A retomada da democracia passa pela anistia
Primeiro, tivemos o escândalo intitulado Twitter Files Brazil, baseado em trocas de emails de funcionários do X (antigo Twitter), atestando o modus operandi abusivo de Moraes em relação às plataformas, incluindo desde o bloqueio de perfis no âmbito de processos sigilosos até a demanda por produção de relatórios com base no uso de determinadas hashtags. Depois, veio a chamada Vaza Toga, quando a Folha de São Paulo publicou uma série de reportagens demonstrando um esquema montado por Moraes quando ocupava a presidência do TSE para a produção irregular de relatórios que seriam e foram usados para a tomada de medidas judiciais contra bolsonaristas no âmbito do inquérito das fake news: conforme print enviado pelo juiz auxiliar Airton Vieira, para o então chefe da AEED (Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação), o próprio Moraes chegou a enviar postagens colhidas por conta própria demandando a produção de relatórios, que em nenhum lugar aparecem como tendo sido pedidos por Moraes, mas como se fossem uma produção “espontânea” da AEED. Comprovou-se, portanto, que, para além de ser simultaneamente vítima e julgador, Moraes também apresentou denúncias, tomando o cuidado de “lavar” essa informação com o uso político do órgão vinculado ao TSE. Agora, por meio de informações obtidas pelos jornalistas David Ágape e Eli Vieira e publicadas pelo jornalista americano Michael Shellenberger, temos a continuidade da Vaza Toga, com revelações ainda mais tenebrosas que as anteriores (que já eram bastante tenebrosas).
A nova fase da Vaza Toga dá conta de que Moraes criou uma força tarefa, uma verdadeira “unidade de inteligência”, usando a estrutura do TSE — já indicada anteriormente —, bem como funcionários do próprio STF, para investigar alvos do 08 janeiro, poucos dias após o fatídico dia. O objetivo da força tarefa era a produção de relatórios sobre postagens em redes sociais, bem como em grupos privados, dos cidadãos visados. Essa força-tarefa produzia certidões informais (e ilegais) com base nas postagens em redes sociais. O status de “certidão positiva” colaborava para manter a pessoa presa. Dentre os critérios que poderiam fazer com que uma certidão fosse qualificada como positiva, estava o compartilhamento de imagens dos protestos, tecer críticas ao STF, bem como a Lula, participar de grupos no Whatsapp e Instagram, compartilhar dita “desinformação”, seguir páginas de direita e, pasmem, até mesmo usar as cores verde e amarelo. Apenas aqueles que nunca expressaram opiniões políticas em suas redes sociais recebiam certidões negativas e podiam, em tese, ser soltos.
A força-tarefa trabalhava em ritmo frenético sob a coordenação da chefe de gabinete de Moraes, Cristina Yukiko Kusahara, que, mesmo lotada no STF e sem qualquer autoridade no TSE, dava ordens e cobrava resultados da equipe do tribunal eleitoral, então coordenada por Eduardo Tagliaferro. Além das postagens, a equipe montada por Moraes se valeu de dados biométricos do banco de dados do TSE (GestBio), acessando informações como impressões digitais, fotografias e assinaturas constantes no cadastro eleitoral.
Se temos dito que o STF reiteradamente suplanta as funções do poder Legislativo, resta claro que Moraes não só suplantou as funções do Ministério Público, como, ao buscar razões de natureza ideológica para justificar prisões, violou, mais uma vez, o devido processo legal. Tanto é assim que as tais certidões nunca foram compartilhadas com os advogados de defesa e nunca teriam vindo a conhecimento público, não fosse a coragem de jornalistas dignos de sua profissão.
Deve estar claro para qualquer pessoa que entende o que significa um estado de Direto que o cessamento da liberdade, sendo a exceção — posto que a liberdade é a regra —, deve estar muito bem fundamentado, sendo dado a quem teve a liberdade tolhida acesso a tudo aquilo que serviu de base para a prisão, ou sua manutenção, até mesmo para que a defesa possa fazer seu trabalho. Temos que centenas de cidadãos permaneceram na cadeia com base em relatórios que nunca viram a luz do dia, posto que feitos por meio de um grupo de inteligência secreto, montado sem qualquer base legal. Isso, por si só, já seria o suficiente para a nulidade dos processos relacionados ao 08 de janeiro.
Também deve estar claro que a atuação da força-tarefa secreta foi, sob os auspícios de Alexandre de Moraes, ideológica. Em um dos casos mais absurdos, o vendedor ambulante Ademir Domingos Pinto da Silva, que não participou dos atos de depredação do dia 08, tendo chegado à capital já de noite, recebeu uma certidão positiva em razão de tweets de 2018 em que criticava Lula e o PT. Na retórica alexandrina, em que opiniões são tratadas como violência de fato, criticar o STF ou o PT pode ser prova de que você tomou parte em uma pretensa tentativa de golpe de Estado. Nada demonstra mais claramente a farsa dessa narrativa do que as recentes revelações. Em um dado momento, cobrando celeridade da equipe do TSE, Cristina Kusahara argumenta que a Procuradoria-Geral da República havia pedido a libertação de parte dos presos, mas que Moraes não os soltaria até que suas redes sociais fossem devidamente examinadas. Nunca foi, portanto, a participação em qualquer ato violento, mas sim a mera emissão de opiniões em redes sociais o que manteve a prisão, bem como basilou a condenação da maior parte dos implicados no 08 de janeiro.
Se alguém tem alguma dúvida de como esta força-tarefa subverteu o devido processo legal, basta que vejam a mensagem de despedida do juiz auxiliar Airton Vieira, quando do desmantelamento do grupo de Whatsapp em 1º de março de 2023: “despeço-me aqui, singelamente […] que nas audiências de custódia possamos dar a cada um o que lhe é de direito: a prisão”. Mais uma para a conta da nulidade. Ora, é mais do que evidente que estas pessoas já estavam condenadas e que a razão era nada mais nada menos do que serem bolsonaristas ou tecerem críticas ao STF e ao PT.
Já defendi, em face de diversas outras ilegalidades e arbitrariedades, que necessitamos de uma anistia; as revelações da Vaza Toga 2 demonstram que mais do que um desiderato político, a anistia é uma pauta humanitária e necessária para resgatar o Estado de Direito e a democracia no Brasil. Continue o Congresso a negar a anistia, e o perfilamento ideológico de cidadãos para fins de perseguição e proscrição do debate público, bem como para, claramente, beneficiar um partido político de esquerda, será normalizado. Por muito menos do que isso — conversas entre o juiz de primeira instância e procuradores —, desmantelaram a Lava Jato, a diferença sendo que naquele caso os afetados por eventuais abusos podiam recorrer a outras instâncias. Se algo próximo dessa força-tarefa secreta fosse criada em qualquer outra instância e qualquer outro tribunal do país, o destino líquido e certo seria a nulidade de todos os processos que daí se originassem. Não tendo os alvos dessa caça às bruxas ideológica possibilidade de recurso a outros tribunais, resta a anistia. Sem prejuízo de outras medidas, como a punição daqueles que têm diuturnamente abusado de sua autoridade — em especial, Moraes, que deve ser impichado —, a anistia é uma pauta impostergável e conditio sine qua non para que o Brasil recupere sua democracia de forma plena.
Fontes:
https://www.gazetadopovo.com.br/republica/mensagens-vazadas-justica-paralela-moraes-8-janeiro/
https://www.cnnbrasil.com.br/politica/moraes-8-de-janeiro-prisoes-dossie/