder, os relatórios ainda continham trechos de cartas trocadas entre os acusados e seus advogados, revelando uma prática da guarda pretoriana que hoje, para nós, soa como violação ao sigilo da relação entre causídicos e seus representados. Contudo, à luz do sistema então adotado, não havia que se falar em desrespeito a prerrogativas, pois sequer havia prerrogativas dos indivíduos no exercício de seus ofícios. Na época dos fatos, as partes não dispunham do status de sujeitos de direito, figurando, antes, como objeto de um procedimento única e exclusivamente voltado à apuração da verdade real aprioristicamente formulada pelo inquisidor e que, nessas circunstâncias, estava fadada a ser confirmada, em definitivo, pelo colegiado e acatada por toda uma sociedade.

Não à toa, o acusador-mor do reino não hesitou em oferecer sua denúncia formal contra os suspeitos, tendo baseado toda a sua peça acusatória tão somente na palavra do inquisidor-mor, já que, reitere-se, a única eventual evidência das tais ofensas ainda se encontrava trancada a sete chaves, e nenhuma outra havia sido produzida. Aliás, a apresentação da petição do procurador não passou de encenação para a prevenção de ruídos na sociedade em torno do autoritarismo do inquisidor-mor. De fato, como demonstrado por documentos da época, havia toda uma leva de indivíduos que passavam meses e até mais de um ano na masmorra por deliberação do figurão, sem qualquer comprovação do cometimento de delitos e sem o oferecimento de denúncia formal. Porém, em assuntos tão excepcionais quanto aquele envolvendo a família, até mesmo o inquisidor-mor e seus asseclas podem simular algumas concessões à formalidade dos ritos em busca de um grau mínimo de empatia e legitimidade junto à população.

Por ocasião daquele entrevero no porto estrangeiro, alguém familiarizado ao sistema inquisitorial então adotado poderia ter duvidado das consequências nefastas que viriam a ser suportadas pelos membros da família envolvida? Ora, os acusados destoaram da praxe dos demais reinóis, que, diante do inquisidor-mor, baixavam os olhos em gestual de subserviência e jamais o criticavam. Contrariamente à maioria esmagadora de seus compatriotas, os viajantes encararam uma autoridade nos olhos e parecem ter exercido o direito à crítica, em condutas próprias a indivíduos livres, mas incompatíveis com o autoritarismo imposto por inquisidores.

Transparência, publicidade, direitos ao contraditório, à ampla defesa e ao duplo grau de jurisdição, princípio do juiz natural, exclusão de tribunais de exceção e todas as demais garantias individuais previstas em uma Constituição – ainda bem que podemos contar com essas maravilhas do sistema acusatório. Podemos mesmo?

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Judiciário em Foco

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Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.

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