A Anistia e a Constituição
A Constituição, no artigo 48, inciso VIII, atribui ao Congresso Nacional a competência para conceder anistia. O mesmo poder que cria crimes é também o poder de descriminalizar. Num Estado Democrático de Direito, em que todo poder emana do povo (art. 1º, parágrafo único), criminalizar ou perdoar são decisões do povo, por seus representantes eleitos. Ao Judiciário e aos intérpretes cabe cumprir essa vontade democrática — concordem ou não com ela. Isso é o governo das leis, não o governo dos juristas. Afinal, a democracia não é regime de sábios ou iluminados, mas governo do povo, com todas as suas mundividências e idiossincrasias.
Em democracias maduras, a autoridade legislativa só se restringe quando a Constituição assim o determina de forma clara. No caso da anistia, por exemplo, no art. 5º, XLIII, proíbem-se anistia e graça apenas para crimes de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes, terrorismo e hediondos. Esses dispositivos funcionam como autênticos pré-compromissos civilizatórios (Jon Elster), pactos que limitam as escolhas da maioria para assegurar a estabilidade do regime e evitar retrocessos sociais. São como o “apelo do povo sóbrio ao povo bêbado” (Friedrich Hayek), freios que contêm paixões momentâneas em nome da continuidade democrática.
Quando, porém, intérpretes, políticos ou ativistas ampliam tais limites por conta própria, a Constituição é posta de lado e a autoridade democrática é suspensa. Isso acontece quando se faz analogia entre crimes imprescritíveis e crimes insuscetíveis de anistia, para impedí-la. Imputa-se à Constituição o que ela não dissse. Assim agindo, ignoram que o constituinte sabia a diferença e diferenciou as situações, num momento em que saíamos a ditadura. Na sessão de 22 de fevereiro de 1988, a Assembleia Nacional Constituinte aprovou o Destaque nº 2.184, de autoria do Deputado Carlos Alberto Caó, retirando a proibição de anistia a crimes contra o Estado Democrático de Direito.
Portanto, interpretações criativas, não só contrariam o constituinte, como castram o poder do Parlamento, por analogia, pois aí quem passa a decidir não é o povo, mas o intérprete. Tal inversão, mina a confiança nas instituições e na própria democracia, alimentando discursos disruptivos. O cidadão, alijado do processo decisório, perde o sentimento de inclusão e a descrença institucional encontra terreno fértil para o “apelo aos céus”, de que falava John Locke. Produz mais mal do que bem.
É claro que o Direito não se reduz ao texto escrito. Existem normas implícitas e lógicas que derivam de proibições explícitas — quando se proíbe o ingresso de cães numa plataforma, proíbe-se, pelos princípios subjacentes, também o ingresso de ursos. Contudo, não estamos a falar de condutas privadas, mas de autonomia pública; e não se pode ignorar que a expansão da interpretação reduz a autoridade do princípio democrático, tornando-o um jogo de cartas marcadas em que só uns ganham. É constitucionalmente errado transpor estes raciocínios analógicos, para restringir a função legislativa, núcleo vital da democracia.
Criar barreiras ao Congresso, a partir de preferências morais ou filosóficas implícitas, não previstas na Constituição, é solapar a legitimidade do regime democrático. Calar os diferentes anseios, sem norma constitucional, não gerar paz, pois paz sem voz para criminalizar ou anistiar, não é paz; é medo.
No Brasil, tornou-se sedutor aos juristas invocar valores, filosofias ou teorias — às vezes até ironias e piadas — para impor limites inexistentes, imaginados ou desejados, ao poder do Legislativo. Desejos não são normas. A Constituição só limita a democracia quando o faz expressa e claramente: por regras de competência, separação de poderes, mandamentos de legislar ou direitos fundamentais – estes sim expressos, implícitos ou decorrentes. Ampliar restrições à anistia, por interpretaçâo, é erosão da Constituição.
No fim, a lição é simples: o poder do Congresso de anistiar atos é amplo, e engloba mesmo crimes e fatos tidos como moralmente execráveis, como os imputados aos autores do 08 de janeiro. Se há erros da democracia, eles se corrigem com mais democracia. A anistia é um ato político por excelência, situado no âmbito do Parlamento. Afora vedações expressas, sua concessão é válida. Interditá-la é discurso de juristas que querem solapar o poder e a autoridade democrática, porque dela discordam, o que diminui, castra e desacredita o processo político-democrático de resolver os conflitos sociais. Por isso, é constitucional a anistia discutida no Congresso Nacional.
*Luis Clovis M da Rocha Jr. – Doutor em Direito pela Universidade de Lisboa. Doutor em Direito – Univali. Professor. Juiz de Direito.
*Artigo publicado originalmente no site da Lexum.