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“Inteligência e Ação Democrática”: reflexões de um mestre de Chicago

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O professor Frank Knight (1885-1972) é um dos economistas que estabeleceram as bases que conformariam a chamada Escola de Chicago, fazendo da Universidade de Chicago um centro de germinação de defensores do liberalismo. Foi mestre de nomes como Milton Friedman (1912-2006) e o brasileiro Og Leme (1922-2004), um dos fundadores do Instituto Liberal no Brasil. Sua obra Inteligência e Ação Democrática, publicada originalmente em 1960, foi a quadragésima oitava a ser lançada no Brasil pelo instituto, em 1989, ainda sob a presidência de Donald Stewart Jr., em tradução de Francisco Beralli.

O livro é a transcrição das gravações de um conjunto de seis conferências ministradas no Centro de Estudos Thomas Jefferson de Economia Política da Universidade de Virgínia no primeiro semestre de 1958. A edição brasileira traz um prefácio do próprio Og Leme. Importa constatar desde já que Knight esboçou mais perguntas que respostas nessa conferência e tocou em questões complexas para as quais não pretendeu oferecer mais do que apontamentos, mas é possível apreender o liberalismo típico da Escola de Chicago nas linhas gerais do pensamento aí exposto.

Em seu prefácio, Og Leme nos ofereceu uma síntese esclarecedora da preocupação fundamental de Knight com esse trabalho. Conforme ele resumiu, “Knight procurava ter uma visão fria e objetiva da condição humana. O ser humano, para ele, é simultaneamente racional e emocional, um anjo e um ‘gângster’, generoso e mesquinho, tanto se dispõe a cooperar como a divergir e embaraçar, tanto obedece às leis como se dispõe a transgredi-las. Consequentemente, as organizações sociais deveriam ser erigidas de acordo com o caráter ambivalente do ser humano. De pouco vale uma ordem nacional estruturada sobre a hipótese do caráter altruísta do homem, quando não se pode deixar de reconhecer a elevada dose de egoísmo que impregna esse caráter”.

Para além disso, diria ainda o professor Og, Knight reconhecia o caráter subjetivo das ciências humanas e sociais em relação às ciências naturais, “pois o cientista social se identificava, na sua essência, com o seu próprio objeto”, ainda que isso não impedisse que essas ciências fossem desenvolvidas com algum tipo de metodologia científica. Partindo dessa base e considerando o ser humano como agente na sociedade, sendo ele emocional, romântico, subjetivo e, por vezes, egoísta, precisaria “se educar progressivamente” para se adequar de maneira inteligente – tão racional e objetiva quanto possível – ao “intercâmbio com outros seres humanos no seio do moderno processo social”. Para isso, ele teria que disciplinar sua tendência ao preconceito, à intolerância e a um moralismo socialmente imobilista, o que se faria desfazendo condicionantes arraigados e abrindo os indivíduos à pluralidade. Isso passaria muito mais por uma “educação da vontade do que do intelecto”.

Somente assim se qualificaria e solidificaria o processo liberal-democrático, que “depende do consenso dos cidadãos sobre seus problemas comuns, a importância relativa desses problemas e das suas respectivas soluções, a escolha dos seus pares para o exercício dos poderes do Estado e o controle do exercício desses poderes”. Simultaneamente preocupado com a qualificação do capital humano para exercer essas ações sociais nas complexas democracias modernas e com a racionalidade que isso demandaria, Knight, porém, não sucumbiu a um completo racionalismo ingênuo, afirmando que a ciência não teria todas as respostas para os problemas de uma sociedade livre, isto é, afastando qualquer conclusão tecnocrática. Assim como Friedrich Hayek (1899-1992), Knight também valorizava a moral e as tradições, isto é, o agregado da experiência histórica, como elementos importantes, que precisam ser substituídos, adaptados ou modificados mediante “o livre, espontâneo e voluntário intercâmbio dos cidadãos” e não um racionalismo construtivista.

Parece-me que Og Leme resumiu muito bem as preocupações centrais de Knight nessas conferências, que estão sob os títulos “A busca de normas racionais”, “A sociedade livre: fundamentos históricos”, “A ordem econômica: estrutura”, “A ordem econômica: problemas gerais”, “A ética do liberalismo” e “A mente pode solucionar os problemas criados pela sua liberação?”.  De fato, Knight refletiu nessas conversações a respeito de sua percepção de que o individualismo moderno, rompendo com características predominantes nas sociedades antigas e medievais, enseja novos desafios para os quais a inteligência humana precisa se ajustar. Como apreciar e desenvolver esse ajuste? Sem pontificar, o economista de Chicago terminou por exaltar os méritos da liberdade individual e os perigos da excessiva coerção estatal como indicações do caminho a seguir.

Limito-me a ressaltar alguns apontamentos feitos pelo autor. Desde o início, Knight estava interessado em refletir sobre a dinâmica da democracia como um regime de intercâmbio, por definição, livre, com livre discussão e entrechoque de ideias. Não se concebe, na visão de Knight, a aceitabilidade de uma democracia que não seja liberal. Contudo, ele não deduziu daí que “a liberdade de intercâmbio constitui uma resposta geral aos problemas da política. Não podemos tomar como um axioma nem o fato de ela ser sempre uma boa coisa – pois depende de muitas condições na vida real – nem o fato de não ser necessária muita ação coercitiva para assegurar a melhor aproximação possível do padrão teórico, pois, em geral, a liberdade só pode ser efetiva se for restringida pela lei”. Avançava mesmo em dizer que é falso que o indivíduo seja sempre o melhor juiz de seu bem-estar, bem como que seja possível separar totalmente o seu bem-estar do mínimo bem-estar da civilização ou sociedade em que está inserido. Mais próximos à tradição clássica, os liberais de Chicago não são anarquistas.

Há no trabalho de Knight muitas críticas a certos condicionantes comportamentais que a religião cristã organizada teria deixado na sociedade. Segundo ele, é um problema “a tendência de achar que a causa dos nossos males é o ‘pecado’ – especialmente o das outras pessoas – e que o remédio está em punir os homens maus ou ‘liquidá-los’, ou queimá-los como hereges”. Igualmente, porém, criticou o cientificismo, “a ideia de que os problemas sociais podem ser solucionados através dos métodos usados pelo homem para obter um crescente domínio da natureza”, que representaria uma confusão de competências, já que, embora o saber científico, por exemplo, confira poder, nada diz sobre como utilizá-lo e para quê. Acreditava, no entanto, na necessidade de educar melhor a sociedade para fazer escolhas mais articuladas no campo da democracia, mesmo sabendo dos limites de tal empreendimento.

Curiosamente, para desgosto de alguns de nossos contemporâneos, apesar de seus comentários um tanto críticos à religião cristã organizada, Knight acreditava que o conservadorismo não era antitético ao liberalismo, mas sim “um aspecto dele. Conservadorismo não significa oposição a todas as mudanças, e sim aceitação de mudanças quando, e apenas quando, existam fortes razões para acreditar que elas serão para melhor (…). A fé liberal é de que o progresso, a melhora, será conseguido através da liberdade – em contraste, por um lado, com a mudança dirigida por uma autoridade com poder arbitrário e, por outro lado, com a mudança aleatória ou oriunda de impulso impensado ou motivo irracional”. À liberdade, dever-se-ia associar a ordem, que, em verdade, seria o princípio supremo, na visão de Knight, devendo-se apenas avaliar que ordem e quanto de ordem seriam necessários, pois “qualquer ordem rígida exclui inteiramente a liberdade e toda ação inteligente para tal”.

A liberdade, por sua vez, dependeria da inteligência, conquanto os homens devessem “ser conscientes do seu romantismo natural e céticos quanto aos seus remédios e, antes de tudo, céticos com relação a todos os diagnósticos”. Tendo rompido com os velhos moldes de sociedade, removendo antigos freios políticos e religiosos, a sociedade liberal-democrática moderna demandaria um cuidado especial com a educação, pois “a ordem necessita de uma boa dose de mentalidades parecidas, embora a tendência natural do movimento cultural seja a diversificação”. O alerta de Knight é que os liberais precisariam ter mais paciência com os costumes e hábitos, “o principal ingrediente da ordem nas relações sociais”, que podem ser mudados sem destruição da própria ordem e da própria liberdade “apenas lenta e gradualmente”. Faria parte da ação inteligente, também, considerar os custos das mudanças em vez de apenas abraçá-las de forma apaixonada. A mesma crítica valeria ainda mais para os socialistas e estatistas, que enxergariam como condição da liberdade ter meios materiais para empreender determinadas ações, isto é, supervalorizariam a ideia de “liberdade positiva” em detrimento da de “liberdade negativa” – ainda que Knight não utilize esses conceitos diretamente, é do que trata sua abordagem.

Pela incapacidade de dispor de todo o conhecimento necessário para a ação social, os indivíduos devem valorizar a cooperação, inclusive a do passado. “O liberalismo, longe de ser a antítese do conservadorismo, requer este último de forma manifesta como uma contrapartida. Os amantes da liberdade devem resistir ao impulso de recorrer precipitadamente à ação legal e governamental compulsória. Muitos males e perigos devem ser tolerados na vida humana, outros devem ser conhecidos indiretamente através do lento processo de educação, processo esse que deve ser mantido tão livre quanto possível”, sustentou.

A liberdade, ainda segundo Knight, não deve ser encarada como a negação de que os indivíduos são, de muitas maneiras, resultantes de sua cultura e do processo social. Os fundamentos da ordem social dependeriam de forças morais, como as convenções e hábitos, “a maioria delas adquiridas no meio sociocultural e não de uma estrutura organizacional ou das leis”. Igualmente, em mais de uma oportunidade nas seis conferências, o autor apontou que o individualismo liberal, na verdade, deve ser compreendido, em certa medida, também como “familismo”, valorizando essa instituição social chamada “família” como uma instância inescapável nas reflexões sociais. Pessoalmente, embora concorde com o espírito da mensagem de Knight, tenho minhas ressalvas a esse emprego vocabular.

Knight também registrou sua crítica a John Maynard Keynes (1883-1946), acusando-o de corromper o pensamento ao ensinar que a taxa de juro é um fenômeno monetário. Igualmente, ele alvejou os que querem combater os empresários e os monopólios que possam constituir, mas defendem os privilégios concedidos a sindicatos e organizações corporativistas. O autor reconheceu a existência de monopólios naturais, mas argumentou que, devido à precariedade da administração de empresas por agentes políticos, a posse e gestão direta dos serviços poderia não ser o caminho melhor (exatamente como Friedman sustentaria). Em sua opinião, os monopólios inevitáveis “poderiam muito bem ser controlados através de leis sensatas sobre as atividades empresariais, garantidoras de poderes razoavelmente limitados, acompanhadas de ação efetiva para manter a abertura dos canais de entrada nas diferentes atividades empresariais e profissionais” – isto é, a liberdade de iniciativa.

Já a respeito das oscilações do mercado, movendo-se a produção “em expansões e declínios oscilatórios”, chamados “ciclos econômicos”, Knight afirmou acreditar que “se trata fundamentalmente de um problema de oscilação do poder aquisitivo do dinheiro, devido a mudanças na quantidade de dinheiro ou de seus substitutos, ou na sua velocidade de circulação, ou de ambas as coisas”, já que as pessoas não conseguem prever perfeitamente o que será feito pelas demais em uma economia livre. Embora tenha admitido a inevitabilidade disso até certo ponto, como os economistas de Chicago, em geral, fariam, Knight defendeu a necessidade de algum tipo de controle estatal do sistema monetário, argumentando que “a tendência natural de aumentar ou diminuir mais ou menos ciclicamente o valor do dinheiro não é limitada, em amplitude e duração, por condições fundamentais, tais como existem em outros mercados”, dado que, “com relação ao nível geral dos preços, o conhecimento do que seja normalidade é vago demais e incerto para prevenir as ondas de altas e depressões”. Em sua opinião, era preciso haver autoridades administrativas para essa função, o que se traduz, na prática, nos modernos bancos centrais, uma divergência categórica entre a maioria dos liberais de Chicago e os da Escola Austríaca.

Conceituando a economia da livre iniciativa como “uma organização competitiva da vida econômica” e a democracia como “uma organização competitiva da vida política”, Knight afirmou que deve haver uma prioridade à ordem econômica, que envolve um grau de liberdade que a política nunca teria, mas que não se pode fazer uma opção definitiva e absoluta entre uma e outra, pois ambas seriam indispensáveis. Diante da mutabilidade das crenças e padrões na sociedade, o liberalismo de Knight seria o reconhecimento de que é preciso “um máximo de liberdade individual e, quando se torna necessária uma resposta social, fazê-la surgir do debate aberto que leve ao acordo sobre alguma mudança ou não-mudança, acordo este a ser gerado com um mínimo de coerção”. Porém, ele não deixou de reconhecer que a complexificação da sociedade e o consequente incremento da especialização intelectual, profissional e burocrática fazem com que, na prática, deleguemos aos outros a tomada de muitas decisões – o que, na verdade, poderíamos acrescentar, é mais um argumento contra a concentração excessiva e discricionária de poder.

Têm-se, pois, que o liberalismo de Knight é um liberalismo basicamente conservador e constitui um bom exemplo do pensamento dos grandes nomes da Escola de Chicago. Essas conferências podem suscitar mais perguntas que respostas, como reconheceu o próprio autor, mas têm condições de fornecer provocações aos interessados em conhecer melhor essa escola de pensamento econômico e as implicações políticas que apresenta.

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Lucas Berlanza

Lucas Berlanza

Jornalista formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), colunista e presidente do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville, sócio honorário do Instituto Libercracia, fundador e ex-editor do site Boletim da Liberdade e autor, co-autor e/ou organizador de 10 livros.

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