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José Guilherme Merquior contra Michel Foucault e o “Niilismo de Cátedra”

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Em geral estamos menos acostumados a tecer críticas elaboradas sobre os autores mais influentes da esquerda, com o fim de desmontá-los diretamente na fonte, do que a apenas recorrer a desqualificações morais – na maioria das vezes corretas e adequadas, mas que, isoladas, são insuficientes para demonstrar a seriedade de nossos propósitos críticos.

O grande liberal brasileiro José Guilherme Merquior (1941-1991), que legou rica contribuição para a compreensão da história global do liberalismo em seu O Liberalismo Antigo e Moderno, se dedicou a esforço muito valioso nesse sentido em seu livro de 1985, Michel Foucault – Ou o Niilismo de Cátedra, que temos em mãos na edição da Nova Fronteira. Muitos de nós poderíamos simplesmente relembrar o bizarro aceno de apoio do pensador “contracultural” francês à fanática Revolução Iraniana, por exemplo, para defenestrá-lo de imediato.

Merquior vai muito além; ele disseca as principais obras de Foucault (1926-1984), que inclusive teve a possibilidade de entrevistar pessoalmente, sob a forma de verdadeiras resenhas analíticas, sintetizando, com notável brilhantismo, as principais ideias desse teórico que ainda faz tanta companhia aos estudantes universitários brasileiros. Com irretocável elegância, vasta erudição e destreza argumentativa, Merquior enaltece os dons literários de Foucault e aquelas que considera como sendo as qualidades de seu trabalho, ao mesmo tempo em que, para bom entendedor, se desfaz da rigidez conceitual de praticamente todas as teses fundamentais do seu objeto de estudo – tarefa, frise-se, para poucos.

O brasileiro nos apresenta Foucault como um crítico atroz da modernidade e da “vida burguesa” pós-Iluminismo, um inimigo mortal das grandes ideias universais e universalizantes, marcando presença entre os expoentes de um pensamento contemporâneo, com parentesco nos pós-modernos – ainda que o próprio Foucault rejeitasse sua inclusão no rótulo -, que pretende alvejar a convicção na existência de uma “verdade” a ser dissecada e conhecida.

O desprezo por um conhecimento substantivo e objetivo, pairando sobre as interpretações circunstanciais e históricas, o afastaria, igualmente, do Positivismo de Augusto Comte e do Marxismo; entretanto, suas referências a intelectuais antigos e pouco conhecidos, em tom hermético, e seu espírito contestador justificam o interesse provocado por sua obra, influenciada (embora não completamente fiel a ele) pelo pensamento nietzschiano, sobretudo sobre o imaginário da geração rebelde do maio de 1968 francês.

“Um discurso sobre o poder e sobre o poder do discurso: que poderia ser mais atraente para intelectuais e departamentos de humanidades, cada vez mais radicais em sua visão do mundo, mas fartos dos dogmas tradicionais do revolucionismo de esquerda?”, pergunta Merquior. É dessa forma que, ainda que diferenciando-se dos Habermas e Marcuses pela, de um lado, descrença nos grandes princípios gerais e, de outro, por não abraçar as teses “naturistas” rousseaunianas do “bom selvagem”, Foucault se torna útil aos interesses de uma esquerda que, não encontrando mais instrumento intelectual efetivo no desgaste econômico do capitalismo e no mitológico proletariado enfurecido com a exploração, apostou em procurar outros tipos de “rebeldes sem causa” para chamar de seus.

Apreciando principalmente os livros História da Loucura, As palavras e as coisas, A Ordem do Discurso, Arqueologia do Saber, Vigiar e Punir, Microfísica do Poder e História da sexualidade, Merquior, dialogando com uma imensa gama de outros autores, desmistifica os dogmas que Foucault, sob o pretexto de confrontar o dogmatismo, teria ele mesmo estabelecido. O primeiro grande incômodo demonstrado é com a teoria rígida das epistémes;  Foucault vai apontar uma radical “descontinuidade histórica” entre as diferentes épocas, como se uma base subjacente às possibilidades de saber em um determinado período fosse totalmente diferente daquela que existe em outras épocas.

Merquior responderá que muitas vezes os pensadores e cientistas que funcionam dentro de uma epistéme recorrem a fundamentos de autores muito mais recuados no tempo, desmentindo a rigidez que os primeiros livros de Foucault sugerem existir. Também encontrará argumentos factuais e históricos parecidos para desafiar a ideia de Foucault de que a modernidade burguesa e o Iluminismo são uma era sem precedentes de terror vigilante e punitivo, de disciplina rigorista e onipresente, a recrudescer a presença intensiva do poder e da opressão em todos os aspectos imagináveis – usando como símbolo para isso a famosa teoria do panótico, que tomou de Bentham. Nossa cultura estaria marcada pela absoluta coerção.

A isso, Merquior aponta que o francês menosprezou, por exemplo, “a longa sobrevivência de elementos penais do Ancien Régime naquilo que Foucault apresenta como sendo uma nítida ‘sociedade disciplinar’” e, no sentido oposto, a emergência, nessa “terrível época disciplinadora-controladora-dominadora” do Iluminismo, de propostas pedagógicas “numa direção emancipadora ou humanitária”, como a do suíço Pestalozzi.

Do ponto de vista político, Merquior desnuda o desdém de Foucault pelo “sujeito” e pela liberdade como autonomia individual, deixando-o incapaz de reconhecer as gritantes diferenças morais entre regimes liberais e despóticos. Para ele, os métodos de vigilância soviéticos não teriam sido mais que “uma versão ampliada das técnicas disciplinares criadas originariamente pela burguesia ocidental”. Essa opinião que iguala o sistema de disciplina da divisão do trabalho no Ocidente, por exemplo, aos gulags, é vista por Merquior, e por qualquer pessoa com os parafusos no lugar, como “disparate histórico que é, politicamente, tão perigoso quanto tolo”.

Conhecer Foucault pela lente de Merquior é também um antídoto para a doença daqueles que ignoram sistematicamente 1968 e fazem pouco caso de quem afirma que a esquerda não reformulou suas estratégias e apostas centrais desde o Marxismo oitocentista. Seu “ideal” – com o perdão da expressão para um autor que certamente a desprezaria como universal demais para seu gosto – era o de “um ativismo radical pós-revolucionário que aprovava as ‘lutas específicas contra o poder particularizado’ de ‘mulheres, prisioneiros, soldados conscritos, pacientes de hospital e homossexuais”.

Sua obra não evoca qualquer alternativa, qualquer sugestão concreta de um sistema social, qualquer programa a ser imposto quando a “sociedade organizada” e as instituições infames fossem derrubadas. Apenas vê poder esmagador por todos os lados, da vida prática ao discurso, e a necessidade, contra ele, de uma revolta pela revolta.

“É possível”, diz Foucault, citado por Merquior, “que o contorno geral de uma futura sociedade seja fornecido pelas recentes experiências com drogas, sexo, comunas e outras formas de consciência e de individualidade. Se no século XIX o socialismo científico emergiu das Utopias, é possível que no século XX, uma verdadeira socialização venha a emergir de experiências”. Lindo, não? Não lembra o tipo de pensamento que povoa as mentes ensandecidas de tantos militantes universitários por aí afora?

O golpe certeiro que Merquior desfecha serve ainda hoje para os herdeiros da New Left e toda essa geração inconsequente e irracionalista de maio de 68: para Foucault, não há como ter qualquer pretensão a nenhuma verdade propriamente dita, exceto aquela que o próprio Foucault redigiu. Não há verdade, mas “sua própria analítica do poder é verdadeira”. Se o projeto de Foucault exprime a verdade, pergunta Merquior, “então todo saber é suspeito em sua pretensão de objetividade; nesse caso, porém, como pode a própria teoria dar testemunho de sua verdade”?

Citando Bouveresse, resume Merquior, e não poderíamos encerrar de melhor maneira: “esses filósofos pós-filosóficos escarnecem das pretensões de todo o saber, mas não se inclinam nem um pouco a estender o ceticismo às suas próprias concepções negativas e globalizantes sobre a ciência, a história e a sociedade. Recusando todo debate crítico, eles parecem laborar no equívoco de que a ausência de método e o desdém pelo rigor argumentativo levem automaticamente a uma percepção virtuosa dos ‘problemas reais’. Não se pejam de passar por escritores, e não por pensadores profissionais; mas o manto’ literário’ mal encobre um imenso dogmatismo”.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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