A permanência de Moraes no STF é uma obscenidade e um atentado à liberdade
Em um artigo publicado neste espaço em abril deste ano, em que analiso o escândalo Twitter Files Brazil, teci uma crítica ao que muito apropriadamente temos apontado como uma tentativa de trazer à realidade um ministério da Verdade com inspiração orwelliana, crítica que convém reproduzir também aqui: “Embora isso não seja tratado diretamente nos tweets de Shellenberger, convém lembrar que o TSE inaugurou há pouco um monstrengo chamado Centro Integrado de Enfrentamento à Desinformação e Defesa da Democracia (CIEDDE), que, na prática, já está funcionando como um ministério da Verdade. Podemos estar certos de que todo o modus operandi autoritário, censor e ilegal revelado pelo Twitter Files – Brazil, muito longe de ser a exceção, será a regra, e que Moraes já tem em suas mãos a ferramenta que desejava para dizer o que pode ou não ser dito, que perfil deve ser derrubado, quem deve ser perseguido, etc.”
O CIEDDE é herdeiro direto da AEED (Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação) do TSE. Faço uma breve cronologia. A AEED foi criada em 2022 durante a gestão do ministro Edson Fachin, na época presidente do TSE. Já sob a presidência de Alexandre de Moraes, a AEED foi turbinada, recebendo poder de polícia no dito “combate à desinformação”. Já em março de 2024, foi criado oficialmente o Centro Integrado de Enfrentamento à Desinformação e Defesa da Democracia (CIEDDE) como um passo a mais para institucionalizar o modus operandi de Moraes.
Pois bem, se eu dizia, em meu artigo de abril, que o CIEDDE funcionaria como um ministério da Verdade e que Moraes finalmente teria em suas mãos “a ferramenta que desejava para dizer o que pode ou não ser dito”, ignorava que a própria AEED já estava servindo a esse fim de forma espúria (não que não pudéssemos ter suspeitado). A Folha de S. Paulo revela agora que, para além de o órgão do TSE ter sido usado para turbinar os inquéritos que nunca têm fim, em especial o inquérito das fake news, ao menos parte dos relatórios produzidos e que motivaram medidas judiciais contra bolsonaristas foram produzidos a pedido do próprio Moraes, isto é, para além do já promíscuo acúmulo dos papéis de “vítima”, investigador e julgador, ele também foi acusador, ou “denunciador”.
O esquema, e julgo muito adequado falar em esquema, funcionava da seguinte forma: Moraes demandava que seus assessores no STF solicitassem relatórios à AEED no TSE, que visavam a alimentar inquéritos contra bolsonaristas no STF, tanto durante quanto após as eleições (as mensagens obtidas pela Folha vão de agosto de 2022 a maio de 2023). Na suprema corte, o principal assessor que figura na troca de mensagens via WhatsApp é o juiz instrutor Airton Vieira. Já no TSE, o interlocutor era Eduardo Tagliaferro, à época chefe do AEED. A mando de Moraes, Airton Vieira pedia de maneira informal a Eduardo Tagliaferro relatórios contra aliados do então presidente Jair Bolsonaro para abastecer o famigerado inquérito das fake news. Contudo, em nenhum lugar figura de forma oficial que esses relatórios tenham sido solicitados a pedido de Moraes, sendo que alguns eram tratados como “de ordem” de Airton e em outros como se fosse uma denúncia “anônima”. Destaca a reportagem que “ao menos parte desses documentos foi usada pelo ministro para embasar medidas criminais contra bolsonaristas, como cancelamento de passaportes, bloqueio de redes sociais e intimações para depoimento à Polícia Federal.”
Um caso que ilustra o esquema tem como alvo Rodrigo Constantino. Airton Vieira chega a cobrar alterações em relatório já produzido sobre Constantino, enviando prints de postagens feitas pelo mesmo. Para não restarem dúvidas de que o juiz instrutor estava cumprindo ordens: “Quem mandou isso aí, exatamente agora, foi o ministro e mandou dizendo: vocês querem que eu faça o laudo? Ele tá assim, ele cismou com isso aí”. Ou seja, era o próprio Moraes quem estava fornecendo os fatos para subsidiar um relatório, que, após apresentado, poderia ser usado, como se fosse uma apuração independente da AEED, para justificar as próprias medidas de Moraes dentro do seu vasto repertório: bloqueio de redes sociais, confisco de passaportes, multas, prisões etc. O assessor do ministro segue a mensagem de áudio de forma ainda mais reveladora: “Como ele está esses dias sem sessão, ele está com tempo para ficar procurando”. Significaria isso que, por estar com tempo livre, o próprio Moraes estava vasculhando as redes sociais de seus desafetos em busca de postagens “incriminadoras”? É o que parece.
Para ilustrar ainda mais a relação espúria entre o gabinete de Moraes, no STF, e a AEED, no TSE, Airton Vieira compartilhou com Eduardo Tagliaferro no dia 1º de janeiro de 2023 cópia de decisões sigilosas oriundas do inquérito das fake news “produzidas com base no relatório enviado de maneira supostamente espontânea”. Nessas decisões, Moraes determina a quebra de sigilo bancário de Constantino e Paulo Figueiredo (neto do ex-presidente João Figueiredo), cancelamento de seus passaportes, bloqueio das redes sociais e intimações para prestarem depoimento à Polícia Federal.
Para ficar ainda mais claro que o mesmo juiz que estava determinando essa enormidade de medidas era o instigador da coisa, no dia 22 de novembro, Airton Vieira envia um print de uma mensagem do próprio Moraes enviando postagens de Rodrigo Constantino e dizendo de forma clara: “Peça para o Eduardo analisar as mensagens desse [Constantino] para vermos se dá para bloquear e prever multa”. “Para vermos se dá para bloquear e prever multa” é a confissão de que buscava a todo custo encontrar uma razão para alijar mais um crítico da vida pública. Eduardo Tagliaferro confirmou o recebimento da mensagem de Airton Vieira com o print de Moraes e ainda completou “Está para derrubada”.
O que trato aqui por esquema pode ser bem entendido como uma “lavagem de informações” em que, para que o próprio juiz não desse muito na cara como o denunciador, os relatórios eram solicitados informalmente e depois recepcionados no inquérito das fake news como se fossem de iniciativa da AEED e mascarados até mesmo como denúncias anônimas. Se a qualquer tempo isso já seria um atentado à liberdade, lembremos que isso ocorreu mesmo durante o período eleitoral, à época presidido por ninguém mais ninguém menos do que o próprio Moraes. Efetivamente, o órgão turbinado por ele com poder de polícia, ele que presidia o TSE, foi convenientemente usado para abastecer, sob demanda, o inquérito das fake news, sob relatoria de Moraes, no âmbito do STF. Tudo isso já seria indecoroso, ainda que estivéssemos falando de um inquérito legal e legitimamente aberto, mas temos, por fim, que, aberto de ofício e já tendo e muito extrapolado suas supostas justificativas iniciais, tal inquérito é um escárnio ao direito. Para um inquérito ilegal e abusivo, muito apropriado que se tome mão de subterfúgios também ilegais e abusivos.
É uma obscenidade que esse sujeito ainda não tenha sofrido um impeachment, e mais ainda que seus pares sejam cúmplices do que, para qualquer pessoa provida com inteligência, é claramente um modus operandi ilegal e abusivo que já se arrasta há mais de cinco anos.
Fontes: