A interpretação judicial e a impenhorabilidade do bem de família

Print Friendly, PDF & Email

A Lei nº 8.009/1990 é clara ao estabelecer que o bem de família é impenhorável, ou seja, não pode ser tomado para pagar dívidas, salvo em situações expressamente previstas na própria legislação. No entanto, uma recente decisão do Judiciário paulista, proferida no bojo do processo nº 0017405-12.2023.8.26.0562[1], relativizou essa proteção, permitindo a penhora de um imóvel de alto valor sob o argumento de que o devedor poderia adquirir outra moradia digna.

O fundamento da decisão é sedutor e, aparentemente, justo. Ora, o devedor poderia muito bem vender (voluntária ou forçadamente) o seu imóvel de alto padrão, saldar a dívida e ainda lhe sobraria recursos suficientes para comprar outro imóvel para viver.

Outros ainda justificariam a decisão argumentando que, não raras vezes, o devedor se utiliza de artifícios para blindar seu patrimônio — como transferir bens para o nome da família ou adquirir imóveis de alto valor como residência, com o objetivo de frustrar o cumprimento de obrigações legítimas. Embora esse risco exista, é incorreto — e perigoso — partir dessa premissa para flexibilizar uma norma de proteção objetiva como a da impenhorabilidade do bem de família.

Vale mencionar que a Lei nº 8.009/1990 já contempla, em seu próprio corpo, exceções à regra da impenhorabilidade, como nos casos de dívidas decorrentes de financiamento do próprio imóvel, pensão alimentícia ou tributos incidentes sobre o bem. Além disso, o ordenamento jurídico oferece instrumentos próprios para combater fraudes, como a ação pauliana e a desconsideração da personalidade jurídica. O combate à má-fé deve ocorrer por meios específicos, não por meio da erosão de garantias válidas e legítimas.

Permitir que a suspeita abstrata de fraude — sem prova cabal — sirva de justificativa para relativizar uma regra legal clara é institucionalizar a desconfiança como critério hermenêutico. E isso, como alerta Randy Barnett, professor da Universidade de Georgetown e renomado estudioso do constitucionalismo originalista, compromete não apenas o direito individual, mas a própria previsibilidade do sistema jurídico, uma das três funções essenciais da ordem legal conforme descritas em The Structure of Liberty. Não se pode combater a exceção com a anulação da regra.

Portanto, essa decisão levanta um questionamento essencial: cabe ao juiz aplicar a lei como ela é ou adaptá-la com base em princípios subjetivos de justiça? Além disso, será que a relativização de um valor fundamental como o direito de propriedade é benéfica para o ordenamento jurídico?

Criada para garantir a estabilidade das famílias brasileiras, essa legislação tem como objetivo impedir que dívidas pessoais resultem na perda do lar. Seu artigo 1º é direto ao afirmar que “o imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida (…), salvo nas hipóteses previstas nesta lei”. Em nenhum momento, o texto legal diferencia imóveis de alto e baixo valor, assegurando a proteção da moradia familiar independentemente de seu preço ou localização. A lei é absolutamente clara e objetiva, não demandando qualquer esforço interpretativo para entendimento do seu significado, sendo certo que por tratar da proteção de um direito fundamental a sua aplicação já demandaria uma interpretação literal e restritiva, ou seja, sem brechas para extrapolações contrárias ao sentido do texto.

A argumentação do magistrado — ao afirmar que o direito tutelado pelo instituto da impenhorabilidade do bem de família seria apenas o direito à moradia, e não o direito à propriedade — revela uma leitura reducionista e equivocada da Constituição e da Lei nº 8.009/1990. Essa distinção artificial entre moradia e propriedade ignora que, no sistema jurídico brasileiro, ambos os direitos são igualmente fundamentais e frequentemente se entrelaçam.

A moradia digna, prevista no artigo 6º da Constituição, não existe de forma autônoma, abstrata ou sem base material. Ela se realiza, concretamente, por meio do direito de propriedade garantido no artigo 5º, inciso XXII, da mesma Carta. A proteção legal do imóvel familiar, conforme expressamente disposto na Lei nº 8.009/1990, é uma manifestação simultânea de ambos os direitos: moradia e propriedade. Não se trata, portanto, de um direito à moradia “contra” a propriedade, mas da efetivação da moradia por meio da estabilidade do domínio sobre o bem residencial — o imóvel, conforme palavra utilizada pelo legislador.

A tentativa de dissociá-los, como fez o julgador, para tentar modificar o entendimento quanto à proteção conferida pela lei ao imóvel de família, sob a justificativa de razoabilidade, não configura uma mera interpretação, mas uma verdadeira alteração legislativa feita pelo Judiciário, extrapolando os limites da função jurisdicional.

Randy Barnett, em sua obra Restoring the Lost Constitution: The Presumption of Liberty, analisa como, a partir da década de 30 do século passado, a Suprema Corte americana desconsiderou certas partes do texto constitucional que protegiam a liberdade do cidadão contra o poder governamental. No fundo, a questão tratada pelo renomado professor é a de que o papel dos juízes é o de dizer o que a lei é, não o que gostariam que fosse, sob pena de se desvirtuar o Estado de Direito (Rule of Law). Essa ideia está no cerne da teoria do originalismo do significado público (Public Meaning Originalism), que defende que as leis devem ser interpretadas conforme seu sentido original no momento da promulgação. No caso analisado, o juiz não apenas interpretou a Lei nº 8.009/1990, mas criou uma regra: se o imóvel for de alto valor, ele pode ser penhorado. Esse entendimento não encontra respaldo no texto legal e, ao ser aplicado, viola princípios fundamentais, como o direito de propriedade (art. 5º, XXII da Constituição Federal de 1988) e a segurança jurídica.

Para Barnett, um Judiciário que, ao invés de aplicar a lei, decide com base em conceitos vagos desvirtua o Estado de Direito e coloca o poder nas mãos de juízes – que não foram eleitos e, portanto, não representam os cidadãos –, que passam a legislar sob pretexto de interpretar. Essa reflexão é pertinente ao caso, pois demonstra como a subjetividade judicial pode distorcer a aplicação da lei e transformar juízes em verdadeiros legisladores, comprometendo a segurança jurídica.

Além disso, Barnett destaca a importância do juramento constitucional feito por autoridades públicas. Segundo ele, ao prestar juramento de defesa da Constituição, os magistrados assumem um compromisso solene de aplicar a lei conforme seu significado original, sem distorções. Quando um juiz pratica o ativismo judicial e altera o conteúdo normativo de uma lei, ele está, na prática, violando esse juramento e traindo o compromisso assumido com a ordem constitucional. Se a lei diz que o bem de família é impenhorável, não cabe ao juiz modificar esse entendimento com base em sua percepção pessoal de justiça ou equidade.

Na obra já citada The Structure of Liberty: Justice and the Rule of Law, Barnett analisa três problemas que um sistema jurídico deve resolver: o do conhecimento, o do interesse e o do poder. O caso em questão ilustra bem o problema do poder, pois, ao se arrogar o direito de reinterpretar a norma conforme valores subjetivos, o juiz atua fora de sua competência, comprometendo a legitimidade do sistema como um todo. Para Barnett, portanto, um sistema jurídico só pode ser considerado legítimo quando as normas são aplicadas conforme seu significado original. Alterar o sentido da lei por meio da interpretação judicial não apenas subverte a ordem democrática, mas também coloca em risco a própria estabilidade do Estado de Direito.

O Constitucionalismo Republicano enfatiza a separação dos poderes como um pilar essencial do Estado Democrático. A Constituição concede ao Poder Legislativo a função de criar e modificar leis, enquanto ao Judiciário cabe aplicá-las. Caso a sociedade entenda que imóveis de alto valor devem ser tratados de forma diferente pela Lei nº 8.009/1990, essa alteração deve ser feita pelo Congresso Nacional, e não por uma decisão judicial isolada, refletida, ou não, na jurisprudência de um tribunal.

O juiz, ao relativizar a proteção legal, usurpou uma prerrogativa legislativa, criando insegurança jurídica para milhares de famílias. Embora o caso concreto envolva um bem considerado de alto padrão, a lógica da decisão — se normalizada — abre precedentes perigosos. Se amanhã o critério for subjetivamente definido por outro magistrado, o que hoje é luxo pode amanhã ser visto como “acima do necessário”, mesmo entre famílias de classe média ou baixa.

A jurisprudência, ao perder o lastro do texto legal, se torna volátil, e o pobre, que antes se via protegido pela clareza da lei, agora depende do entendimento individual do julgador. A estabilidade jurídica, fundamental para todos, é especialmente preciosa para os mais vulneráveis. O precedente que hoje atinge o patrimônio do mais rico pode, no próximo julgamento, atingir a única segurança material do mais pobre: seu lar.

Sendo assim, a decisão analisada, ao permitir a penhora de um bem de família de alto valor, representa um grave caso de ativismo judicial. Cria-se um critério que a lei não estabeleceu, o que não apenas viola o direito de propriedade e a segurança jurídica, mas também subverte o princípio da separação de poderes. O Judiciário, ao agir assim, abandona seu papel de guardião das leis e se transforma em legislador, corroendo as bases do Estado de Direito. O respeito à legalidade e ao significado original das normas — conforme defende o Constitucionalismo Republicano e autores como Randy Barnett — é essencial para a preservação da justiça, da previsibilidade e da liberdade dos cidadãos.

*Mario Conforti – Advogado, pós-graduado pela FGV Direito Rio, sócio do escritório 3C LAW, fundador da Lexum.

[1] Conforme divulgado no informativo Conjur do dia 1º de abril de 2025 (Se for de alto padrão, bem de família pode ser executado).

Faça uma doação para o Instituto Liberal. Realize um PIX com o valor que desejar. Você poderá copiar a chave PIX ou escanear o QR Code abaixo:

Copie a chave PIX do IL:

28.014.876/0001-06

Escaneie o QR Code abaixo:

Lexum

Lexum

A Lexum é uma associação dedicada à defesa da liberdade e do Estado de Direito no Brasil. Fundamentamos nossa atuação em três princípios essenciais: (1) o Estado existe para preservar a liberdade; (2) A separação de poderes é essencial para a nossa Constituição Federal; e, (3) A função do Judiciário é dizer o que a lei é, não o que ela deveria ser. Promovemos um espaço para advogados liberais clássicos, libertários e conservadores, estimulando o livre debate e o intercâmbio de ideias.

Pular para o conteúdo