A dona do jogo eleitoral
A transição de comando no TSE tem sido enxergada por muitos como uma sinalização de abrandamento no rígido padrão repressivo adotado pela corte nos últimos dois anos, como se a troca de lideranças pudesse representar uma verdadeira glasnost e, com ela, o início de uma era de maior transparência e apreço às liberdades. Se, conforme sustentado pela narrativa oficial, a “ameaça golpista” foi expurgada pelas medidas antidemocráticas tomadas pelo alardeado “salvador” da nossa democracia – culpe a imprensa global pelo paradoxo, caro leitor -, então o varão musculoso, quase sempre de punhos cerrados e testa franzida, pode dar por encerrada sua missão e passar o bastão a uma senhora de compleição frágil e fala mansa, ponderada e religiosa. Contudo, as doses excessivas de parvoíce e puxa-saquismo levam a grande mídia a transmitir à população uma percepção falaciosa do cenário para a corrida eleitoral deste ano. A julgar por robustos indicativos, o pleito não deverá transcorrer em mares tão plácidos quanto se diz.
O primeiro fator inquietante reside no perfil camaleônico da atual dona e senhora do cargo. A juíza mineira, outrora conhecida como a paladina do “cala boca já morreu”, passou por uma transformação radical em sua postura relativa à liberdade de expressão, bem ao sabor das circunstâncias e das conveniências, suas próprias, por óbvio. Tanto assim que, nas últimas eleições de 22, chancelou a censura prévia à produtora Brasil Paralelo, medida por ela mesma reconhecida como tendo sido inconstitucional, mas, no sottovoce esganiçado da magistrada, perfeitamente admissível, desde que só até o final do pleito. Na mesma toada, acaba de receber uma ação penal contra o atual senador Sérgio Moro em decorrência de uma piada de festa junina, contada em círculo íntimo e não levada a público pelo parlamentar.
Se, ainda assim, você seguir acreditando no respeito da togada à livre manifestação opinativa, sugiro que ouça seu breve discurso de posse à frente da corte eleitoral. No púlpito, após tecer rasgados elogios ao nosso censor-mor, ora retirante do cargo, por sua atuação firme contra “antidemocratas”, direcionou o foco de sua fala ao fator que, no seu entender, diferenciaria o momento atual de todos os períodos eleitorais pretéritos: o suposto ódio e a violência, segundo ela utilizados como ferramenta para “garrotear as liberdades e contaminar escolhas”.
Ávida por equiparar o ambiente das redes sociais ao inferno dantesco, a magistrada, em mais uma de suas já conhecidas frases de efeito, não hesitou em afirmar que “o algoritmo do ódio, invisível e presente, senta-se à mesa de todos.” A que “algoritmo” teria se referido a togada? A qual espécie de “ódio” teria endereçado sua censura? Certamente não se tratava, ali, de uma reprovação às manifestações de ódio mais veementes com as quais já deparei nos últimos tempos, a saber, os despachos do colega por ela tão louvado. Como tantas vezes comentado aqui, as ordens alexandrinas de prisões e suspensão de perfis ostentam frases inteiras em letras maiúsculas, pontos de exclamação, assim como a adjetivação de investigados e réus como “golpistas” e/ou “covardes”, em manobras linguísticas indicativas de uma ira incompatível com a imparcialidade inerente à toga. Porém, não é o “ódio” destilado por uma autoridade de mando que inquieta a magistrada e sim os xingamentos de internet, desprovidos de outros efeitos práticos que não os leves aborrecimentos instantâneos para os envolvidos.
No ato da investidura no cargo, a mensagem da magistrada não poderia ter sido mais clara. Assim como na gestão anterior, a justiça eleitoral seguirá intolerante para com os tais discursos de “ódio”, substantivo vago o suficiente para ser significado e até ressignificado ao sabor dos desejos dos membros do tribunal.
Tão preocupante quanto a atitude da pessoa física à frente da corte é o nosso arcabouço normativo. Embora o Legislativo tenha conseguido embarreirar o famigerado PL da Censura e a maioria parlamentar tenha mantido o salutar veto 46 de Bolsonaro a um dispositivo que teria criminalizado os chamados “delitos de opinião”, a ameaça à liberdade de expressão segue bem viva na Resolução 23.732/24 do TSE. Avocando indevidamente para si prerrogativa exclusiva do congresso, o tribunal utilizou a norma para legislar e estipulou, para o provedor de internet, uma obrigação de rastreio e indisponibilização de teor pretensamente “inadequado”.
Em dispositivo capaz de tirar o sono de qualquer indivíduo com aspirações à liberdade, a corte estipulou uma responsabilização a provedores que não indisponibilizarem conteúdos relativos a: “atos antidemocráticos”; “fatos notoriamente inverídicos ou gravemente descontextualizados”; “grave ameaça, direta e imediata, de violência ou incitação à violência contra a integridade física de membros e servidores da Justiça eleitoral e Ministério Público eleitoral ou contra a infraestrutura física do Poder Judiciário”; e “comportamento ou discurso de ódio, inclusive promoção de racismo, homofobia, ideologias nazistas, fascistas ou odiosas contra uma pessoa ou grupo por preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade, religião e quaisquer outras formas de discriminação.” Mais uma vez, apostou em um rol extenso de expressões e termos permeados pela indefinição e pela subjetividade e que, por isso mesmo, podem abarcar qualquer tipo de conduta, inclusive todas as legítimas manifestações opinativas e o livre exercício do direito de crítica.
Como se não bastassem tantos abusos, a norma ainda vinculou a atuação dos juízes eleitorais de todo o país às “decisões colegiadas do Tribunal Superior Eleitoral sobre a mesma matéria.” Em outras palavras, qualquer litígio sobre dizeres relacionados ao funcionamento das urnas e assuntos correlatos será solucionado tão somente à luz dos julgados da cúpula eleitoral, o que implica a concentração excessiva de poderes nas mãos da elite togada e o fomento aos arbítrios em série.
Por fim, e não menos importante, convém enxergar todos os aspectos articulados acima dentro de um Zeitgeist de crescente autoritarismo togado. A propósito, não é demais aludir à contratação recente, pelo STF, ao custo “módico” de R$ 350.000,00, de empresa encarregada de monitorar perfis oficiais da corte, assim como as palavras e temas de interesse por ela definidos . Formação de uma inteligência paralela a serviço de togados? A gravidade dos fatos fala por si.
Também causam arrepios os recentes acordos firmados entre plataformas digitais e a AGU, assim como entre as big techs e o Supremo, todos destinados à varredura de conteúdos digitais tidos pelos figurões como “impróprios”. Assim, em pleno ano de eleições, corremos o risco concreto de ver candidatos e partidos oposicionistas ao grupo da situação serem impedidos, a priori, de tecer qualquer comentário minimamente crítico a seus adversários. Se assim for, testemunharemos uma corrida eleitoral onde será proibido fazer o legítimo jogo político; ou até pior: onde o único jogo “admitido” será o dos “amigos da corte”. Em analogia com o universo esportivo, uma partida onde apenas um time efetivamente entre em campo.
Como termômetro indiscutível do grau de autoritarismo ao qual chegamos, deparamos com a recente visita da delegação oficial do Paquistão ao TSE e com toda a admiração manifestada pelos estrangeiros diante do nosso sistema eleitoral e, em particular, das nossas “sacrossantas” urnas eletrônicas . Bem conhecemos o regime vigente na distante teocracia do oriente e bem podemos imaginar os fatores que tenham causado impressão tão positivamente viva em nossos visitantes.
O “sertão” da nossa togada é do tamanho do mundo e, nas veredas mortas, a alma humana pode deixar de lado suas convicções mais nobres na busca pelo poder a qualquer custo. Como sabemos todos, “no sertão, Deus mesmo, quando vier, que venha armado.” Antes que alguém me acuse de insinuação “antidemocrática”, apenas me permito parafrasear o grandioso Guimarães Rosa, aliás, conterrâneo e ídolo literário da primeira magistrada eleitoral. Que tenhamos a coragem de adentrar o “sertão” e de levar a cabo a nossa travessia.